Em 2010, aconteceu a IV Conferência Nacional de Saúde Mental-Intersetorial. E, como se pode prever, o processo de construção de uma conferência como esta implica discussões institucionais nas diversas regiões do Brasil, que devem confluir para conferências municipais e, posteriormente, estaduais. Nas conferências estaduais, além de discutidas e aprovadas as teses estaduais que serão enviadas à Conferência Nacional, são eleitos os delegados estaduais que devem ir à Brasília para debater e aprovar as teses nacionais. São estas teses que pautarão o desenvolvimento e a implementação das políticas de Saúde Mental no país para os próximos anos. Para dar conta da organização geral da IV Conferência e do acompanhamento das etapas municipais e estaduais, foi constituída uma Comissão Organizadora Nacional, a partir do convite a mais de 40 instituições, que enviaram seus representantes.
A Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal que, pela perspectiva inédita de intersetorialidade desta conferência, integrava juntamente com o Ministério da Saúde a função convocatória e organizativa da conferência, indicou e convidou o Instituto Sedes Sapientiae a compor a Comissão Organizadora. Faço aqui uma observação importante: o Sedes foi a única entidade da Sociedade Civil convidada a integrar a Comissão. Era evidente o peso de nossa responsabilidade. Desde a minha chegada à Brasília para a primeira reunião da Comissão Organizadora foi possível perceber a natureza do compromisso implicado nesta indicação. Diversas vezes, as pessoas se dirigiam a mim com um
o Sedes chegou, ou
o que vocês estão pensando sobre isso no Sedes? Emocionava perceber que
o Sedes é todos nós e também sua história, a história de todos nós. Uma história que se mantém viva, mas que certamente necessita ser atualizada, recuperando sua real capacidade de articulação e participação.
Enquanto isso, e até antes disso, várias pessoas de nossa comunidade, durante o primeiro semestre de 2010, vinham participando do processo que deveria culminar na Conferência Estadual de São Paulo. Porém, a situação política instalada aqui (cidade e estado) obrigava a um enfrentamento custoso e difícil, pois havia grave desarticulação política e também dos serviços, ataques aos princípios essenciais da reforma psiquiátrica, dos movimentos antimanicomiais e do SUS, através de clara tentativa de implementação de políticas privatizantes por parte do governo estadual. Na verdade, estas condições acabaram por resultar no boicote à realização da necessária, e constitucionalmente prevista, Conferência Estadual de Saúde Mental do Estado de São Paulo.
Sendo assim, outra natureza de demanda passou a chegar ao Sedes. Essas demandas, do mesmo modo, sustentavam-se no que representava historicamente o Sedes no campo da Saúde Mental, uma história de participação e apoio às lutas pela reforma psiquiátrica e antimanicomial, de trabalho e intervenções de formação junto aos trabalhadores da rede, entre outras ações. Eram pedidos de participação e apoio à realização da Plenária Estadual (realizada pelos trabalhadores), que substituiria a Conferência Estadual impedida pelo governo estadual de se realizar e, posteriormente, de apoio à ida dos delegados de São Paulo à Brasília.
Esta contextualização é fundamental para que se possa compreender o espírito da convocatória feita em novembro à comunidade Sedes:
Vamos falar de Saúde Mental? Pois, um grupo de pessoas da comunidade(3) envolvidas com o processo da Conferência passou a se reunir, a partir da flagrante desarticulação da instituição no momento em que esta se viu justamente convocada a ocupar o seu lugar no campo da Saúde Mental. As demandas que chegavam ao Sedes denunciavam, por um lado, a nossa desarticulação, reflexo da mesma desarticulação que se fazia sentir mais amplamente na sociedade, e de outro, exigiam que respondêssemos com agilidade e presteza às importantes urgências que se instalaram.
Como se costuma dizer no jargão jornalístico, o grupo fez
um super esforço de reportagem para tentar conferir à nossa participação a coletivização possível e necessária para uma participação institucional consequente. Ao longo de todo este processo, temos divulgado no site do Sedes,
www.sedes.org.br, as questões que nos pareceram mais relevantes, por acreditarmos que a retomada de nossa participação institucional e política no que se refere à Saúde Mental no Brasil é fundamental(4). Especificamente em relação à Conferência Nacional, vale mencionar que alguns de nossos colegas foram convidados a escrever textos/base para subsidiar o trabalho durante a Conferência, outros participaram na coordenação de mesas/painéis, outros ainda participaram como delegados e/ou observadores de toda a Conferência. Além disso, houve a nossa significativa colaboração para a ida à Brasília da delegação de São Paulo que, por ter realizado o processo estadual em uma Plenária, não encontrava meios de financiar sua viagem. A partir de uma importante mobilização interna, conseguimos financiar a ida de quatro delegados estaduais para a Conferência Nacional, delegados eleitos na Plenária Estadual, sendo que estes recursos vieram do Instituto Sedes - um delegado; do Departamento de Psicanálise - um delegado; e do Departamento Formação em Psicanálise - dois delegados.
Terminada a Conferência, a avaliação cristalina que se impôs ao grupo era a necessidade imperativa de voltarmos a nos articular sistematicamente. O desejo de reabrir um espaço no Sedes para discussão e reflexão se confirmava também nos nossos cursos ligados ao tema oferecidos em 2010, que pela grande adesão pública que despertaram, revelavam a atualidade e a necessidade de que o Sedes voltasse a ser promotor de discussão e interlocução com o campo da Saúde Mental. Termômetro dessa situação foram as aulas abertas promovidas pelo curso de expansão “A Reforma Psiquiátrica e as novas práticas em Saúde Mental”, no primeiro semestre com Paulo Amarante (Fiocruz) e no segundo com Ana Pitta (UFBA), que lotaram o auditório. Trabalhadores, carentes de espaços de troca, mostraram-se sedentos para discutir a atuação clínica e institucional, as políticas públicas e a formação necessária para o bom exercício profissional no novo contexto, ainda em construção e sempre em transformação.
Esse era então o desejo do grupo, expresso na nossa primeira carta-convocatória à comunidade:
potencializar a construção, no Instituto, de um espaço de discussão que contemplasse a necessidade de interlocução entre trabalhadores dos equipamentos de atenção psicossocial, visando sua mobilização na perspectiva da criação de um fórum; a necessidade de formação destes trabalhadores e como o Sedes tem contribuído ou pode contribuir com isso; a necessidade de produzir e publicar conhecimento sobre o assunto, para os quais muitos de nós possuímos acúmulo; a possibilidade de, a partir daí, gerar respostas políticas rápidas e eficazes.(5)
Vamos falar de Saúde Mental? 1º Encontro – 4/12/2010 Do nosso desejo sabíamos, mas também tínhamos clareza da importância da participação geral. Passado o turbulento processo descrito acima, queríamos trocar, ouvir os nossos colegas, incluir as pessoas e suas histórias de participação no Sedes e fora dele. Contudo, era dezembro e, cansados que já estávamos a essa altura do ano, não ousávamos fazer previsões. A comunidade iria responder? O que iríamos propor? A proposta de realização de um sociodrama se mostrou uma opção interessante, pois sabíamos que a gama de questões que poderiam aparecer era ampla, desde questões institucionais específicas até as questões mais gerais, que na nossa avaliação viriam marcadas por uma sensação generalizada de angústia, já intensamente identificada ao longo do ano. Justamente neste momento, convidamos Pedro Mascarenhas, notório e experiente psicodramatista, para coordenar o encontro. Sua entrada no grupo foi enriquecedora e, a meu ver, nos ajudou a vislumbrar caminhos, a abrir espaços, a garantir a fundamental transversalidade para que a comunidade Sedes e seu entorno encontrassem meios de participação.
E foi em uma manhã de sábado em dezembro que vivemos uma das mais emocionantes experiências desde o início do processo, pois cerca de 55 pessoas compareceram ao encontro e vieram falar de Saúde Mental. Tratava-se de escutar e mapear as questões da maneira como elas aparecessem. E as dificuldades que as pessoas foram relatando, emolduradas muito fortemente pelas palavras fragmentação e isolamento, continham também pedidos de mais espaços de trabalho e formação no Sedes, ressentimentos pela desarticulação da política interna e, sobretudo, desejo de participação. Dando voz a este grupo, pode-se dizer que neste primeiro encontro, com grande força, confirmou-se não só o desejo, mas um encaminhamento de que o Sedes seja um lugar de afirmação política em relação à Saúde Mental.
Curiosamente, e de maneira muito promissora, estiveram presentes profissionais da velha guarda e também muitos jovens (alguns ainda formandos em psicologia e concluindo seu TCC na área) contribuindo e relatando as suas realidades, sensações e aspirações. O encontro possibilitou, a meu ver, a mobilização que tinha se pulverizado ao longo dos últimos anos. Para além de uma discussão sobre caminhos e descaminhos da instituição nestes últimos longos anos, foi possível reconhecer que a abertura deste espaço por força das circunstâncias (e uso esta expressão aqui literalmente), recolocava a todos nós a possibilidade de trabalhar política e coletivamente questões, inclusive de natureza clínica, rompendo com o silêncio dos grupos e com a solidão decorrente da responsabilização e culpabilização individual, diante de fatores eminentemente políticos e sociais.
Encaminhamentos deste encontro foram: faríamos um novo encontro em março; abriríamos espaço para que os trabalhadores falassem das práticas e angústias diante de seus fazeres tão severamente atingidos pelas condições políticas presentes; escolheríamos novo grupo para seguir organizando os eventos e iniciaríamos a discussão sobre qual seria nossa proposta de organização deste espaço.
Vamos falar de Saúde Mental? – 2º Encontro – 19/03/2011 Começo dizendo que é bastante difícil relatar este encontro de maneira objetiva, pois creio que a maioria das pessoas que estiveram presentes – foram 60, aproximadamente – irá concordar com o fato de que este foi um momento novamente tocante. Continuamos apostando na coordenação de Pedro Mascarenhas para realizar um novo sociodrama, que se estendeu por uma hora e meia, primeira metade do encontro, ao qual se seguiu uma assembléia de discussão e encaminhamento das questões.
Assim como no primeiro encontro, multiplicidade e transversalidade são boas palavras para definir a configuração deste grupo de 60 pessoas. Vieram pessoas com histórias e trajetórias absolutamente reconhecidas dentro e fora do Sedes, pessoas cujas histórias fazem também a história da instituição, vindas de diversos setores e grupos da comunidade, trabalhadores da rede, alunos de nossos cursos, jovens formandos e até estudantes de graduação em psicologia. Enquanto escrevo, vou me dando conta de que a partir da consigna dada - pensar em uma cena do cotidiano de trabalho que fosse geradora de angústia -, o grupo topou o trabalho. Durante o sociodrama, a dramatização de uma cena escolhida provocou um intenso envolvimento e foi possível explicitar com clareza os problemas fundamentais enfrentados hoje na Saúde Mental, advindos de uma perspectiva político-ideológica que ataca sistematicamente as conquistas feitas na área, desde os primeiros tempos de luta pela reforma psiquiátrica. Enquanto a cena se montava, uma complexa teia se tecia, reforçando a necessidade de rearticulação, de posicionamento político e de busca de meios de intervenção neste estado de coisas.
Não é realmente tarefa fácil relatar o encontro, pois uma vez que o espaço foi realmente aberto para que as pessoas pudessem trazer suas inquietações e angústias, a maioria de nós se emocionou, as pessoas choraram, lembraram, enfim, se comprometeram intensamente em fazer falar, dar voz, quebrar o isolamento. Sem dúvida, a consistência da história acabou por se impor e a velha guarda participou ativamente. Mas, de outro lado, alguns jovens também conseguiram ter participações fundamentais, enquanto muitos colegas se mantiveram mais silentes, escutando, observando. Em meu socorro nesta tentativa de relatar, lembro de uma sugestão de uma participante: a gente devia filmar e colocar no
youtube. Difícil mesmo pôr em palavras.
Após o sociodrama, instaurou-se uma assembléia (ou plenária?) e várias propostas foram feitas para serem discutidas no 3º encontro. Houve propostas diferentes, mas não divergentes, diria até que podem ser complementares: a criação de um fórum no qual os trabalhadores da Saúde Mental pudessem apresentar e discutir as práticas e suas dificuldades; a discussão e definição de posicionamento propriamente político e seus desdobramentos de intervenção no campo da Saúde Mental; a criação de um observatório de Saúde Mental para onde convergiriam os principais problemas enfrentados na cidade e/ou estado; a necessidade de articulação com outras redes e movimentos de Saúde Mental e outros observatórios existentes.
Por último, constituiu-se novo grupo para coordenar a organização do próximo encontro, no qual a presença de pessoas jovens e ao mesmo tempo novas na instituição foi muito bem recebida pelo coletivo. O próximo encontro teve como data sugerida 21/5, em plena semana de comemoração da luta antimanicomial.
Para concluir:
Bem, certamente não atingi a pretensão de transmitir a intensa sequência de acontecimentos de 2010 e a densidade dos encontros, até porque, como adverti em nota introdutória ao texto, este relato tem a marca de um trabalho coletivo e me senti acompanhada em diversos níveis nesse percurso de escrita. De todo modo, espero ao menos ter cumprido a função de instigar a curiosidade e a desejável mobilização de todos nós.
Ainda algo que escrevi entre o primeiro e o segundo encontro:
SILÊNCIO Às vezes, batemos em retirada Vem o recolhimento, encolhimento Mas nada havia murchado Todas as pulsações se faziam sentir Uma espécie de gestação do espírito
Que estava lá, observador
Quieto, calado, passando o tempo
Perdendo o tempo com quase nada Um tipo de trégua sem tréguas
Para o bem e para o mal
Porque ficar assim à deriva
Descansa um pouco, o pouco necessário Mas o que incomoda, incomoda e expulsa
Acreditem, é o silêncio
Que começa a fazer um barulho tão ensurdecedor
E explode os tímpanos do coração