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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    16 Abril de 2011  
 
 
O MUNDO, HOJE

Psicanálise e poesia na sala de aula.


MAÍRA FERREIRA (1)


Gostaria de compartilhar, através deste texto, algumas ideias desenvolvidas em minha pesquisa de mestrado (FEUSP/2010)(2) - um estudo-intervenção com jovens de uma escola pública de São Paulo. A escola pesquisada atende a comunidade da Favela Real Parque e foi escolhida como alvo de um projeto da Faculdade de Educação da USP financiado pela FAPESP na linha do Programa Melhoria do Ensino Público. O objetivo do projeto era buscar nas manifestações culturais juvenis - na maior parte das vezes, marginalizadas da cultura escolar - elementos para (re)pensar pontos nevrálgicos da escola pública hoje. Assim, minha pesquisa foi uma dentre outras que aconteceram simultaneamente naquele ambiente escolar.

Na escola pesquisada - a única escola pública do bairro - era comum que, diariamente, cerca de 250 jovens alunos ficassem, em alguns horários, sem aulas: as chamadas "aulas vagas". Uma classe com jovens na idade de 13 e 14 anos chamou a minha atenção: nas "aulas vagas", em roda, eles cantavam rap, improvisavam rimas, organizavam desafios poético-musicais. E, principalmente, expressavam a dor do preconceito, da humilhação e da discriminação fortemente vivida por eles dentro e fora da escola: "A falta de emprego e compreensão/Transporta o pivete prá uma vida de ladrão/A falta de emprego e compreensão/Mata os sonhos da pessoa e joga dentro do caixão". Suas poesias cantadas eram verdadeiras crônicas da realidade brasileira, as denúncias, repletas de encenações corporais e falas pelo gesto, constituíam verdadeiros atos de linguagem - ainda que não reconhecidos enquanto tal.

A comunidade da Favela Real Parque, localizada no bairro do Morumbi, é composta, em sua grande maioria, por indígenas Pankararu, afro-brasileiros e sertanejos nordestinos que vieram para São Paulo, a partir dos anos 50, para trabalhar em construções civis da metrópole como, por exemplo, o estádio de futebol do Morumbi. Estes trabalhadores são descendentes de famílias que viveram violentas experiências de (des)territorializações - como os "aldeamentos forçados" do Brejo dos Padres no sertão de Pernambuco - por todo o século 19. Por "aldeamento forçado", o antropólogo José Maurício Arruti compreende o processo de colonização nordestino que se utilizou de diferentes estratégias de "conquista", como a guerra, a conversão e a mistura. No caso do Brejo dos Padres, tratou-se de um aldeamento resultante da inserção forçada nas terras indígenas, lá existentes, de diferentes grupos étnico-sociais. Primeiramente, o ajuntamento foi entre os povos indígenas: Pancaru e Porus. Posteriormente, envolveu outros grupos identificados como Umã, Vouve, Geritacó, Canabrava, Tatuxi-de-fulô, Cacalancó que também foram alocados ali. Já em fins da década de 1870 os afro-brasileiros alforriados, que ameaçavam se espalhar pelo país, foram forçosamente reunidos junto aos indígenas.

Nesta direção, apesar das manifestações poético-musicais dos jovens revelarem, por si só, a tradição da oralidade e a herança afro-indígena nordestina de suas comunidades, estas não obtinham o devido reconhecimento no meio escolar. Os professores diziam desconhecer a história e a cultura de seus jovens alunos que se autonomeavam como favelados. O psicanalista Marcelo Viñar afirma que a pergunta sobre "quem sou" e "quem somos" é uma pergunta universal e essencial para a constituição do sujeito. Muito embora a pergunta não leve necessariamente a uma resposta, ela abre espaço para importantes interrogações sobre o destino, o sagrado, os ideais, os ódios, etc. Neste sentido, se o nome carrega definições de quem somos, e se nele há muitos sentidos implícitos, é de chamar a atenção quando alguém se identifica a partir de uma condição: favelados. Nesta direção, o primeiro movimento da pesquisa foi o de sustentar a pertinência da pergunta formulada por Vinãr. Na sequência, o segundo movimento foi o de propiciar em sala de aula, junto aos alunos e professores, a construção da pergunta: quem somos? E o terceiro foi o de construir um espaço para que a história, cultura e experiência social daqueles jovens obtivessem expressão e reconhecimento no ambiente escolar.

Assim, após uma viagem etnográfica à região do Brejo dos Padres, entrevistas com poetas e lideranças locais e estudos geográficos e antropológicos sobre a história, a cultura e os hibridismos poético-musicais das comunidades visitadas, voltei para as "intervenções em sala de aula" com os jovens e professores da escola de São Paulo. O diálogo entre as manifestações poético-musicais do rap, cordel e repentes nordestinos foi, digamos, minha porta de entrada com os jovens alunos, pois, se no discurso manifesto eles recusavam suas heranças históricas e culturais, nas suas expressões artísticas eles pareciam afirmá-las.

Importante salientar que esta proposta encontrou apoio no Programa de Ações Afirmativas, pois, dentre as medidas compensatórias de reparação da escravidão, tem-se a elaboração da Lei 10.639/03 - que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história da África nas escolas - e seu complemento, Lei 11.465/08 - que insere a obrigatoriedade do ensino da cultura e história indígena e afro-brasileira nas escolas. Assim, "apropriei-me" desta última lei, desdobrando-a em um estudo que teve como ponto de partida a história cultural e étnico-social da comunidade local atendida pela escola em questão.

Nesta direção, o método do trabalho - construído local e coletivamente - tomou como base as regras da oralidade e como objeto a criação poética em sala de aula. A leitura, em voz alta e no ritmo da métrica, dos primeiros versos das estrofes de cordel convidou os alunos para a recriação da rima final. O objetivo não era "acertar" o verso da poesia em questão, mas recriá-la contando sua própria história. Assim, aos poucos os jovens foram elaborando seus próprios cordéis, musicando - no ritmo do rap - suas histórias pessoais e coletivas e versando suas associações: migração, discriminação e escravidão.

O trabalho desenvolvido com os jovens permitiu a construção de um espaço lúdico e criativo de ressignificação de suas histórias e experiências com o preconceito e a humilhação. Conhecer - (re)criar - a própria história se revelou primordial para a constituição subjetiva dos jovens. A experiência de apropriar-se de sua história e, com ela, pertencer a um território, parece ter propiciado diferentes formas de ver o presente, depreender outros significados do passado e imaginar futuros possíveis. Em outras palavras, por meio da elaboração de poesias segundo as métricas do cordel e os ritmos do rap, aqueles jovens trabalharam a recriação poética de si mesmos.



(1) Psicanalista, aluna do Curso de Psicanálise e aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do SEDES/SP.
(2) A Dissertação - A rima na escola, o verso na história - foi premiada pelo Ministério da Cultura e está disponível no site: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-30082010-102212/pt-br.php




 
 
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