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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    16 Abril de 2011  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

Um novo modelo de casal político


LEÓN ROZITCHNER

León Rozitchner, argentino, filósofo com doutorado em Paris, professor da Universidade de Buenos Aires, é autor, entre outras obras, de Freud y los limites del individualismo burguês (Siglo XXi,1972), Freud y el problema del poder (Folios, 1981), Perón: entre la sangre y el tiempo. Lo inconsciente y la política (Centro Editor de América Latina-1985), La cosa y la cruz. Cristianismo y Capitalismo (En torno a las Confesiones de San Agustín) (Losada-1997).

Em 1986, convidado pelo Departamento de Psicanálise, ministrou no Sedes um seminário sobre "Psicologia das Massas" e uma conferência aberta sobre "Freud e Clausewitz: o problema do poder", participando também de uma mesa-redonda sobre "Psicanálise e Política", conjuntamente com Gregório Barenblit, Walter Evangelista e Manuel Calvino (Cuba).

O artigo "Um nuevo modelo de pareja política" que, mediante a tradução de Natalia Gola, o Boletim Online publica a seguir, apareceu no jornal Página 12, em 10 de novembro de 2010, poucos dias após o falecimento do ex-presidente Néstor Kirschner.



Néstor Kirchner não fez, de fato, a revolução econômica que a esquerda ansiava: inaugurou - nada menos - que uma nova genealogia na história popular argentina: "Somos hijos de las Madres y de las Abuelas de Plaza de Mayo", nos disse, abrindo os braços de uma fraternidade perdida.

Foi capaz de fazer brotar de novo um lugar no espaço político que, como é possível pensar, os homens devemos às nossas mães, ao menos às da primeiríssima infância, sem as quais o desejo de uma vida feliz não teria sido possível. Vindo do horror que os assassinos haviam marcado no corpo de cada argentino, abriu lugar para uma Justiça que não veio só do direito: veio desse "outro direito", que é uma ordem prévia à lei que a violência sustenta, engendrada desde o corpo amoroso das Madres, não do corpo do Estado e do Pai Terrível.

Desde então, essa é nossa nova ascendência política. Para fazê-lo, havia que ter uma força afetiva e uma coragem que vinha de baixo e de algo mais profundo, para fazer renascer, no corpo dos cidadãos aterrorizados, uma imagem de abrigo e de vida (que talvez já esteja amadurecendo seus frutos no campo político). Nessa dramatização sintética com a qual Kirchner começou seu governo - a Última Cena - dois modelos de Argentina se enfrentam e um deles triunfa quando a efígie do chefe dos assassinos é baixada à terra(1). Podemos dizer que foram as Madres e as Abuelas, todas figuras femininas, aquelas que, no meio do terror implacável e apenas para salvar os filhos que haviam gerado, inauguraram um novo espaço político - o espaço do amor materno generoso no domínio patriarcal impiedoso. As Madres despertam em quase todos nós a promessa de uma felicidade perdida que ficou gravada no fundo da alma.

Estas são, agora, as premissas históricas e coletivas do nosso recomeço: partem de onde mães procuram o aconchego para o filho, lá quando elas dão-lhe tudo sem pedir-lhe nada, por amor à arte, sem equivalente, essa ordem amorosa onde se inicia, espontaneamente, o direito à vida (tão contraditório e oposto ao capitalismo) e que esse seja o lugar sonhado de uma "vida feliz" que todos - desde Santo Agostinho a Marx - reconhecem na primeira infância, como se ela sempre fulgurasse num instante de desesperança. E é o que a direita não poderia sequer imaginar que viesse a acontecer com tantas pessoas quando morre Kirchner. Eles não entendem estas nossas mães que choram com Cristina a morte de um homem que, pelo menos, não quis ser um déspota, que tinha algo de mãe e de feminino em sua desengonçada figura. Foi por alguma razão que os lenços brancos das Madres foram o sudário que cobria os restos mortais de Néstor.

Tentemos ler o que nos está acontecendo a partir dessa outra perspectiva que, por incluir o dito "subjetivo", onde o afeto e o imaginário reabrem a Primeira Cena primordial, não é menos material, social e política. Seria desejável que, para pensar a política, nós também "baixássemos à terra" para procurá-la a partir das nossas origens pessoais. O homem e a mulher, quando seus corpos verdadeiramente se amam e se complementam, trocam entre si as imagens dos amores que lhes deram a vida como semelhantes na diferença. Assim também se fizeram os Fernández-Kirchner: um modelo de casal humano que corrige e amplia o casal do primeiro peronismo, onde uma submissa Evita proclamava a necessária adoração ao homem que a havia escolhido, retirando-a da turbidez da ribalta portenha. Ela era apenas o complemento submisso: o que Perón fazia pela lei do Estado, ela fazia por caridade cristã, para ajudá-lo, pedindo aos "descamisados" que amassem o Coronel com a mesma devoção feminina - não materna - com que ela o amava. Ele, homem-homem por um lado; ela, mulher submissa, amorosa e dedicada, por outro.

Cristina Fernández é uma mulher que se uniu a um homem desde outro lugar corporal histórico: onde o encontro da heterogeneidade dos sexos na militância juvenil não se impôs como submissão, mas como a igualdade dentro dessa diferença. Sejamos objetivos: ambas são dois modelos oriundos de uma mesma matriz política. Cristina não é melhor nem pior que Evita: é uma mulher histórica diferente, mesmo que algo as una e outro algo as separe. Cristina é um animal político feminino em pé de igualdade com o animal político masculino de seu marido Néstor, o que não ocorria com Perón e Evita. Ocupa um nível superior ao de Evita na escala Richter da evolução feminina. Aqui as diferenças não são contraditórias, mas complementares, como se complementam os corpos que, ao amar-se, unem-se. Dali surge, das profundezas, outro modelo político - tirânico ou acolhedor, dependendo da cifra - nos representantes do poder coletivo no governo. E é por isso também que, desde esse mesmo lugar, surge esse ódio novo, tão feroz e muito mais intenso, que se apoderou de nossas classes média e alta argentinas.

É por isso que tantas mulheres submissas e empanturradas de classe alta e média, tão finas e delicadas, não nos poupam suas misérias quando se mostram despidas ao dirigir-lhe suas tiradas obscenas: não vêem o que mostram. São mulheres escravas do homem que as adquiriu - ou elas que o fizeram - e ao qual se juntaram em turvas transações, onde a percentagem e as glândulas foram fundidas numa estranha alquimia que se converteu numa força que chamam de "amor". Invejam Cristina desde o mais profundo de suas renúncias que o amor "conjugal" exige, mas não consola. Cristina as coloca em evidência: ficaram sem calças que as modele, com a bunda exposta. Ela tem, tendo o mesmo ou mais do que elas têm, o que a todas juntas lhes falta. Mas elas sabem que não poderiam nunca chegar a tê-lo. Por isso, elas não a invejam, a odeiam enquanto traidora de classe - da classe de mulheres, eu digo. Cobriram-na de insultos e desprezo: das mais abjetas ofensas que nunca vi sair antes dessas boquinhas pintadas de ódio servil. Cristina as deixa fora do eixo. Isto também constitui o solo denso da política, tão unido à luta de classes entre ricos e pobres. Elas também são o resultado da produção capitalista de sujeitos em série: mercadorias femininas com formas humanas, com seu valor de uso e seu valor de troca.

E o ódio de seus maridos? Daqueles machos viris que vêem em Cristina, misturado com seus maduros atributos femininos que lhes fazem cócegas desde o cérebro até suas partes íntimas, uma mulher que um cara feio e vesgo conquistou, não conseguem engoli-la. Primeiro sentem-se humilhados por ser um tipo de mulher que jamais conseguiria pousar neles os seus olhos, e que os supera com sua inteligência. Em segundo lugar, e, consequentemente, vêem avançar o perigo na ameaça de um modelo feminino que acabe com a submissão de suas mulheres nas quais investiram tanto: uma vida inteira de negócios escusos e trabalho árduo nos escritórios, de atender aos clientes, de contar o gado ou os hectares de soja, e de grupos financeiros para poder "mantê-las", como se se tratasse de amor essa transação que continua a miná-los por baixo e os faz sentir tão vazios e impotentes e viciados em Viagra. Sentem, na figura feminina e desafiadora de Cristina, ainda que exagerem, a revolução em marcha.

Não conseguem enxergar o novo modelo de mulher que Cristina Fernández lhes oferece? Um desafio, um estado de insubordinação e até de guerrilha, quando a libertação das mulheres e a ameaça da ordem amorosa materna chega à ordem política? A "segurança" pela qual o estabelecido clama - da CIA aos investidores - não será a que também alimenta a insegurança do casal pequeno e grande burguês, por mais dinheiro que tenham, esse novo fluxo que avança desenfreadamente como a água barrenta que carrega tudo, até alcançar a arena da política que agora range por baixo e por cima? Os homens honestos e as mulheres fiéis e felizes estamos em perigo, nos gritam implorando e desejando o terror das forças repressivas: eles morrem de medo. E agora, como antes com Evita e agora com Néstor, prolongando aos assassinos, saúdam e dão vivas ao câncer e ao infarto. Gritam frente ao inimigo, "viva a morte", como aquele general franquista durante a guerra civil espanhola. Sentem o perigo, formam um bloco único com os seus homens: eles não querem perder nada.

Se perguntássemos a muitos dos nossos políticos em que se transformou a figura da mãe que lhes deu vida, os fatos respondem. Entre a mãe da infância e as mulheres, a ganância e o dinheiro se interpuseram. Alguns já não saem com putas porque têm dinheiro, compram as "modelos" e agora as têm em casa. Este é também um "modelo" de casal humano no capitalismo.

E aqui é quando voltamos a Cristina Fernández, que não é só "de" Kirchner. É nossa Presidente - para muitos, talvez, uma "mãe-política"? - que, na trilha de nossas Madres, assumiu um modelo fraternal diferente em seu ser mulher-política. Talvez seja por isso que tantas pessoas vejam nela o que nenhuma outra mulher (e quase nenhum homem) tem sido capaz de suscitar em nossa história passada. Talvez a ordem amorosa possa chegar através do nosso afeto e da nossa memória, essa que as Madres e as Abuelas, vencendo o terror, abriram para os cidadãos, tornando-se a premissa sensível de uma nova vontade e de uma nova razão política: que se abra na democracia o acolhimento e o fervor das mães de nossa primeira infância. Talvez ela, com nosso apoio, consiga prolongá-lo e, ao fazê-lo, nossas próprias forças de homens que, ao sustentá-la, recuperam sua origem e se aprofundam. Para sustentá-la com nosso corpo sensível do qual o Espírito Santo havia nos despojado de nossas mães carnais, ao substituí-las por uma mãe postiça: esgotada, melancólica e virgem.

Com as novas mães e avós argentinas, voltou a ocupar a cena política essa primeira mulher, mãe corporal, gozosa e generosa, que todos - homens e mulheres - tivemos, para poder vir a existir e, agora, para retornar à vida política da qual o terror do Estado nos havia distanciado. É o nosso fundamento mais profundo que renasceu com elas. Talvez a política precise agora do apoio de todos nós, a partir do mais entranhado e basal. Porque Cristina Fernández Kirchner prolongou e assumiu como mulher-mãe, e com o homem que foi seu marido, um novo modelo social de casal político. Não é pouco para recuperar a origem materna do imaginário coletivo que busca uma sociedade diferente. De qualquer modo, teremos aprofundado um lugar novo e mais forte se, para nos defender, também a defendermos: não temos escolha. E eu não fui nem sou, por isso, "kirchnerista".


(1) O autor se refere ao momento, amplamente fotografado e difundido pela mídia, em que o presidente Kirchner, pouco depois de ser empossado, faz retirar da Galeria dos ex-presidentes, na Casa do Governo, o retrato do General Videla.



 
 
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