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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    17 Junho de 2011  
 
 
O MUNDO, HOJE

Responsabilidades no caso das trigêmeas


DANIELLE M. BREYTON, HELENA M F M ALBUQUERQUE, VERÔNICA M. MELO(1)


Tem circulado na mídia o caso de um casal que, com o auxílio das tecnologias de reprodução assistida, engravidou de trigêmeas e, ainda na gravidez, assinou um documento manifestando a intenção de dar uma das crianças para adoção.

De acordo com matéria na Folha de São Paulo em 9/4/11, três semanas após o parto prematuro das três meninas, os pais ratificaram o desejo de ficar com apenas dois bebês.

O Conselho Tutelar foi acionado pela equipe do Hospital que denunciou a rejeição afetiva do casal em relação a uma das crianças. O Ministério Público determinou, então, a retirada da guarda das crianças da família. As três bebês foram encaminhadas para um abrigo no dia 18 de fevereiro, no intuito de protegê-las da falta de "condições do exercício da paternidade e maternidade" por parte do casal.

O casal se diz arrependido e luta para retomar a guarda dos bebês. No abrigo, a presença dos pais foi restrita a duas horas semanais ao longo de dois meses e meio, durante os quais o processo corria em segredo de justiça. Em algum momento, a guarda das crianças foi concedida aos tios, sendo mantido o limite de uma visita semanal de duas horas por parte dos pais. Em 5 de maio último, o desembargador Ruy Muggiati ampliou o tempo de visita dos pais às crianças, julgando que "deve prevalecer o interesse maior das crianças, que atualmente se encontram em importante fase de seu desenvolvimento psíquico e necessitam de estímulo, atenção e afeto, especialmente daqueles que exercem as funções paternais." As crianças, a partir de então, podem receber a visita dos pais todos os dias da semana, entre 7 e 22 horas e estes também podem dormir com as trigêmeas na casa dos responsáveis às terças e quintas feiras. Após aproximadamente 2 meses e meio de separação quase total, os pais e as bebês poderão conviver novamente. O juiz reconheceu que a limitação a duas horas semanais "se mostra, a priori, medida excessiva, porquanto não permitirá que os pais tenham convívio salutar com as filhas".

Pesquisando a repercussão do caso na imprensa, é notável como a maioria dos artigos gira quase exclusivamente sobre a responsabilidade dos pais: legalidade ou ilegalidade do ato dos pais, se fica caracterizado ou não um crime de abandono de incapaz, e sobre as condições mentais e morais desses pais assumirem o exercício da paternidade e maternidade. Na maioria deles o tom acusatório é gritante.

Mais recentemente apareceu um novo dado que parece corroborar a idéia de inaptidão desses pais para o exercício das funções parentais: o casal teria tentado ou querido fazer um aborto de um dos fetos ainda durante a gravidez (técnica de redução embrionária).

É importante situar o contexto em que ocorre esse fato de proporções crescentemente traumáticas para todos os envolvidos. Acreditamos que trazer à cena o discurso da medicina reprodutiva pode favorecer uma análise mais aprofundada dos complexos elementos em jogo.

Para começar, cabe perguntar de quem é a responsabilidade pela implantação de 3 ou 4 embriões (os dados variam na mídia) no útero de uma jovem de 28 anos? A quem cabe a decisão que implica tamanhos riscos? Ao casal? À equipe médica? Ao Estado?

No Brasil não há, ainda, leis que regulem o número de embriões que podem ser implantados no útero da mulher de acordo com a idade, como já ocorre na Europa. No entanto, a nova norma proposta pelo Conselho Federal de Medicina (ver site do CFM) define o número máximo de embriões a serem transferidos dependendo da idade da paciente. Para mulheres de até 35 anos podem ser implantados até dois embriões; de 36 a 39 anos, até três; acima de 40, quatro. Isso porque o sucesso das implantações embrionárias é significativamente maior no caso de mulheres mais jovens (abaixo dos 30 anos), o que implica uma probabilidade bastante alta de uma gravidez múltipla e, portanto, de risco.

De acordo, então, com as diretrizes éticas do CFM, no caso em questão só poderiam ter sido implantados no máximo 2 embriões.

Cabe lembrar também da existência da técnica de redução embrionária, muito discutida no âmbito da medicina reprodutiva, e praticada (embora proibida) no Brasil. Trata-se da técnica que possibilita a eliminação de um ou mais embriões de pacientes de Fertilização in vitro (FIV). Também referida como técnica de ‘descarte de embriões', é defendida por uma parte dos médicos como sendo necessária em pacientes com uma "gravidez de risco" em função de tratar-se de uma gestação múltipla, pois: "a gravidez de gêmeos apresenta mais riscos para a mãe e os fetos que a gestação de um único bebê" (Revista Veja, 3/2/99, seção Medicina). O artigo em questão intitula-se: "A escolha mais difícil. O aumento no número de gestações múltiplas coloca o dilema: abortar ou não alguns dos fetos?".

No mesmo artigo, comentando a dificuldade na escolha de qual embrião a ser descartado, após implantação, do útero materno: "Os médicos tendem a optar pelos menores, pelos que apresentam batimentos cardíacos mais fracos e por aqueles de mais fácil acesso à injeção de cloreto de potássio". É interessante o fato de o casal ter sido também objeto de críticas virulentas por supostamente terem escolhido o bebê mais frágil para ser colocado para adoção. Um discurso ecoa o outro.

Também faz parte da técnica de fertilização in vitro a seleção dos embriões a serem transferidos para o útero materno. Os melhores são escolhidos e os restantes congelados e/ou descartados e/ou disponibilizados para doação. Dessas técnicas e do discurso que veiculam, reverberam no imaginário social termos como: escolha, doação, descarte, redução.

Torna-se evidente que o dilema vivido pelo casal não lhes diz unicamente respeito, mas é explicitamente trazido à cena e discutido na mídia e pela própria medicina, cujas tecnologias de reprodução assistida estão à disposição no mercado.

No entanto, este casal é exclusivamente responsabilizado pelo desenrolar de uma história fartamente abastecida por um discurso da medicina e, em alguma medida, endossado pelo Estado. Os poderes instituídos lavam as mãos e a responsabilização, nesse caso culpabilização, com todo seu peso, recai sobre os indivíduos.

É paradoxal o fato de o julgamento dos pais como abandonadores ter como consequência impor o abandono das crianças pelos pais. Na medida judicial inicial, cujo objetivo era a proteção das crianças, foi desconsiderado o dano subjetivo a ser produzido pela separação imposta entre mãe/pai e as bebês (que inclusive tiveram a amamentação interrompida pela sentença provisoriamente imposta).

A advogada do casal faz a sua defesa alegando que os pais poderiam estar "com problemas de saúde psicológica", em função da situação de stress à qual estavam submetidos desde o início dos procedimentos de FIV, ao decidirem dar em adoção uma das crianças. A seu ver, caberia ao Estado e à sociedade auxiliá-los e não condená-los e pergunta: "o que é, exatamente, mais cruel?"

Pesquisas recentes indicam que a gravidez múltipla é um dos principais fatores de risco para depressão pós-parto. Estudos publicados na revista Pediatrics mostram que o risco de ter o distúrbio é 43% maior nesse tipo de gravidez. (Seção Saúde, da Folha de São Paulo de 09/04/2011).

Chama a atenção, no entanto, que a medicina que torna possível as gestações múltiplas não se implique com as consequências do nascimento de ‘ninhadas' de bebês. Um número excessivo de embriões são implantados no útero de mulheres e quando os bebês nascem, há uma desimplicação por parte dos médicos, um "toma que o filho é seu" ou "quem pariu Mateus que o embale", deixando exclusivamente nas mãos dos pais arcar com as consequências.

Nesse sentido, é emblemática a posição do médico Karam Abou Saab, responsável pela implantação dos embriões na paciente, que se diz impressionado com a atitude dos pais: "Em 36 anos, eu nunca vi um caso do casal rejeitar os filhos, após um tratamento para engravidar. Muito menos rejeitar um ou rejeitar dois. Isso realmente é uma novidade". (Jornal Hoje, Rede Globo 1/04/2011).

Não é essa a nossa experiência como psicanalistas. Nossa pesquisa e nossa clínica com casais que procuram a reprodução assistida nos colocam permanentemente em contato com sujeitos às voltas com conflitos intensos e frequentemente em profundo desamparo.

Situações como a deste casal cobram uma implicação responsável de todos os envolvidos nessa nova construção sócio-cultural. "Tomemos que o filho é nosso!"

(1) Psicanalistas do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae; pesquisadoras na área da Reprodução Assistida do Grupo de Trabalho e Pesquisa "O feminino e o imaginário cultural contemporâneo".




 
 
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