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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    17 Junho de 2011  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

A propósito de uma política de Saúde Mental


CRISTINA BARCZINSKI(1)


Tudo começou em 2008, na França, na cidade de Grenoble, quando um jovem morreu depois de atacado a facadas por um paciente esquizofrênico que havia fugido do hospital psiquiátrico de Saint-Egrève(2). A partir deste acontecimento, apesar de isolado, pois doentes mentais são prioritariamente vítimas de violência e não agentes da mesma, ressurgiu uma tendência, fortemente apoiada no discurso do Presidente Sarkozy, de criminalização da loucura, que considera os doentes mentais como assassinos em potencial. Segundo este discurso, o Estado passa a deliberar sobre estes doentes, inclusive quanto à internação compulsória, e os profissionais da saúde não passam de simples consultores. A verba governamental passa a se dirigir a construção de novas unidades de internação para "doentes difíceis" e quartos de isolamento. Para combater esta visão tendenciosa e populista, em poucas semanas, ainda em 2008, um grupo de profissionais da área elaborou um petição - "A noite da seguridade" -, que obteve mais de 20 mil assinaturas. Este grupo se uniu sob o nome de Coletivo dos 39 e vem organizando desde então diversas manifestações, juntamente com outras categorias profissionais, contra o projeto de lei "relativo aos direitos e à proteção das pessoas que são objeto de cuidados psiquiátricos". Considerado por muitos um projeto oportunista que aproveitou a emoção suscitada pelo acontecimento, a lei propõe encarcerar doentes mentais graves para a segurança do cidadão comum, tendo aqueles, como único tratamento, uma camisa de força química; o projeto também advoga o cuidado compulsório, transformando os cuidadores em polícia sanitária. Pouca ou nenhuma atenção é voltada a uma abordagem multidisciplinar que vise a ressocialização, inclusão e cura do paciente, e não seu isolamento.

Aqui no Brasil, ouvimos discursos da mesma espécie, quando do massacre, por um ex-aluno, de doze adolescentes em uma escola pública do Rio de Janeiro. Da parte dos pais, justamente amedrontados, havia um pedido de controle sobre a circulação de pessoas na escola, detectores de mentais, a presença ostensiva da polícia. Alguns educadores argumentaram que a escola não poderia se transformar em uma fortaleza, colocando em risco um ambiente que, idealmente, deveria favorecer as trocas, transmitindo confiança e acolhimento à diversidade. Da mesma forma, a recomendação de um diagnóstico psiquiátrico precoce nas escolas, através do trabalho preventivo de organizações médicas junto a professores e alunos, pode gerar atitudes discriminatórias e diagnósticos precipitados, acompanhados por medicação muitas vezes desnecessária ou, no mínimo, precipitada. Igualmente semelhante à discussão em curso, com o mesmo conteúdo discriminatório e autoritário, é a proposta, levada a cabo em algumas cidades brasileiras, de internação compulsória de adolescentes viciados em crack, que se insere na mesma lógica de "tolerância zero" do projeto de lei francês. Há aproximadamente um ano, o psiquiatria Raul Gorayeb, que coordenava o Caps Infantil da Sé e opunha-se a esta política, foi afastado de suas funções pela prefeitura de São Paulo(3).

Quanto ao projeto em questão, já aprovado pela Assembleia Nacional e que passa em junho pelo Senado francês, numa segunda leitura, um dos pontos mais polêmicos diz respeito à delação do paciente por parte do cuidador, rompendo a relação de confiança entre os dois. Desta forma, fica decretado o fim da independência do profissional da saúde, que se submete a um "programa de cuidados" ditado pelo Conselho de estado. O modelo proposto é o da psiquiatria de vigilância, que pode responder em um momento de urgência, mas que é inviável como proposta de cuidados a longo prazo.

Na contramão deste cenário policialesco, em um dos textos de convocação do Coletivo dos 39, há um belo parágrafo, que traduz o espírito deste movimento, cuja tradução reproduzimos a seguir: A Loucura não pertence à psiquiatria, a Arte fala dela, dirige-se a ela. É natural que numerosos coletivos de artistas, pintores, atores, musicistas se juntem ao Coletivo dos 39 para defender a humanidade das pessoas doentes. A luta por uma hospitalidade para a loucura deve se conduzir também no campo cultural e artístico. A loucura é indissociável do humano, ela é fato de cultura.

A seguir, o texto indignado de Daniel Zagury, enviado ao Boletim Online por Maria Silvia Bolguese, a quem agradecemos. O autor é um psiquiatra francês, especialista em psiquiatria legal e membro do Coletivo dos 39.

(1) Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise e membro da equipe editorial do Boletim Online.
(2) http://diplomatique.uol.com.br/artigo.php?id=520&PHPSESSID=726ce1cea7ec25bc2.
(3) http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2010/04/psiquiatra-afirma-sofrer-pressao-para-internar-menores-da-cracolandia.html.




 
 
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