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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    17 Junho de 2011  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

A lei sobre a psiquiatria é o indicador de um Estado que prefere punir a curar


DANIEL ZAGURY(2)


O projeto de lei relativo aos "direitos e à proteção das pessoas submetidas a tratamento psiquiátrico" provoca uma justa cólera e indignação junto às associações profissionais. Denuncia-se a criação de um dossiê criminal psiquiátrico ou de uma custódia psiquiátrica. Aponta-se a dimensão exclusivamente securitária do projeto de lei, cujo vocabulário e lógica são mais apropriados ao ministério do interior que ao da saúde. Isto não é toda a verdade. É ainda pior: o projeto é sanitário em relação às admissões e securitário quanto às altas, o que torna ainda mais infernal a situação no local, entupindo as unidades de internação e dificultando a realização dos atendimentos de urgência, sobretudo para aqueles pacientes sujeitos a cometerem um ato violento.

Critica-se a ausência de meios, que torna este projeto irrealizável e a má fé daqueles que fingem ignorá-lo. Tudo isto é exato mas as objeções são particularmente ingênuas: como se o projeto do legislador fosse o de adotar uma lei efetiva! Faz um bom tempo que as leis não são mais feitas para serem aplicadas ou para melhorar a situação daqueles que sofrerão os efeitos, mas sim para exibir a força do Estado-repressor.

Resumindo, para compreender o contexto deste projeto de lei, é preciso superar a indignação, avaliar um certo número de perturbações e de mudanças de paradigma. Então poderemos realmente compreender o que pode haver de comum entre fenômenos aparentemente tão diversos quanto o sofrimento no trabalho, com sua legião de suicidas, a queixa difusa de categorias profissionais como policiais, professores, pesquisadores, magistrados, médicos ... ou a busca sistemática de bodes expiatórios.

É comum a oposição entre o Estado-protetor e o Estado-repressor(3), relegando o primeiro a um passado distante. Porém ainda não conseguimos avaliar os efeitos psíquicos que acompanharam o modo em que foi operada esta mutação em nosso país: uma coisa é não se sentir mais protegido por uma instância benevolente, outra coisa é viver em toda sua crueldade os ataques daqueles que desempenhavam anteriormente uma função tutelar. Justamente este retorno malévolo que está no cerne de um grande número de sofrimentos difusos: o sujeito não se sente mais apenas "abandonado", mas sim violentamente atacado pelo Estado, que o descarta. Por quê?

Os políticos devem resolver uma equação singularmente complexa: conciliar a manutenção, até mesmo o aumento das expectativas, a pressão dos lobbies associativos e a diminuição dos recursos, sem despertar a cólera popular com suas consequências eleitorais.

Devemos constatar que, da mesma forma, existem soluções perversas. Elas não se reduzem à mentira. Repousam sobre os mesmos mecanismos que descrevemos na clínica das perversões e da perversidade: negação, clivagem; projeção (persegue-se o zé-ninguém e escolhe-se o bode expiatório, geralmente, entre os mais vulneráveis); o desafio (condena todo argumento crítico); inversão de valores (os mais frágeis se transformam nos mais perigosos); fuga para adiante(4) (tal como um ladrão vulgar que, comprometido até o pescoço, move a máquina do estelionato, o Estado voa de lei inaplicada em lei inaplicável)...

No final das contas, são estes os protagonistas que se vêem designados como a origem do mal e que carregam esse peso. Quem falará sobre a dor daqueles que escolheram dar um sentido coletivo a seu compromisso e que descobrem, de golpe em golpe, que desgraça pouca é bobagem, ao serem identificados pela massa como elementos perturbadores da ordem pública; daqueles que se esforçam por salvar aqueles que podem sê-lo? Policiais, magistrados, funcionários da justiça, professores, pesquisadores, médicos... eles se reconhecerão.

Mas, ainda assim, para realmente apreender estas mudanças, é necessário avaliar dois transtornos em nossas representações. Sobre elas apóia-se a solução política perversa: hoje a questão não é mais "o que fazer?", mas sim "a quem responsabilizar?". Não se trata mais de construir juntos, mas sim de saber quem é responsável pelas disfunções.

A burocracia administrativa é seu agente. Ela se infiltra por todo o lado e nos dita aquilo que deve ser e como fazer mais com menos. São criadas as regras. São estabelecidos os procedimentos. Acusa-se. Comunica-se. Porém não é garantido que construamos juntos o futuro do país.

O segundo transtorno é o fato de a ética da responsabilidade tornar-se caduca, que não devemos confundir com a busca permanente de um responsável. Esta última provém de uma lógica do suboficial, que cobra do soldado raso a corveia. Como Michel Foucault claramente pressentiu, houve um deslizamento do paradigma do sujeito responsável (ou irresponsável, se doente) àquele do indivíduo perigoso, portador de riscos. Doente ou não, ele é a nova imagem do medo.

O verdadeiro responsável, aquele a quem devemos imputar a origem do crime, não é mais quem o cometeu, mas sim o juiz que o liberou, o psiquiatra que decidiu sua alta do hospital, ou o agente de custódia que não o vigiou o suficiente... Basta refletir alguns segundos, para avaliar o quanto este novo olhar que desresponsabiliza o autor para superresponsabilizar aquele que o enquadra traz graves consequências, pois o criminoso não é mais sujeito de seus atos, mas sim aquele que transfere para os atores do campo social a desonra de seu próprio gesto.

Reconhecemos a retórica habitual de nosso presidente: o fatalismo não existe; há certamente um responsável; alguém terá de pagar, esta é a regra... Depois do mulçumano, agora é a vez do Rom(5) representar o louco perigoso. A ele cabe encarnar este perigo de que o Estado securitário necessita para se autoafirmar. Todos os perversos sabem disto: é aos mais fracos que convém atacar para um resultado garantido.

Desde então, compreendemos que todos os argumentos sensatos, todos os desenvolvimentos a partir de nossa história prestigiosa, nossos valores civilizatórios, tenham pouco peso. Ao contrário, eles reforçam a determinação daqueles aos quais se dirigem estas críticas. Esta lei em discussão, se for votada, será apenas o último avatar, aflitivo, miserável, de um sistema original que foi testado durante quase dois séculos.

Ela será posta em desuso, para abrir caminho a uma judiciarização das hospitalizações, como em todos os países de desenvolvimento comparável ao nosso. Os historiadores se perguntarão a que teria servido este entreato legislativo imposto contra o consentimento da profissão. A fatores exclusivamente conjunturais. A quase nada, em relação aos riscos fundamentais que são, para toda sociedade, o modo com que ela trata seus cidadãos mais desfavorecidos e o equilíbrio frágil e delicado entre a necessidade de tratamento e o respeito às liberdades individuais. Este é o "quase nada" que parece caracterizar o período que atravessamos.

A "filosofia" que subentende o conjunto deste projeto de lei é repugnante. É preciso recusá-lo.

(1) Artigo publicado no jornal Le Monde em 21/03/2011. Disponível em: http://www.lemonde.fr/idees/article
/2011/03/21/la-loi-sur-la-psychiatrie-est-l-indice-d-un-etat-qui-prefere-punir-que-guerir_1496307_3232.html. Tradução de Cristina Barczinski.
(2) Daniel Zagury é psiquiatra, médico-chefe do Centro psiquiátrico de Bois-de-Boudy (Seine-Saint-Denis), especialista junto aos tribunais, e autor do livro L'enigme des tueurs en série (O enigma dos matadores em série).
(3) No texto original, État- providence e État-gendarme. (N. da T.)
(4) Fuite en avant, no original, caracteriza uma atitude frente ao desejo - o fato de nada querer saber sobre ele. (N. da T.)
(5) Em 2010, centenas de ciganos da etnia Rom foram deportados da França para a Romênia e Bulgária. (N. da T.)




 
 
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