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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    17 Junho de 2011  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

"Acidente" no túnel do tempo


MARIO PABLO FUKS(1)

Um dos aspectos mais notáveis e significativos da atualidade mundial, em diversas latitudes do planeta, é a emergência de manifestações multitudinárias desejantes de uma sociedade mais democrática e mais justa, que respeite a dignidade das pessoas e atenda aos interesses das maiorias. Um elemento fundamental que caracteriza esses movimentos é o renascimento da rua e da praça pública como espaço político de contestação e pronunciamento em prol de mudanças.

É sobre este pano de fundo que um episódio aparentemente passageiro, menor e circunstancial, ocorrido no contexto local, ganha uma significação sintomática que demanda reflexão. Em fins de maio foi reaberta no Senado a galeria de fotos que conta a história da Casa, localizada em um espaço muito visitado da mesma, chamado "Túnel do Tempo". Como se explica o modo ligeiro, em alguma medida blasé, quase provocador, com que o Presidente do Senado em exercício, ex-presidente da Nação e Acadêmico das Letras, justifica a omissão na mesma dos painéis referentes ao impeachment do ex-presidente Collor, alegando que dito acontecimento foi um mero acidente e que nos dias de hoje não se teria produzido?(2) Claro que reações não se fizeram esperar. Em coisa de horas precisou voltar atrás e declarar, através de comunicado "...que não foi o autor nem o curador da exposição" e que já "determinou a inclusão do episódio do impeachment do presidente Fernando Collor na linha de eventos na referida mostra"(3).

Ocupar um cargo dessa proeminência não habilita a ninguém a dizer e fazer simplesmente o que lhe apraz e existem forças no cenário institucional com visões diferentes da história política do país, dispostas a fazê-las valer. Mas, além disso que já se conhece, cabe afirmar que esse incidente, tanto o ato de exclusão como a "teoria do acidente", merece ser registrado como um gesto autoritário e antidemocrático paradigmático, que quer apagar da memória da cidadania - em particular dos jovens -, anulando sua importância e desqualificando seu sentido, um acontecimento político-institucional dos mais importantes e significativos da história nacional. Acontecimento que tem como uma de suas marcas decisivas a presença e o pronunciamento do povo nas ruas e nas praças.

Pela chamativa semelhança cênica, é difícil deixar de comparar esse gesto do Presidente do Senado com outro gesto de sentido político oposto - o do presidente Kirschner quando recém empossado: a retirada da imagem do ditador Videla da galeria de retratos de presidentes argentinos. Gesto este que, de modo tão agudo e preciso, León Rozitchner analisou, em artigo publicado no número anterior deste Boletim(4), como um dos atos fundantes de um novo tipo de subjetividade política na sociedade argentina.

Comentando as manifestações dos "indignados" nos países da Europa, Boaventura de Souza Santos(5) afirma que a importância de sua luta mede-se pela ira com que as forças conservadoras investem contra eles. Para o sociólogo português, os jovens acampados no Rossio e nas praças de Espanha são os primeiros sinais da emergência de um novo espaço público - a rua e a praça - onde se discute o sequestro das atuais democracias pelos interesses de minorias poderosas e se apontam os caminhos da construção de democracias mais robustas, mais capazes de salvaguardar os interesses das maiorias. Trata-se de um avanço histórico notável, que só a miopia das ideologias e a estreiteza dos interesses não permite ver. E observa também que os momentos mais criativos da democracia raramente ocorreram nas salas dos parlamentos. Ocorreram nas ruas, onde os cidadãos revoltados forçaram as mudanças de regime ou a ampliação das agendas políticas. As elites, tanto políticas como culturais, não compreendem e não suportam a interferência das multidões no jogo institucional, movidas por um desejo de democracia verdadeira e real.

Voltando agora para o Brasil, este enfoque é coincidente com o que diversos analistas políticos e cientistas sociais sustentaram em relação aos acontecimentos de 1992 que desembocaram no impeachment. O trabalho da CPI da Corrupção, ao longo de três meses, e a apresentação de suas conclusões deslancharam uma crise política de proporções inusitadas, em que a questão da ética na política foi ocupando o centro de um debate que, transcendendo o âmbito legislativo, espalhou-se pela totalidade do espaço social. A mobilização estudantil, reforçada pela sociedade civil organizada e pelos meios de comunicação, foi o fator decisivo para que as investigações da CPI avançassem e não fossem bloqueadas pela interferência governamental. Sem esta cobrança da sociedade o impeachment provavelmente não teria acontecido.

O que agora se tenta qualificar como "acidente" foi a abertura e expansão de um espaço político-subjetivo de alta capacidade elaborativa, em que a mobilização de massa nas ruas, ao longo do processo de crise, operou uma reviravolta na cena política, ao dar sustento popular à impugnação da figura central da autoridade. Sua capacidade de intervir com vivacidade em função de cada momento, com produtividade política e criatividade simbólica, constitui uma das marcas de sua singularidade. O impacto traumático social foi mínimo. Pareceu, ao contrário, que a sociedade estava conseguindo sair de uma paralisia.

No contexto do Movimento pela Ética na Política se realizaram múltiplos debates que alimentaram a participação nas manifestações. Previsões preconceituosas alertaram para o fato de haver um "embrião de massa" constituído por jovens estudantes politicamente imaturos, o que tornaria o movimento susceptível às manipulações da mídia e que, no melhor dos casos, este não chegaria além de uma explosão catártica passageira. Isto foi categoricamente desmentido pelos fatos reais. A indignação e a denegação de apoio ao presidente, quando este convocou a manifestar-se a seu favor nas ruas vestindo o verde amarelo pátrio, não foi uma explosão catártica. Foi um ato coletivo de rebeldia legítima, de vontade política, de sentido ético que se estendeu no tempo, tomou formas diferentes e deu sustentação ao processamento democrático da crise, culminando na transmissão da votação para todo o país, realizada no regime de voto aberto. Não foi uma massa manipulada por símbolos, mas produtora de símbolos inéditos de revolta e impugnação, como a cor preta nas roupas e nos carros. À medida que avançava o processo no sentido desejado, mudaram para as caras pintadas de verde e amarelo, com um sentido novo que é resgatado na memória coletiva como imagem emblemática do movimento do impeachment.

Nos debates simultâneos ou posteriores, analistas políticos, cientistas sociais e psicanalistas retomaram frequentemente os conceitos freudianos ligados à psicologia das massas, revalorizando, revisando, questionando, explorando novos caminhos. Olhando para a sucessão de acontecimentos desde este ponto de vista torna-se possível ampliar a perspectiva. Dissemos antes que não houve uma situação traumática mas sim um processo elaborativo. Dissemos também que a sociedade parecia estar saindo de uma situação de paralisia. Isto tem a ver com uma situação anterior, esta sim desestabilizadora e traumática, que opera como pano de fundo latente. Acontece no momento em que são tomadas as medidas iniciais do governo, impondo o confisco geral dos depósitos bancários e a reforma monetária, e que sucede a um período anterior de hiperinflação. É uma situação de pânico de massa, massa pulverizada, paralisada, sem dinheiro, sem regras, procurando orientar-se por indícios e sinais e exposta à manipulação midiática. Collor governa sozinho, concentra sobre sua figura o poder, a emissão de sinais, ocupando a totalidade do espaço político na cena midiática, numa montagem fetichística de sua imagem e de seu discurso, cujo desgaste tentará dissipar espelhando-se na massa. O pano preto impediu qualquer reflexo.

Vale lembrar agora daquele desejo negro - como foi dito em algum momento - que não tem cumplicidade com o poder, que se insubordina, que opera rupturas. Criação de autonomia, recuperação de poder que se manifesta na afetividade entusiasta e alegre, modos novos de subjetivação que não transitam pela incorporação das figuras de poder. Apenas algumas idéias extraídas do túnel do tempo(6) que nos ajudam a pensar não só os sintomas do mal-estar na contemporaneidade como também esses fatos extraordinários que ultimamente estão sendo chamados de "acidentes".

(1) Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professor do Curso de Psicanálise e coordenador do curso de Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea, supervisor do Projeto de Intervenção na Clínica das Anorexias e Bulimias, integrante do grupo de trabalho e pesquisa Psicanálise e Contemporaneidade e da equipe editorial deste Boletim Online.

(2) http://noticias.uol.com.br/ultnot/reuters/2011/05/30/ult27u82793.jhtm
(3) http://noticias.uol.com.br/ultnot/reuters/2011/05/31/ult27u82806.jhtm
(4) Rozitchner, L. "Um novo modelo de casal político", Boletim Online 16, abril de 2011.
(5) Santos, Boaventura S. "Nas praças, um programa", Outras Palavras, 3/06/ 2001
(6)Fuks, M. P. "A ética na política - Sobre o Impeachment". Apresentado no Encontro sobre os Mal-estares do Fim do Milênio, Faculdade de Direito da Universidade de Santa Catarina, Florianópolis, 1992.




 
 
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