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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    17 Junho de 2011  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

Psicanálise em trabalho 1: Para além da interpretação dos sonhos



O SONHO DE CONTRATRANSFERÊNCIA

DECIO GURFINKEL(1)

O trabalho discute o uso do sonho de contratransferência do analista como um possível instrumento de trabalho em sua prática clínica. Se o sonho de transferência é um sonho de um analisando que faz referência - seja no conteúdo manifesto, seja no conteúdo latente - à pessoa de seu analista, os sonhos de contratransferência são aqueles sonhados, desta vez, pelo próprio analista, e nos quais seus pacientes se fazem presentes de alguma maneira, direta ou indiretamente. Inicialmente, tomo o mítico e inaugural sonho da injeção de Irma como um exemplo prototípico de sonho de contratransferência: nele, Freud sonha com Irma, e nas associações surgem diversos outros pacientes, assim como suas preocupações quanto ao destino de diversos tratamentos; o imenso tecido associativo do sonho contém uma rede de referências a aspectos do trabalho clínico e de pesquisa de Freud que está profundamente entrelaçada a sentidos bastante pessoais. Bem, se nos parece óbvio que os pacientes que figuram no sonho servem como elos intermediários para expressar os caminhos ocultos do desejo inconsciente da pessoa de Freud, há aqui algo mais: no espaço onírico, está também em curso um trabalho de elaboração inconsciente sobre seu ofício clínico, através do qual se busca respostas a impasses e enigmas experimentados na vida de vigília. Winnicott, em O ódio na contratransferência, nos dá notícia de como o uso deliberado do sonho de contratransferência pode ter um papel muito importante para o analista em trabalho. Ele nos descreve um período particularmente difícil de sua clínica, quando cometera diversos erros com seus pacientes; a condição favorável para o trabalho só foi recuperada quando ele compreendeu que a dificuldade se originava da análise de uma paciente psicótica, o que ficou claro a partir de um sonho do próprio Winnicott. Ele nos descreve o sonho, a análise que pôde realizar do mesmo e os efeitos disto em sua clínica, e chama este sonho de "sonho curativo". A partir destas considerações, descrevo um sonho de contratransferência tido em minha própria clínica, e discorro sobre a função que tal sonho teve na compreensão das dificuldades que enfrentava então e na condução ulterior do caso em questão. Tratava-se da análise de uma paciente com fortes características esquizóides, e na qual predominava uma transferência de caráter desértico; no sonho, a paciente me convida para participar de uma representação teatral, solicitando, assim, através de uma comunicação inconsciente, que eu participasse de forma mais ativa e viva da construção de seu teatro psíquico interno. Observamos, assim, que em certas situações a função onírica do analista e seu espaço de sonho podem ser convocados no seu trabalho clínico e servir como uma importante ferramenta nesta forma específica de comunicação que é a psicanálise, o que nos faz pensar que o que estrutura a situação analítica e sustenta a transferência é, além do suposto saber, também um suposto sonhar: supõe-se, no próprio analista, uma capacidade de sonhar, e uma disposição para colocar este sonhar a serviço de um outro.

 

METAPSICOLOGIA DOS RESTOS DIURNOS

FLAVIO CARVALHO FERRAZ(2)

O trabalho se inscreve na extensa pesquisa - quem vem sendo empreendida pela psicanálise contemporânea - a respeito da trajetória que existe entre a percepção e a representação. A argumentação parte da proposição feita por Christophe Dejours de que o sonho auxilia no processo de perlaboração de impressões colocadas em latência durante a vigília. Uma vez que o objeto da percepção não seja descartado mediante o acting out (como no caso da patologia não-neurótica), ele poderá manter-se em latência no pré-consciente, até que seja recalcado durante o sono, por meio do sonho. Portanto, estamos aqui diante de uma outra dimensão do sonho, diferente de sua função de expressão do recalcado, para a qual se propôs, no trabalho, o nome de função deferente. Esta outra dimensão, auxiliar da perlaboração, recebeu o nome de função aferente, por seu papel na acomodação de objetos da percepção em meio às representações inconscientes prévias. Esta forma de encarar a função do sonho exige um aprofundamento na metapsicologia dos restos diurnos, que podem ser então tomados como perceptos que são, essencialmente, Gestalten enigmáticas que desencadeiam o processo onírico com vista à construção da representação.


O CAVALEIRO MEDIEVAL E A FULIGEM DA CIDADE GRANDE

MIRIAM CHNAIDERMAN(3)

José Martins inicia seu livro (Des)Figurações. A vida cotidiana no imaginário onírico da metrópole (SP, Hucitec, 1996) com a epígrafe de Henri Lefebvre: "Lucidez, mas não pensada, consciência, mas que se refere ao que é externo, o percebido desempenha-se como intermediário (como mediação) entre o concebido e o vivido, mas no curso desse jogo ganha densidade e força".

Essa epígrafe justificará as análises que são feitas no decorrer da pesquisa de Martins, onde os sonhos que têm como conteúdo o urbano são analisados e pensados como evidenciando dificuldades do dia-a-dia de cada um. Junto de uma equipe, entrevistou um número significativo de habitantes da cidade de São Paulo que lhe relataram sonhos em que a cidade se fazia presente.

É lindo o sonho que escolhi como paradigma para nortear minha fala:

Revestido de armadura dourada, segurando escudo e longa espada, o cavaleiro medieval entra num prédio da av. Paulista. O porteiro lhe pergunta aonde vai assim armado. Ele responde que está em São Paulo, não é daqui e tem que se defender. Sobe então ao 22.o andar e entra numa sala onde muitas pessoas assistem a um filme. Avança contra um homem e uma mulher e os esquarteja com sua espada. Os outros presentes, indignados, se unem e o atacam, cada um empunhando seu lápis, como se fosse espada.

Encurralado, o cavaleiro dourado se atira pela janela, sente-se caindo e, finalmente, se esborracha em sua cama. E acorda. Já desperto, explica, a quem lhe pergunta, que no dia anterior, no mesmo lugar desse combate, que é aquele em que trabalha, em plena vigília, fora desafiado abertamente pelos colegas ao apresentar uma tese útil relativa ao trabalho que fazem.

Desfigurado/transfigurado esse homem de classe média e do trabalho se liberta em sonho da coação representada pelas objeções dos colegas e superiores e, finalmente, na escuridão da noite e na solidão da cama dá combate a seus inimigos. O sonho do cavaleiro andante do asfalto lhe revela uma cidade que é cenário de inimigos anônimos, de confrontos mortais, tanto nas ruas e locais de trabalho quanto no interior da própria consciência. A um só tempo, seu imaginário onírico lhe faz a crítica da cidade adversa e do trabalho opressivo. O sonho lhe diz que se move em cenários que não são cenários de acolhimento. Teme os estranhos, mas ele próprio é o estranho, o excluído, o desfigurado.

Para Martins, a redução da interpretação dos sonhos a técnicas de amansamento e domesticação da insurgência imaginária, dessocializa os sonhos e abre um abismo entre a crítica social e a realidade social que os contêm.

Se no sonho o desencontro e a alienação se revelam (e se encobrem) como mal-estar, é no mal-estar que o sonho nos indica que, apesar dele, ainda sonhamos e que o sonho não acabou.

Essa tessitura entre o mundo que nos cerca e o singular em cada um, se explicita no trabalho do sonho. Christopher Bollas faz uma leitura da cidade como alma. Kaës propõe o sonho partilhado. Essa trama entre o percebido, a marca, o vestígio e esse desconhecido em nós, é objeto de nosso trabalho.

Através do estudo de Jerusa Pires Ferreira - Cultura das Bordas, sobre os livros dos sonhos através dos tempos - resgatamos o percurso de Freud através da literatura popular. Estudando uma literatura chamada "literatura dos sobreviventes" onde pessoas que passaram por situações-limite buscam dar forma ao terrorífico do que viveram, Nathalie Saltzmann nos fala como o desejo é o que mantém a vida, é o que escapa aos regimes totalitários.

Sonhando tornamo-nos todos cavaleiros medievais em lutas insanas pela nossa singularidade.
(1) Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e professor do Curso de Psicanálise.
(2) Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e professor do Curso de Psicanálise.
(3) Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e professora do Curso de Psicanálise.




 
 
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