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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    19 Novembro de 2011  
 
 
CINEMA

Resenha do filme Melancholia, de Lars von Trier


ANA LÚCIA PANACHÃO (1)


Melancholia é instigante!

Para descrever de um jeito simples, o filme aborda os medos mais fundamentais dos seres humanos, o do desamparo e o da finitude, e põe em cena a angústia frente à impossibilidade de sustentação da vida e de seu sentido.

A incidência da claridade do planeta Melancholia sobre a Terra duplica a projeção das sombras dos arbustos sobre o gramado da exuberante propriedade que abrigará a festa de casamento da protagonista. Imagem metafórica que sugere a divisão e o duelo a ser travado entre vida e morte.

No prólogo, a câmera incrível de Lars Von Trier, exaltada pela trilha sonora de Wagner, faz desfilar lentamente imagens de inusitada beleza, sequência que introduz o clima em que se desenrolará o filme. O que se condensa nesse início se desdobrará com maestria quadro a quadro.

A atriz (Kirsten Dunst), linda, encarna visceralmente o insuportável que sua personagem Justine procura em vão sustentar. Tudo despenca: as aves mortas do céu, o cavalo que arria, a neve que derrete na pintura que se desmancha. Apenas Justine flutua em câmera lenta, solta, em meio ao desmantelamento onde não consegue ancorar-se. Arrasta-se com dificuldade presa ao fio cinzento que a impede avançar, angústia lodosa transborda em seus olhos.

Melancholia parece fecundar a Terra.

Após esse início impactante, momento de captura, o filme acontece em dois atos: Justine e Claire.

Primeiro ato: Justine, vestida de noiva como manda o figurino, esforça-se para cumprir o protocolo de um mandato ideal sobre ser feliz.

A festa de casamento suntuosamente preparada no castelo, os convidados, os detalhes rica e obsessivamente escolhidos contrastam com os movimentos visivelmente agônicos da personagem que, tomada de lucidez melancólica, não consegue velar, como os outros, o sem sentido de sua existência.

Nesse plano tecido por sua irmã Claire (Charlotte Gainsbourg) e financiado por seu abastado e avarento cunhado John (Kiefer Sutherland), a tentativa é de equilibrar-se na farsa tênue sem desmoronar, não importa o que isso custe. Pela exuberância do cerimonial e a fartura da produção exalta-se o casamento que deveria segurar Justine pelo fio vacilante suspenso sobre o abismo terrorífico em que ela ameaça precipitar-se.

Claire nada quer saber sobre seu pavor, pede apenas que ela aguente e não estrague a festa. Justine recorre então à mãe (Charlotte Rampling) para dizer de seu medo e encontra nas palavras dela fria intolerância a qualquer sofrimento singular. Essa crueza que iguala a todos não lhe deixa saída, na fala da mãe não há lugar possível para Justine e ela é lançada como dejeto no vazio.

Em seu desamparo, Justine vaga pelos salões do castelo e não encontra melhor sorte ao dirigir-se ao pai (John Hurt), espécie de bufão recém saído de um espetáculo nonsense, desalentador.

Michael (Alexander Skarsgard), noivo cuidadoso e desvitalizado oferece a Justine seu amor e a foto do paraíso ao qual ela deverá conformar-se. Para ela, ele parece ser apenas o coadjuvante inocente no cenário fracassado em que se transforma a festa e o casamento.

Justine, desenlaçada de seu desejo, sucumbe!

Segundo ato: Claire acolhe Justine no auge de sua depressão.

É no segundo ato que se apresenta a possibilidade de uma colisão fatal entre o planeta Melancholia e a Terra. A proximidade da catástrofe coloca Claire frente a frente com seu próprio desamparo, até então recoberto pela suposta garantia da qual seu marido é o fiador.

Ele, amedrontado, agarra-se ao discurso científico para, através de cálculos elaborados e sofisticados telescópios, medir as probabilidades de colisão e assim tentar controlar e proteger-se do inevitável.

Em contrapartida, seu filho Tim (Brady Cobert) fabrica uma pequena engenhoca, uma varinha com um aro circular de arame numa das extremidades que, mantida em posição invariável apontada em direção ao planeta, indica se ele está se afastando ou se aproximando. Através desse artefato simples não há como enganar-se.

A constatação de que o fim está próximo leva John a desistir dos seus, ele se retira sem dizer palavra e vai morrer entre os animais. Claire não tem mais onde se amparar. A perda das garantias e a recusa da morte deixam Claire em pânico. Diante do fim do mundo, ela se inquieta, tenta fugir, demora a dar-se conta de que não há para onde ir. Em sua angústia agitada carrega o filho, mas não o acolhe e finalmente pede que Justine a ajude.

A iminência da devastação que desespera Claire é a redenção para Justine. Ela está calma, conhece bem a colisão com o traumático: atravessada pela perda da ilusão e das garantias, entende que estamos sós.

Finalmente acontece algo restaurador, o laço afetivo que une Justine ao seu sobrinho, os códigos compartilhados por eles, a cumplicidade expressa quando ele a chama pelo apelido de tia "Quebra-Aço" apresentam uma dimensão de troca simbólica que ela desconhece em suas outras relações.

Restituídas as palavras, ela pode construir com ele uma caverna mágica, reduto feito de frágeis estacas colhidas à última hora, proteção fantasiada que a um só tempo acolhe o medo e a condição humana de finitude. Através desse gesto, ela, delicada e generosamente, consegue dar a ele o que não pode ter, um lugar simbólico possível apesar da certeza do encontro com o imponderável.

 


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1 Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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