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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    20 Abril de 2012  
 
 
O MUNDO, HOJE

A LOUCURA EM SOROCABA – 7 MANICÔMIOS E 836 MORTOS


DÉBORAH DE PAULA SOUZA [1]

 

A pesquisa realizada pelo Prof. Dr. Marcos Roberto Vieira Garcia, da Unidade de Sorocaba da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos - revelou que, no período entre 2004 e 2011, 863 pacientes psiquiátricos morreram em sete hospitais da cidade de Sorocaba e redondezas. A região concentra o maior número de leitos psiquiátricos do SUS do Brasil – são 2.792 leitos em sete grandes manicômios, quatro deles em Sorocaba (Vera Cruz, Mental, Teixeira Lima e Jardim das Acácias); dois na estrada que liga Sorocaba a Salto de Pirapora (Santa Cruz e Clínica Salto) e o Vale das Hortências, em Piedade (cerca de 30 km de Sorocaba). Seis hospitais são particulares, geridos por empresas privadas, apenas o Jardim das Acácias é de iniciativa filantrópica, gerido por entidade beneficente sem fins lucrativos. Todos os hospitais citados na pesquisa recebem verba pública do SUS. Em 2011 a soma destinada às sete instituições foi de quase 40 milhões de reais.

O que torna especialmente perturbadora a pesquisa do Professor Marcos é o fato de que o que ela revelou não era exatamente um segredo. Dada a dificuldade de entrar nesse tipo de instituição, o professor optou por trabalhar com dados públicos do DATASUS, entre eles os Arquivos reduzidos de Autorizações de Internação Hospitalares - AIHs – que são usados como referência de repasse de verba pública para hospitais credenciados ao SUS.

A comparação entre os números da região de Sorocaba e os dos outros grandes manicômios do Estado de São Paulo evidencia a calamidade (Tabelas Comparativas entre a região de Sorocaba e o restante do Estado de SP). A análise de mortalidade levou em conta dois estudos complementares, com dados públicos distintos (do Sistema de Informações sobre Mortalidade, de 2006 a 2009, e do Sistema de Informações Hospitalares, de 2004 a dezembro de 2011), para chegar a conclusão de que, nos últimos anos, naquela região morre um paciente a cada três dias. Entre eles, muitos jovens. A idade média dos mortos na região é de 53 anos, enquanto no restante do Estado é de 62 anos. E morre-se muito mais no inverno, em especial por doenças infectocontagiosas e problemas respiratórios (o que não acontece em outras localidades), o que sugere que os pacientes não tiveram os cuidados necessários nos dias frios nem foram encaminhados para tratamentos da clínica geral (como no caso de gripes, pneumonia, infartos, etc.). Existe também um número significativo de mortes por motivos mal-esclarecidos.

A repercussão do estudo e de seus números estarrecedores se deu em vários níveis: uma avalanche de reportagens na mídia, que deu visibilidade também às denúncias de ex-funcionários e familiares de pacientes mortos; auditorias e fiscalizações realizadas em decorrência da pesquisa; afastamento do ex-secretário de Saúde de Sorocaba, Milton Palma (de acordo com reportagens sobre o caso, é sócio de três hospitais da região).

Como represália, os seis hospitais particulares (a casa filantrópica não participou dessa intimidação) tentaram anular os pedidos de investigação deflagrados pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, não obtiveram sucesso na empreitada e abriram processo contra o Professor Marcos Garcia, e também contra a mãe de Daniela Caldeira - morta aos 30 anos em um dos manicômios da região -, que denunciou o caso, e contra o psicólogo Lucio Costa, membro do FLAMAS - Fórum da Luta Antimanicomial de Sorocaba.

Na revista Carta Capital, que divulgou a pesquisa e sua repercussão, Lúcio Costa relata o que viu durante um estágio realizado no Hospital Mental em 2006: “Eu percebia um quadro de funcionários muito inferior ao necessário para atender os pacientes. O Mental é um hospital feminino, e eu via uma quantidade grande de mulheres nuas, muitas vezes urinadas e sentadas em cima das próprias fezes. Além de um excesso de medicação, o que impossibilitava essas mulheres de participar de grupos terapêuticos”.

Em contraponto aos ataques e tentativa de desqualificação, na mesma época em que os hospitais abriram o processo contra o autor do trabalho, foi anunciado que o Fórum da Luta Antimanicomial de Sorocaba (FLAMAS) ganhou o Prêmio Direitos Humanos na categoria “Enfrentamento à Tortura”. “Este prêmio é a mais alta condecoração do Governo Brasileiro a pessoas e entidades que se destacaram no combate às violações de Direitos Humanos no país. O fato de o grupo tê-lo recebido mostra de forma inequívoca o reconhecimento da importância da pesquisa realizada por mim e disseminada pelo grupo”, declara o professor Marcos.

A todos que quiserem mais informações sobre o assunto, recomendamos uma visita ao blog criado pelo pesquisador e alguns apoiadores: http://liberdadepesquisa.blogspot.com/ .

A seguir uma breve conversa com o professor Marcos Garcia:

D – O senhor revelou a situação de sete hospitais e foi processado por seis, que pedem indenizações por danos morais e materiais. Como está essa  situação?

M – O processo foi aberto pelos hospitais, mas eu ainda não fui citado. A Universidade entrou na semana passada com uma petição para ser incluída como parte interessada no processo, assumindo a defesa da pesquisa. Caso a petição seja aceita, o processo passa automaticamente para o âmbito da justiça federal.


D - Como avalia a repercussão em torno de sua pesquisa?

M – As implicações são muitas. Considero que a Reforma Psiquiátrica avançou aos trancos e barrancos no país, porém em Sorocaba ela não aconteceu – encontrou lá uma resistência enorme, não sei se motivada por motivos ideológicos, políticos ou financeiros. Sorocaba é a segunda cidade em número de leitos psiquiátricos pelo SUS do país e Salto de Pirapora, cidade próxima, a quarta. As outras duas cidades da lista são Rio de Janeiro e São Paulo.

A divulgação da pesquisa trouxe à tona questões políticas da região. Por exemplo, o Secretário de Saúde de Sorocaba, que se mantinha no posto há anos, e já tinha passado por três prefeituras,  acabou caindo [ele se refere ao ex- secretário Milton Palma, que de acordo com reportagens sobre o caso, era sócio de três hospitais da região].  A reação inicial à pesquisa foi a tentativa de desqualificá-la. Teve até um vereador que fez um discurso na tribuna, dizendo que eu mentia e que a Universidade deveria me demitir. Não surgiu nenhum questionamento, porém, de fontes científicas e acadêmicas. Simplesmente porque a pesquisa está baseada em números oficiais, comprovados. Não é possível desconsiderá-la, pois não há como supor que os números de mortos sejam outros. Trabalhei com dados que já estavam disponíveis no DATASUS.


D – Esses dados estavam disponíveis nos arquivos oficiais, mas até então ninguém tinha articulado esses números de modo que eles fizessem sentido.

M – Eu fui procurado pelos integrantes do FLAMAS em 2010, a fim de levantar indicadores sobre a situação dos hospitais psiquiátricos locais. Aceitei o pedido porque a região concentra o maior número de leitos psiquiátricos do país. A pesquisa investigou os números de óbitos nos manicômios da região de Sorocaba no período entre 2044 e 2011 e concluiu que a mortalidade ali era 118% maior do que a dos outros grandes manicômios do Estado de São Paulo no mesmo período. (Veja tabelas).


D – Por que decidiu recorrer aos arquivos públicos?

M – Porque é difícil para alguém entrar no hospital particular para obter esse tipo de informação. E se conseguir, é muito comum que se tente desqualificar as informações colhidas entre pacientes – vão dizer que por eles serem loucos, o que disserem não é válido.


D - Quando iniciou o trabalho, esperava encontrar um número alto de mortes? Como se sentiu ao perceber a dimensão do problema?

M – Sabia da possível existência de irregularidades, mas quando os números de mortos foram aparecendo... eu tremi, literalmente. A situação aparentava ser grave demais, motivo pelo qual o primeiro relatório parcial não foi assinado apenas por mim, mas por uma equipe do Fórum de Luta Antimanicomial de Sorocaba (Flama), cerca de 20 pessoas ligadas a quatro universidades.


D – Apesar da tentativa de intimidação dos donos dos hospitais, sua pesquisa conseguiu suscitar as investigações necessárias?

M – Sim, e tudo isso está documentado no blog que criei para me defender. As investigações deflagradas pela pesquisa confirmaram dados e reafirmaram muitas de minhas hipóteses. Um dos relatórios de inspeção recomendou oficialmente o fechamento do Hospital Psiquiátrico Mental.

As inspeções mobilizaram as principais instituições, como o Ministério da Saúde, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, o Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, além de comissões ligadas ao Conselho Federal de Psicologia; ao Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CONDEPE/SP), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. Em Sorocaba, foi criada uma Comissão de Vereadores na Câmera Municipal para investigar a situação dos hospitais psiquiátricos da cidade.


D – Pode mencionar alguns problemas detectados por essa auditoria e relacionado ao número de mortos?

M – Na auditoria interna da Prefeitura de Sorocaba verificou-se, por exemplo, que os pacientes psiquiátricos, quando têm algum sintoma físico, muitas vezes não são encaminhados para os hospitais gerais. O problema é que na cidade, para cada dois ou três leitos psiquiátricos, há um leito no hospital geral –  e este não quer absorver a demanda, acha que o problema é do hospital psiquiátrico, que por sua vez não dá conta. Se um paciente precisar tirar um raio X para tratar uma pneumonia, ele não é atendido adequadamente.


D – Além de ser processado, o senhor em algum momento foi ameaçado?

M – Não fui ameaçado fisicamente, mas sofri um desgaste mental muito grande. A meu ver, o processo não é contra a minha pessoa mas contra o tipo de mentalidade que eu represento, um pesquisador ligado à Universidade, à Luta Antimanicomial e aos Direitos Humanos, e com apoio de estudantes, professores e instituições com visões de mundo e de saúde diferentes do poder local. Esse é o embate – e ele se acirra quando se abre uma Universidade Pública em meio a uma sociedade conservadora. O pior é que, apesar de todos os últimos acontecimentos e investigações, o índice de mortalidade nos hospitais psiquiátricos não diminuiu – os dados mais recentes ainda não foram anexados à pesquisa, mas já sabemos que a linha de óbitos continua altíssima, inclusive aumentando um pouco.


D – Essa luta de forças se manifestou também em âmbito judicial, com visões antagônicas entre promotores...

M – Para se ter uma ideia do nível de discussão, vale a pena ler o ofício do promotor de Justiça Jorge Marum, falando mal da reforma psiquiátrica e de Michel Foucault [http://abp.org.br/abp/MP.pdf]. Esse senhor pedia o arquivamento dos pedidos de investigação dos hospitais, mas a Defensoria Pública recorreu e, por unanimidade, a investigação foi reaberta.


D – No ano passado, houve um movimento em torno do seu nome e da liberdade de pesquisa. A nota de apoio angariou mais de 700 assinaturas.  Além disso, o FLAMAS recebeu o prêmio de Direitos Humanos. O que isso significou para o senhor?

M - Professor – Significou muito, essa solidariedade foi fundamental. E recebemos apoios de Associações Científicas que representam milhares de pesquisadores, como a ANPEPP, ABRASCO, ABRASME, ABRAPSO, ABOP e ABPSA, que assinaram essa nota de apoio pela liberdade de pesquisa. Em dezembro de 2011, o Ministro da Saúde veio a público, na televisão, comentar a grave situação dos hospitais de Sorocaba, e na mesma época soubemos do prêmio, entregue em Brasília pela presidente Dilma. Posso dizer que 2011 não foi fácil, a pesquisa abriu a caixa de Pandora. Mas essas manifestações contundentes de apoio me livraram de um final de ano difícil. Mas agora, com esta pesquisa já encerrada, posso me concentrar na outra que desenvolvo, voltada à população jovem em situação de rua.

 

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[1] Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise e jornalista.



 
 
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