CAMILA FLABOREA [1]
Com o risco de ser chamada de retrógrada, confesso que sou daquelas que precisa do livro. Aquele mesmo, o físico, como se diz hoje, para contrapô-lo ao virtual, o e-book. E estava aguardando ansiosa o lançamento da tradução de Marilene Carone de “Luto e Melancolia”, artigo fundamental escrito por Freud em 1915. Explico-me: até hoje, o acesso a esse texto era possível através de um ou outro xerox que circulava pelas salas de aula de psicanálise e que, sem perder seus preciosos conceitos e estilo, convidava os estudantes a conhecer um Freud que de fato fala português[2].
E aconteceu no dia 8 de fevereiro de 2012 o tão esperado lançamento. Com direito a palestras e textos inéditos de autores convidados, a Cosac Naify trouxe ao mercado e democratizou (tanto quanto um livro pode ser democrático nesse país) uma linda edição de um texto brilhante de Freud, traduzido à sua altura.
Carone, falecida em 1987, estava mergulhada no projeto de retraduzir toda a obra de Freud para o português. Mas os limites da vida são inexoráveis e ficamos sem a maioria dos trabalhos, melancólicos pela promessa de outras belas traduções que poderiam ter vindo a público.
Marilene tinha como método traduzir diretamente do alemão, o que não ocorria com a edição brasileira da Imago, baseada na tradução inglesa. Passava e repassava inúmeras vezes seu trabalho, buscando expressões equivalentes, tons sintônicos e possibilidades menos distantes daquilo que Freud dizia em sua língua materna. Queria, ao traduzir, trair o mestre o menos possível, tendo o cuidado de compartilhar com o leitor a razão de suas escolhas.
No evento de lançamento, houve uma fala de seu marido, Modesto Carone - nosso maior tradutor de Kafka - que deu um depoimento sobre o acompanhante que foi de Marilene em sua busca por um Freud melhor traduzido. Em seguida falou André Carone, filho do casal, professor de filosofia da psicanálise. Veio dele o esclarecimento de uma velha dúvida: Por que esse texto teria sido publicado só agora? Segundo ele, era desejo explícito de Marilene esperar que os textos de Freud em português se tornassem domínio público, o que levaria por terra a exclusividade de direitos autorais. Assim foi feito pela família, que pôde enfim escolher livremente a quem entregaria o trabalho dessa figura tão significativa para a psicanálise brasileira. A tradução pioneira de Luto e Melancolia recebeu uma edição primorosa, abrilhantada por textos de nomes importantes como, além do já citado Modesto Carone, Maria Rita Kehl e Urania Tourinho Peres. E vem não só nos brindar com um excelente trabalho, mas também trazer à baila a discussão democrática sobre os maus tratos que o estilo e o rigor conceitual de Freud vinham sofrendo na cena psicanalítica brasileira.
________________________________
[1] Psicanalista, mestre em Psicologia Clínica pela PUC/SP e ex-aluna do Curso de Psicanálise do Departamento de Psicanálise.
[2] A respeito da relação entre o texto freudiano e a língua portuguesa, o Boletim Online em sua edição n° 12 noticiou o debate, organizado em 2010 pelo Departamento de Psicanálise, Traduzir Freud: por Paulo César de Souza, em artigo de Nelson da Silva Jr. e Vera Dayan, assim como, em sua edição n° 13, contou a história das traduções da obra freudiana para o português, em Outras Palavras, escrito por Sílvia Nogueira. Ainda em 2010, na edição n° 15, mais uma contribuição para o tema, com artigo de Renata Cromberg sobre o evento Obras completas de Freud – traduções, conceitos e destinos, organizado pelo Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre.