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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    20 Abril de 2012  
 
 
CINEMA

O IRÃ É AQUI


 CRISTINA BARCZINSKI [1]
 
 
Um casal, Nader e Simin, diante de um juiz: ela quer deixar o Irã com o marido e filha, indo morar no exterior em busca de oportunidades; ele alega que o pai, portador do mal de Alzheimer, necessita de cuidados especiais e, portanto, não pode acompanhá-la. Uma cena imóvel, na qual estamos, enquanto espectadores, junto ao juiz, escutando o casal, que argumenta exasperadamente. A discussão chega a um impasse, e os dois são despachados pelo juiz, que não autoriza a ida da mulher. Neste momento ela não deixa claro o que busca ou do que foge.

E assim se desenrola o premiado filme de Asghar Farhadi, A Separação: impasses que se seguem uns aos outros, nos quais dificilmente alguém tem inteiramente razão, nos quais questões éticas se sucedem e se multiplicam, num emaranhado infinito.

O despojamento do filme é sua beleza, não recorre a fotografia ou fundo musical sedutor. Não há um momento de descanso naquele apartamento, a câmera agita-se atrás dos personagens; desenha-se uma atmosfera opressiva, em que portas e janelas se abrem e se fecham para que alguém não ouça algo, para que alguém não fuja e se perca, para impedir que algo se dê a conhecer. E mesmo quando os personagens circulam pela cidade, isto ocorre sempre em lugares fechados, automóveis, trânsito intenso, repartições, tribunais, hospitais lotados - corpos esbarram uns nos outros. Eles experimentam medo, constrangimento e desamparo, tendo os preceitos islâmicos como pano de fundo. Neste cenário de tragédia anunciada, a imagem tocante da menininha - filha da acompanhante do avô enfermo e desorientado -, que brinca inocentemente com a garrafa de oxigênio do idoso, à beira de se tornar uma assassina involuntária.

A filha adolescente tenta impedir a separação, ao se recusar a deixar o pai, ao mesmo tempo em que ocupa o lugar de sua mãe. Fala-se de Termeh, seu nome é invocado nas discussões entre os pais, mas ela mesma não é consultada. O pai, de classe média, liberal, é amoroso, estuda com a filha, estimula-a a tomar iniciativas. São belas as cenas em que os dois estudam juntos a língua persa. A precisão das palavras – se está errado, está errado, diz o pai, com autoridade, ir embora é covardia, não faça como sua mãe. A mãe deseja ouvir um pedido amoroso do marido e para isso faz da filha sua mensageira, mas sem resultados: a separação não é mais de mentira. Desilusão dolorosa da filha, ao descobrir que seus pais não são perfeitos, que mentem e blefam, usando as palavras. A verdade, disputada por todos, não se revela, mas é descoberta pela filha através de um ato falho paterno. Novamente Termeh, a filha, é responsabilizada – eu menti por você, diz o pai.
 
Ao final, são três diante de um juiz - e a filha é quem fará a escolha, para além da relação triangular. Num belo e sofrido ritual de passagem que envolve o luto dos pais da infância, a menina vai buscar suas saídas amorosas e identificatórias, no intricado processo de tornar-se mulher. São, de novo, portas que se abrem e se fecham, cena que mantém o espectador junto a Termeh, num suspense emocionado, à espera de que a adolescente possa finalmente falar em nome próprio.

Este belo filme não fala apenas da separação de um casal e da separação entre uma filha e seus pais, mas também das diferenças entre homens e mulheres, entre o mundo religioso e o mundo secular, o público e o privado. Mostra também a violência surda que ronda a relação entre as classes, a hipocrisia que sustenta as relações de poder. Parece que aí reside o caráter profundamente político do filme, não numa crítica velada ao governo iraniano. Onde está a verdade, quando tantos mentem e omitem? Afinal, quem assume a responsabilidade por tudo o que aconteceu? Quem foi sacrificado?

Nós, espectadores, não nos esquecemos onde se passa a história - as mulheres com seus véus, a música árabe no rádio do carro – embora isto não convide ao fascínio com o exotismo. Pois são tantas as questões profundamente humanas e universais levantadas por A Separação, que o fato de se passar no Irã não o torna de forma alguma estrangeiro para nós.

 

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[1] Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e membro da equipe editorial deste Boletim.



 
 
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