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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    20 Abril de 2012  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

Corpo, Moda e Ética: pistas para uma reflexão de valores é o título do livro que foi organizado por Cristiane Mesquita e Kathia Castilho, editado pela Estação das Letras e Cores e lançado na Livraria da Vila - Higienópolis em novembro de 2011. A noite de autógrafos contou com a presença dos integrantes do Projeto de Investigação e Intervenção na Clínica das Anorexias e Bulimias, que integra a Área de Clínica do Departamento de Psicanálise e é autor de um dos capítulos. Trata-se de um texto do qual publicamos uma versão preliminar no Boletim nº 14, de setembro de 2010, que o leitor poder ler agora em sua versão final, ampliada, na qual se destacam os acréscimos produzidos pela interlocução com os trabalhos de Micheline Enriquez e Joyce McDougall. Parabéns pela nova realização!


MUITOS BABADOS E POUCOS LAÇOS...


 ALESSANDRA SAPOZNIK, ANA CECÍLIA C. MESQUITA, CAMILA JUNQUEIRA,
LILIANE B. V. G. MENDONÇA,  MABEL CASAKIN, MAGDALENA RAMOS,
MARIA MANUELA A. MORENO, MARIO PABLO FUKS, SUSANA DIAZ
e WALESKA RIBEIRO [1]


Todos os anos, antecipando-se às mudanças de estação, as chamadas Semanas da Moda apresentam as tendências na arte do bem-vestir. Cores, tecidos, comprimentos e caimentos são apresentados a uma seleta platéia, que reúne especialistas no assunto, potenciais compradores e uma grande variedade de curiosos e interessados no mundo da moda.


Em uma intrigante articulação entre ciclos da natureza (estações do ano) e manifestações da cultura que influenciam o comportamento das pessoas, estilistas apresentam um conceito, que logo após o desfile já terá se transformado em um produto a ser consumido.

Acompanhemos um pouco mais de perto os elementos que contribuem para a volatilidade dessa operação.

O conceito é apresentado ao público através de um espetáculo efêmero (oito minutos) e altamente sedutor, e como em todo bom espetáculo, cada detalhe de luz, música, cor é cuidadosamente produzido.

As coleções partem de uma ideia ou de um tema, que dá sustentação à proposta que o estilista desenvolveu para a próxima estação. “Essa coleção foi inspirada em uma mulher romântica, mas também moderna, que vive em um ambiente urbano” ou “eu quis trabalhar as linhas, as formas geométricas” ou “discutir a sustentabilidade do planeta”, e assim por diante.

Esse trabalho de pesquisa e criação, que constitui parte reconhecidamente admirável do trabalho de um estilista, não é um processo inócuo, e na maioria dos casos, aquilo que poderia ser um processo criativo potente fica submetido às tendências do mercado. Raros são os estilistas que, desprendidos da lógica do mercado, desfrutam do caráter lúdico do fantasiar ao pensar uma coleção ou que usam sua coleção e o poder de exposição de sua marca para debater uma questão, para realizar uma intervenção real no campo coletivo e que concordam em fazer roupa para corpos de tamanhos variados.
 
A forma como a moda é apresentada e vivida, nos tempos atuais, é reflexo de uma época na qual o domínio da imagem é imperioso, fruto de uma cultura permeada por ideais narcísicos. Esse é o ponto no qual a moda se articula com o narcisismo, uma vez que a mensagem que ela transmite é: “você pode ser belo, você pode ser glamoroso, você pode escolher seu estilo”, dado que a moda se apoia no campo da ilusão, sobretudo, do ideal.

A intenção subjacente, transmitida nos desfiles, é transformar o conceito de uma coleção em uma imagem que possa despertar o desejo de quem a vê, e criar uma  sensação de poder, de que quem  adquirir determinada peça de roupa estará também adquirindo algo exclusivo e inalcançável, como se aquela peça tivesse um valor agregado.

Entretanto, o que chama a atenção é que esse mesmo ideal é consumido, é liquefeito no momento que a peça está nas araras das lojas. O tudo vira nada com uma rapidez vertiginosa. Aquela peça exclusiva entra em uma espécie de “máquina de massificação” e é cuspida para fora para que todos possam comprá-la, em diferentes versões.

O depoimento de Ronaldo Fraga, estilista que realiza um trabalho poético e político com a moda, é bastante ilustrativo dessa realidade:

[...] a passarela é o último momento em que a roupa pertence ao estilista, definitivamente. Depois que terminou aquele momento do desfile, ele não é mais dono da coleção, ele jogou para o ar (...) você não sabe o que é o vazio para um estilista depois que uma coleção é lançada, né? Porque imediatamente eu já tenho que inventar outra para driblar a morte. Porque é um vazio, é um oco, aquilo sai, aquilo vai cair no vazio, aquilo vai virar cobertura da Elle do São Paulo Fashion Week, sabe?

Falando em driblar a morte e o esvaziamento, passemos a outro elemento importante dessa trama: as modelos.

No mundo da moda, modelos são necessárias para que um certo tipo de mulher,   idealizado para aquela coleção, se materialize, se corporifique. Curioso paradoxo que, atualmente, quanto menos corpo a modelo tiver, melhor, pois assim o corpo não compete com a roupa, “não atrapalha”.

Podemos pensar que as modelos funcionam como uma tela branca de cinema, na qual o estilista projeta sua ideia. A forma mais valorizada hoje é a de um “corpo-cabide”, sem excessos, que possa moldar-se perfeitamente à roupa.

É interessante pensar que já houve um tempo no qual as mulheres que desfilavam eram belíssimas e estavam ali para engrandecer a roupa do estilista. Hoje, porém, há uma tendência de anulação dos corpos.

O editor de moda da Folha de São Paulo, Alcino Leite e a jornalista Vivian Whiteman (LEITE; WHITEMAN, 2010) chamam a atenção para o “nível irresponsável e escandaloso de magreza das modelos” na São Paulo Fashion Week do início de 2010:

“As garotas, muitas delas recém-chegadas à adolescência, exibem verdadeiros gravetos como pernas e, no lugar dos braços, carregam espécies de varetas desconjuntadas.”

Por outro lado, surgem matérias dizendo que as modelos não passam fome, que apenas tem mais facilidade em perder peso do que a maioria das mulheres. Gisele Bündchen, magérrima e linda depois de dar a luz a seu filho, criticou as mulheres que não querem se cuidar e ficam feias e gordas. Seriam a magreza, a beleza e o sucesso uma questão de força de vontade apenas? E como podemos compreender essa necessidade recorrente de controlar o corpo, o apetite e o envelhecimento?

De acordo com Lipovetsky (2000, p. 205),

[...] o ideal moderno do governo de si e de plena posse da coletividade sobre si própria propagou para a relação com o corpo. Quanto mais se reforçam os imperativos do corpo firme, magro e jovem, mais se afirma a exigência de domínio soberano sobre suas próprias formas; quanto mais se impõe o poder diretor das normas estéticas, mais as mulheres se empenham em responsabilizar-se por si mesmas, em vigiar-se, em tornar-se protagonistas de si próprias.

O corpo se tornou, assim, o último território a ser colonizado; e portanto ser capaz de controlá-lo, mantendo-se magra, reflete valores tão festejados na atualidade, tais como autocontrole e eficácia.

Se bem é verdade que o mundo da moda propaga um ideal no qual magreza extrema é sinônimo de sucesso, de autossuficiência e domínio das vontades, cabe-nos perguntar o que levaria tantas jovens adolescentes a “comprar” essa promessa e constituí-la como ideal a ser alcançado. Essa é uma pergunta pertinente, uma vez que sabemos que onde há oferta há demanda, ou seja, o consumo tão perseguido pelo mercado da moda pode ser induzido até um determinado ponto, mas ele só floresce onde existe um terreno propício para isso.

Ao circunscrever os domínios das neuroses narcísicas, Fuks (2003, p. 212) destaca que

[...] o sujeito contemporâneo, forte candidato à depressão, está encerrado num círculo de ferro. Ele tem, por um lado, uma exigência de autonomia proveniente dos ideais da época associados a um imperativo de gozo consumístico que transforma os bens em suprimentos narcísicos. E tem, por outro lado, a impossibilidade crescente de gerir autonomamente sua existência, dados os limites impostos por enormes poderes que não controla. A desestruturação dos laços comunitários, o isolamento e a solidão tendem a conformar egos frágeis, que suportam mal a tensão e o sofrimento e não podem contar com um outro.

A anorexia nervosa, que evidencia um modo de funcionamento psíquico peculiar, no qual há uma recusa da falta e portanto do desejo, encontraria nesse modelo um gancho para se ligar. Deparamo-nos com sujeitos desérticos, relações familiares ambivalentes, intensa voracidade e fome "de nada”.

O ponto no qual a moda e os transtornos alimentares se articulam é a problemática da identidade.

As coleções lançam, a cada estação, novas propostas identitárias, que, ainda que sejam transitórias, conferem àqueles que a consomem certa sensação de reconhecimento e de pertencimento a um grupo, a uma determinada “tribo”.

Em sua brilhante análise sobre o comportamento das massas, Freud (1921) nos ensina que os indivíduos que pertencem a um mesmo grupo compartilham de um mesmo ideal e dessa forma sentem-se mais poderosos do que quando têm que dar conta de sua existência individualmente.

Sendo assim, a moda pode funcionar, para alguns sujeitos com perturbações no campo identitário, como uma prótese, como algo que lhes confirme um lugar de admiração e inclusão.
 
A fragilidade no campo das identificações, a busca por um ideal que lhes confira algum lugar de reconhecimento e a conflitiva própria do desejo são “resolvidos” e aplacados no consumo e na incorporação do produto (ideia/imagem).

O próprio termo modelo é portador de certa ambiguidade. De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a palavra modelo se aplica à “coisa ou pessoa que serve de imagem, forma ou padrão a ser imitado, ou como fonte de inspiração”.

Modelo alude também ao ato de modelar, de esculpir, de transformar a forma. Haveria nas jovens com problemáticas alimentares um desejo de auto-engendramento, de autocriação, apoiado em uma dificuldade de estabelecer uma identificação com o corpo materno?

Não se trataria de tentar vestir este corpo de um ideal, socialmente validado e valorizado, em uma tentativa de auto-engendramento, para que essas jovens  pudessem existir em um corpo próprio?

A problemática da anorexia, segundo Joyce McDougall (1991), indica a indisponibilidade de  representação interna de uma mãe como objeto introjetado que possibilite a elaboração mental de natureza simbólica dos estados emocionais primitivos, o que dificulta a integração e o reconhecimento do corpo, dos pensamentos e dos afetos como próprios. A autora sustenta que, com limites corporais mal estabelecidos, tais sujeitos vivenciam um corpo para dois.

Parece-nos que estas meninas buscam no ideal de magreza, paradoxalmente, o desapego do domínio materno e a criação de um eu-pele, com as funções descritas por Anzieu de continência, de limites e de mediação.
 
Encarnando em seus corpos um sofrimento, Enriquez (2000) esclarece que elas procuram fazer de seus corpos objetos reais, que se oferecem ao olhar do outro, solicitando um movimento de fascinação e horror. Como se na falta de um reconhecimento precoce, fosse necessário “este peso de objeto real” para a instauração e regulação de relações e compromissos com este corpo e com os outros.

Vale frisar aqui que a identificação que algumas de nossas jovens possam estabelecer com as modelos não passa, na grande maioria das vezes, pela via da beleza.

Não é o ideal de beleza que está sendo perseguido aqui e sim o ideal de controle, do sucesso e de admiração, representado pelas “meninas-conceito”, ou “meninas-graveto”, de um corpo que se faz presente pelo negativo, que chama o olhar do Outro, ao mesmo tempo em que o nega.

Quando a moda valoriza corpos esqueléticos, ou ainda pior, quando valoriza o apagamento do humano que habita a roupa ao transformá-lo em um mero veículo de exibição, esse é o ponto no qual a moda se enlaça com o campo da ética.

A ética, disciplina filosófica que se propõe a estudar os hábitos e costumes humanos, procurando discernir entre o certo e o errado, o justo e o injusto,  pode questionar a moda do ponto de vista do consumismo, da sustentabilidade, do trabalho infantil; mas, sobretudo do ponto de vista do ideal estético e de saúde que ela propaga.

Evidentemente, se não podemos responsabilizar a moda pelo avanço recente das patologias dos transtornos alimentares, devemos atentar para o fato de que a moda, através da eleição de uma ideal de corpo esquelético, tem endossado patologias como a anorexia e a bulimia.
 
Hoje a moda dá um lugar de reconhecimento, de poder e até de glamour para uma expressão patológica, que por seu modo de funcionamento psíquico, já tende a negar sua magreza e sua doença.

Leite e Whiteman (2010, p. 62) concluem seu artigo da seguinte maneira: “É hora de interromper esse ritual sinistro. É hora de parar com essas mistificações da moda, que prega futuros ecológicos, convivências fraternais e fantasias de glamour, enquanto exibe nas passarelas verdadeiros flagelos humanos”.

Deste modo, seria desejável que as Semanas de Moda apresentassem os sonhos e propostas dos estilistas, e que também as jovens modelos tivessem a chance de serem mais “criadoras” e não meros “cabides”. E que os laços não estivessem apenas nos decotes, cabelos e bolsas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  1. LEITE, A. e WHITEMAN, V.. “De tão magras, modelos chegam a andar com dificuldade”, in A FOLHA DE SÃO PAULO, 20/01/2010 http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u682199.shtml
  2. Entrevista de Ronaldo Fraga a Régis Bonvicino, in SITE SIBILA: POESIA E CULTURA.  http://sibila.com.br/index.php/arterisco/344-a-moda
  3. LIPOVETSKY, G. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
  4. ___. A Terceira Mulher: permanência e revolução no feminino. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
  5. FUKS, M. P. “Nos domínios das neuroses narcísicas e suas proximidades”, in Barbero Fuks, L. e Ferraz, F. C. (orgs). Desafios para a psicanálise contemporânea. São Paulo: Escuta, 2003, p.212. 
  6. FREUD, S. Psicologia do grupo e a análise do ego. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XVIII,. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976 (1921), pp.89-179
  7. ENRIQUEZ, M. Nas Encruzilhadas do ódio. São Paulo: Ed. Escuta, 2000, pp. 160-161. 
  8. MCDOUGALL, J. Teatros do corpo: o psicossoma em psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.110.

 

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[1] Equipe do Projeto de Investigação e Intervenção na Clínica das Anorexias e Bulimias, Departamento de Psicanálise e Clínica Psicológica, Instituto Sedes Sapientiae.

 




 
 
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