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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    21 Junho de 2012  
 
 
NOTÍCIAS DO CAMPO PSICANALÍTICO

JEAN LAPLANCHE LIVROU DIVÃ DA BUROCRACIA [1]


ANA MARIA SIGAL [2]


Jean Laplanche é sem dúvida um homem polêmico e mal conhecido por muitos. É reduzido por alguns à posição de um simples sintetizador ou sistematizador das ideias freudianas. Quem diz isto deve circunscrever seu conhecimento do pensamento laplanchiano a uma restrita e enganosa leitura do difundido Vocabulário de Psicanálise, que, por seu brilhantismo, ocultou durante certo tempo a rica produção posterior do autor. O Vocabulário é uma obra magistral, básica para os estudiosos do pensamento freudiano, a quem ajudou a encontrar sinais e indícios que lhes proporcionassem condições de se mover na trama de conceitos, dotados de marchas e contramarchas, próprios da riqueza e complexidade desse pensamento.

É visível que, já nesta época, Laplanche tinha um apurado conhecimento da obra de Lacan. Não obstante, vemos o grande esforço feito, junto a Pontalis, para se manter numa leitura que respeite ao máximo o dito pelo autor. Faz questão de diferenciar a leitura da obra de um autor de sua interpretação. Diz-nos Laplanche, aproveitando-se da noção hegeliana, que devemos "fazer justiça ao texto": o autor tem o direito de ser lido no sentido daquilo que afirma. Não é necessário lhe atribuir dizeres.

Temos de fazer, assim, justiça ao texto laplanchiano. Na leitura de sua obra e especialmente de seu La Révolution Copernicienne Inachevée, vemos que estabelece um diálogo permanente da filosofia, da antropologia, da historiografia e da astronomia com a psicanálise, fazendo brotar novas ideias. Laplanche se utiliza dessa vasta argumentação interdisciplinar para fazer trabalhar o texto freudiano e trazer à luz novos fundamentos.

Laplanche desconfia do Código dos códigos, das explicações totalizantes. Ao ressituar um conceito, toda a teoria é abalada, e criam-se novos estatutos que nos levam a exercer uma clínica distinta. Sua concepção de transferência é modificada, decorrente de um novo conceito que lhe é próprio, o conceito de significante enigmático. Com isso, altera-se o lugar do analista, uma vez que este estará permeado pela relação com o outro originário e com a sedução. Laplanche critica o empirismo clínico que, segundo ele, empobrece a prática, e também a falta de rigor com que se discute a clínica, fazendo um alerta no que tange ao novo modismo que a inflacionou.

O valor de seu pensamento está em sua capacidade criativa e liberdade intelectual. Não existe reverência ao mestre, mas respeito e reconhecimento de seu pensamento e a capacidade de discordar de suas ideias ao julgar que a prática lhe exige tal oposição. Não exclui jamais o pensamento de seus opositores, jogando-os na fogueira, como faria um inquisidor. Uma mostra disto seria o belo ensaio Temos de queimar Melanie Klein?, no qual recupera o pensamento desta autora, pedindo-nos para fazer trabalhar sua obra, a fim de não torná-la simplesmente uma psicologia geral. Procura recuperar para a obra kleiniana o passo a passo característico do pensamento freudiano, por entender que em alguns momentos nela se perde o movimento associativo, a referência histórica e a singularidade do paciente.

Seria interessante relembrar a violenta luta institucional que se alastrava pela França, lá pelo ano de 1959. Como discípulo de Lacan e seu analisado, Laplanche se tornou uma figura de peso nas discussões que foram levadas adiante como resultado da política e das ideias que Lacan levantou. Não se assustou com o enfrentamento nem tampouco o desprezou, e assim foi se engajando cada vez mais na luta que se estende por dez anos, de 53 a 63, quando Lacan e seus discípulos criam a Escola Freudiana de Paris. As lutas pelo reconhecimento acabaram por produzir uma expansão da psicanálise na França, tornando efervescentes tanto a discussão teórica quanto a institucional. Tais confrontos levaram Laplanche a posicionar-se em relação à ideia de transmissão e a discutir o poder que a Sociedade Internacional exercia sobre os feudos locais.

Junto com outros jovens proeminentes, Laplanche fundou a Associação Psicanalítica Francesa (APF), a qual lança os alicerces para a real preservação da análise pessoal, proposta que acaba por abolir toda e qualquer possibilidade de intromissão burocrática no divã. Deixar de controlar a análise dos candidatos não é uma postura liberal nem democrática; é simplesmente respeitar o próprio sentido da análise. É a maneira adequada de garantir ao máximo a extraterritorialidade da prática analítica e de, ao mesmo tempo, evitar que a instituição transforme seus candidatos em analistas bem con-formados.

Em 1989, Laplanche publicou na Revue Internationale d'Histoire de la Psychanalyse um trabalho intitulado Uma Revolução Incessantemente Oculta, no qual questiona a razão de não se discutir e inclusive se ocultar que a APF, sendo parte da Associação Psicanalítica Internacional (IPA) tenha seu próprio estatuto e se recuse à exigência da análise didática, criticando-a acirradamente. Fundada em 1964, desde o início pertenceram à APF psicanalistas que haviam optado pela liberdade interna e pelo desejo de manter sua formação, sem ter de abdicar, por esta razão, de determinados princípios éticos e teóricos da psicanálise. Em decorrência seus membros se recusaram a submeter-se a um mestre e a ser controlados por um aparelho burocrático.

No campo das ideias, a luta de Laplanche se tornou pública no Colóquio de Bonneval, encontro promovido por Henry Ey em 1959, para o qual se convocaram representantes da filosofia e da psicanálise, bem como da psiquiatria, para discutir acerca do estatuto do inconsciente freudiano. Entre outros foram chamados Merleau-Ponty e Jean Hyppolite, Pontalis e Laplanche. Lacan estava presente, porém não foi convidado a apresentar seu trabalho.

Em Bonneval, Laplanche e Leclaire apresentaram suas dissidências em relação à conceitualização do inconsciente. Laplanche se permitiu discordar da postura de Lacan, que considera a linguagem a condição para o inconsciente. Laplanche afirma que, embora o inconsciente não seja a sede dos instintos, tampouco a estrutura da linguagem tem de ser aquilo que constitui o seu campo. Fez uma dura crítica ao estruturalismo, além de considerar apressada a ideia de que o deslocamento freudiano corresponde à metonímia e sua condensação, à metáfora.

Ao mesmo tempo em que apoiou a não expulsão de Lacan e de seu pensamento da Sociedade Psicanalítica, Laplanche manteve suas divergências teóricas com o psicanalista e não aderiu à sua teoria como um dogma. Neste momento, estimulou um debate interno ao lacanismo, insistindo na hipótese de ser o inconsciente a condição da linguagem. É em Bonneval que aparece, pela primeira vez, o questionamento da interpretação da obra freudiana feita por Lacan. A grande questão é: como separar a doutrina da sujeição ao mestre? Laplanche não se paralisa; permite-se discordar. Sem abandonar o valor das ideias, já suspeita da empresa de poder que pode vir a ser o lacanismo.

Ao longo de sua obra, discorda por muitas vezes da produção teórica de Freud. Sem receio, retoma o conceito de pulsão e considera aberrante a explicação freudiana relacionada ao arco reflexo. Questiona também a noção de herança filogenética das fantasias originárias. Entretanto, Laplanche vai além de um simples questionamento dos conceitos. Ressituando elementos do campo teórico, propõe gerar uma nova configuração, um descentramento que nos permita pensar em novos fundamentos, os quais desencadeiam uma revolução tanto na teoria quanto na clínica. Devido a isto, somos levados a nos confrontar com uma nova teorética, constituída pelos quatro lugares da experiência psicanalítica: o clínico, o teórico, o da psicanálise extramuros e o histórico. Segundo esta lógica, o pensamento não se dogmatiza. Evolui e se revoluciona.

Numa entrevista feita em Buenos Aires em 1991 e publicada pela revista Percurso, perguntei-lhe a respeito da existência de um pensamento laplanchiano. Ele me respondeu que a característica de sua obra é a de que nunca se deve passar diretamente para a clínica uma conceitualização teórica de Laplanche. Sua clínica é a clínica da singularidade. A psicanálise não é, neste sentido, o sistema construtivista dos conceitos gerais. Não existem interpretações aplicáveis a pacientes; todos os seus trabalhos sobre a interpretação e o tempo se ocupam disso. É a respeito deste tema que Laplanche nos falará em São Paulo [3]: o problema da temporalidade e da tradução, relacionando-o com a interpretação.

A interpretação, para Laplanche, é inseparável do método. Ela nos indica o caminho que leva à destruição dos aglomerados aparentemente racionais do processo secundário; desta maneira, a interpretação é uma destradução, um desmantelamento do texto original. No processo tradutivo por si só, haverá a construção de uma nova obra. É interessante destacar que a situação analítica consiste exatamente em retraduzir uma situação preexistente, chegando-se finalmente à "destradução" dos primeiros significantes enigmáticos. As novas traduções nos permitirão ter uma teoria mais ampla e menos repressora de nós mesmos. Laplanche conclui que o movimento temporal revelado pela análise é uma decomposição de sequências significantes, presentes e passadas, em elementos menores, de maneira a permitir uma nova síntese ou então uma nova tradução menos sintomática.

O estrangeiro a ser traduzido não é o inconsciente do "reservatório" nem das funções biológicas, nem tampouco o inconsciente do discurso estruturado, que existe para ser decifrado. Entendo que Laplanche se refere ao originário criado por inúmeras reminiscências registradas, decorrentes de restos de representações, marcas mnêmicas, olfativas, auditivas, as quais irão compor um aglomerado. Dessa maneira, o trabalho do analista e o do paciente não se exaure no trabalho de recuperação de um passado. A neurose não seria uma simples doença da memória que temos de recuperar. Devido a isto, sou levada a crer que na sessão de análise é necessário também fazer trabalhar nossa própria história até seus limites, como é feito por ele na teoria, uma vez que Laplanche já nos orienta no sentido da criação de um novo texto. A tradução não é uma mera substituição de palavra por palavra. Ela implica um trabalho de decomposição para criação de uma nova composição.

O texto acaba por ser constituído pelo próprio paciente, em seu estilo, e é isto o que acaba por garantir a fidelidade. No processo de recuperação das recordações, é necessário um trabalho de reordenação da existência. Neste ponto, encontro em Laplanche algo que me permite pensar a análise como rehistorização, autoteorização e permanente criação de subjetividade. Um caminho no qual produziríamos uma nova versão de nós mesmos.

A grande revolução, dita inacabada por Laplanche, é a que nos permite aceitar que, na fundação do inconsciente, o outro está em mim. Freud mantém a alteridade do inconsciente; descarta, porém, o estrangeiro do outro que existe em mim e que funda o sujeito como um estranho.

Apesar da multiplicidade de esforços para descentrar o sujeito do espaço princeps na invenção do revolucionário conceito de inconsciente, ocorrem permanentes recaídas no sentido de recentrá-lo. Por momentos, Freud dá a impressão de ter desistido de entender que, no fundamento da subjetividade, existe o outro não como discurso, mas sim como estrangeiro. Fazendo uma analogia com a astronomia, Laplanche chamará a este constante movimento (entre o sujeito autofundante e o outro como fundante da subjetividade) "oscilação entre a teoria ptolomaica e a copernicana". Esse outro, esse estranho, dispara o enigma com um significante sexual.

A constante tarefa de compreender esse estranho impele no sentido do conhecimento. A função do outro se torna fundamental, uma vez que, sendo ele desconhecido, provoca um incessante movimento de expulsão e assimilação. Nesse sentido, o processo de análise seria o de embarcar numa viagem que procura tornar próprio aquilo que é o mais estrangeiro em nós mesmos, o inconsciente.

Não podemos negar que o pensamento de Laplanche é instigante, uma vez que ele mesmo direciona, em sua leitura, um desejo de saber. Seu próprio pensamento pede para ser trabalhado e fazê-lo trabalhar, o que nos estimula a buscar suas contradições e entender suas colocações. Laplanche se apresenta, além de tudo, com um efeito analisador, como aquele que lança o enigma e dispara o desejo de conhecer o estrangeiro em mim.



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[1] Ensaio originalmente publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 21 de agosto de 1993, por ocasião da vinda de Laplanche ao Brasil para o lançamento de seu livro A Tina (Martins Fontes).
[2] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[3] A visita de Jean Laplanche foi organizada pelo Setor de Eventos do Departamento de Psicanálise, a partir de convite feito por Ana Maria Sigal, sendo precedida por grupos de trabalho que se dedicaram ao estudo da obra do autor, além de promoverem a tradução e publicação de um texto inédito: “A revolução copernicana inacabada”. As duas conferências no Centro de Convenções Rebouças ocorreram em 31 de agosto e 3 de setembro de 1993, e foram acompanhadas por uma discussão sobre formação com professores do Departamento de Psicanálise e um encontro com Haroldo de Campos. Para maiores detalhes, consultar História do Departamento de Psicanálise, Editora Narrativa Um, p. 207 a 209 (N. E.).



 
 
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