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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    21 Junho de 2012  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

RACISMO À BRASILEIRA: CRIME PERFEITO


NOEMI MORITZ KON [1]

“Comemoramos hoje 120 anos de abolição da escravatura negra no Brasil. Abolição da escravidão quer dizer aqui fim de um sistema cruel e injusto que trata os negros como coisa, objeto de compra e venda, negócio lucrativo para servir à ambição sem fim dos poderosos. Abolição da escravatura quer dizer aqui fim da humilhação, do desrespeito, da injustiça.
Abolição da escravatura quer dizer libertação.

Mas será que acabamos mesmo com a injustiça, com a humilhação e com o desrespeito com que o conjunto da sociedade brasileira ainda nos trata? Será que acabamos com a falta de amor-próprio que nos foi transmitido desde muito cedo nas nossas vidas? Será que já nos libertamos do sentimento de que somos menores, cidadãos de segunda categoria? Será que gostamos mesmo da nossa pele, do nosso cabelo, do nosso nariz, da nossa boca, do nosso corpo, do nosso jeito de ser? Será que nesses 120 de abolição conquistamos o direito de entrar e sair dos lugares como qualquer cidadão digno que somos? Ou estamos quase sempre preocupados com o olhar de desconfiança e reprovação que vem dos outros?”
Neusa Santos Souza – “Contra o racismo: com muito orgulho e amor”.
Especial para o Correio da Baixada, em 13 de maio de 2008


Duas das três etapas do evento O racismo e o negro no Brasil: questões para a Psicanálise, promovido pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, foram realizadas com sucesso. Estamos nos preparando agora para sua terceira etapa, “Perspectivas: conferências e debates”, que acontecerá nos dias 22 e 23 de junho de 2012.

O racismo e o negro no Brasil: questões para a Psicanálise foi concebido como uma oportunidade para nos aproximarmos e nos apropriarmos de uma importante questão que concerne a todos os brasileiros e que atravessa a clínica de cada psicanalista. Nosso desejo era - e continua sendo - o estabelecimento de um campo de debates entre várias linguagens e disciplinas, que se constituiria apoiando-se na ideia de aproximar a experiência da exclusão à reflexão sobre a exclusão, acolher e tornar pública e compartilhada a experiência do racismo contra o negro no Brasil ao pensamento sobre a discriminação e assim gerar subsídios para que também a reflexão psicanalítica brasileira sobre o tema pudesse desabrochar. Foi esse o eixo norteador de nossa proposta, concebida em três etapas: abrir espaço para compartilhar a experiência da discriminação e da exclusão, não negar, portanto, a insidiosa incidência do racismo à brasileira, para, a partir de um patamar comum, dar início a um trabalho de elaboração conjunta de criação de novos dispositivos, também clínicos, que possam fazer frente ao sofrimento psíquico gerado pelo preconceito e pela intolerância.

Na primeira etapa, “Vivências do racismo à brasileira: cenas do cotidiano”, realizada em 31 de março, vivenciamos um sociodrama apresentado por Mara Caffé, com relatoria de Paulo Jeronymo Pessoa de Carvalho e coordenado por Pedro Mascarenhas, Jussara Dias e M. Célia Malaquias, que teve a participação de cerca de 90 pessoas, provenientes de vários campos da sociedade. Representantes do Movimento Negro e psicanalistas puderam se encontrar – e também se desencontrar – na parceria estabelecida naquela reunião. Pudemos, então, vivenciar e trabalhar conjuntamente cenas de altíssimo impacto. Uma experiência forte e importante que certamente deixou marcas naqueles que dela participaram, na qual cenas de extrema solidão, vivenciadas originalmente de forma silenciada, ganharam palavras e imagens e puderam ser ouvidas, encenadas e sentidas pelo Outro. Nada foi macio, nem limpinho naquela manhã de sábado. Muita dor e exigência de empenho para, quem sabe, abrirmos espaço para mais trabalho de elaboração. Nenhuma interpretação seria capaz de sanar a dor daquela experiência. Saímos engolindo em seco, desejando que os encontros futuros, já pré-agendados nas próximas etapas do evento, nos permitissem algo mais do que a constatação dura e crua do sofrimento de toda a gente. Tornar pública a cena de humilhação, colocar em palavras o desespero, o desamparo e a impotência são os primeiros e significantes passos para – tomara - alguma elaboração.

A segunda etapa – “Negritude em cena” –, por mim moderada, foi também pautada na ideia de trazer para perto a experiência, na busca de uma reflexão encarnada. No caso, a experiência de J. B. – jovem de cerca de 30 anos, de família pobre e que, orgulhoso de suas origens de quilombola, mostrou sua força de lutador numa sociedade que o discriminou e encarcerou desde sempre – também presente no encontro, documentada pela cineasta Eliane Caffé, que nos aqueceu com seu filme Um passo para ir, com sua espontaneidade e com suas palavras, e nos aproximou da reflexão trazida pelo professor de Antropologia da FFLCH-USP Kabengele Munanga. A fala de Kabengele Munanga, sensível, delicada, bem humorada e arguta, nos localizou com precisão sobre o crime perfeito perpetrado pelo racismo à brasileira, na sustentação ideológica do mito da cordialidade, da harmonia, da igualdade e da democracia racial no Brasil, corporificados na mistura das raças e na figura do mestiço malandro. A manutenção de privilégios, a manipulação, as lacunas e o silêncio, a negação e a reiteração da discriminação e da humilhação a que uma grande parte dos cidadãos brasileiros é submetida, as desigualdades na distribuição de renda, na educação, nas penas distribuídas pelo sistema judiciário, na atenção à saúde - muitas questões sobre as quais a psicanálise precisa se debruçar para, então, poder contribuir com seu saber singular. Uma interlocução intensa com uma plateia multicolorida – bastante diferente daquela comumente encontrada nos eventos do Departamento – se deu: estabelecemos um diálogo franco entre experiências, linguagens e saberes variados, falas e mais falas – que fizeram com que o evento se estendesse para além do horário previamente acordado – que denunciavam as diferentes diferenças e buscavam, na interlocução com novos pares, a construção de novos instrumentos de intervenção. Mais uma vez, não encontramos apaziguamento possível; vislumbramos, apenas, quanto trabalho precisa ainda ser feito.

A terceira etapa, “Perspectivas: conferências e debates”, marcada para os dias 22 e 23 de junho, sexta à noite e sábado pela manhã, contará com a participação de pensadores de outras áreas: da psicologia social, das ciências sociais, da história, da antropologia, da educação, do cinema e da literatura, além, é claro, da psicanálise. Nossos convidados são: M. Lucia da Silva, Lilia Moritz Schwarcz, Isildinha Baptista Nogueira, Maria Beatriz Costa Carvalho Vannuchi, Fúlvia Rosemberg, José Moura Gonçalves Filho, Moisés Rodrigues da Silva, Miriam Chnaiderman, Cuti e Heidi Tabacof.

Perseguimos, ainda, o mesmo propósito: partimos da experiência e da constatação do racismo singular vivenciado em nosso país, e saímos em busca da interlocução com os vários saberes e linguagens para que, instruídos, possamos participar, com nossa psicanálise, da construção de novos caminhos.

A ideia é, portanto, a de fomentar e também nos abrir ao diálogo: diálogo entre saberes diferentes, diálogo entre linguagens diferentes, diálogo entre grupos diferentes, o que pode, se tivermos sorte e empenho, fertilizar reciprocamente a todos nós, para que juntos esbocemos, por meio da experiência e da reflexão dela originada, movimentos de enfrentamento e de transformação da situação de discriminação e humilhação a que negros são submetidos na sociedade brasileira e que perpassam cada um de nós, negros ou brancos, em nossas diferenças. Essa também é uma oportunidade para que o Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae receba em seus domínios um público mais amplo e reafirme sua marca de origem, sua aspiração.

São trocas e movimentos que só podem nos vitalizar.

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[1]Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise, articuladora da Área de Eventos do Conselho de Direção do Departamento de Psicanálise e membro da Comissão Organizadora do evento O racismo e o negro no Brasil: questões para a Psicanálise.
[2]Comissão Organizadora de O racismo e o negro no Brasil: questões para a Psicanálise: Ana Carolina Neves, Hiliana Reis, Mara Caffé, Maria Auxiliadora da Cunha Arantes, Maria Beatriz Costa Carvalho Vannuchi, Maria Célia Malaquias, Maria Lucia da Silva, Noemi Moritz Kon e Pedro Mascarenhas.



 
 
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