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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    21 Junho de 2012  
 
 
O MUNDO, HOJE

VIOLÊNCIAS INJUSTIFICÁVEIS


ONU CONDENA DECISÃO DO STJ QUE INOCENTOU ESTUPRADOR
DE TRÊS MENINAS DE 12 ANOS


MARIA LAURINDA RIBEIRO DE SOUZA [1]


O Supremo Tribunal de Justiça absolveu, no dia 27 de março deste ano, um estuprador (nome não divulgado) de três meninas de 12 anos (fato ocorrido em 2002), entendendo que não se justificava a queixa de estupro, já que não ocorrera violação do “bem jurídico tutelado – a liberdade sexual”, ou seja, preservava-se, nessa decisão, o princípio de liberdade sexual e não os direitos de proteção à infância e adolescência.

A medida provocou, imediatamente, vários protestos. A Ministra Maria do Rosário, da Secretaria de Direitos Humanos do Brasil, questionou a decisão alegando que os direitos das crianças jamais podem ser relativizados e que não se pode ser conivente com um ato tão violento. O escritório da ONU, responsável pelos Direitos Humanos, através de seu representante para a América do Sul, Amerigo Incalcaterra, também criticou a medida, afirmando que ela contradiz vários tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil.

Apesar das várias manifestações de indignação, o STJ reafirmou o julgamento feito e, em nota publicada no dia 11.04.2012, tentou “justificá-lo”, esclarecendo que a decisão “tratava, de forma restrita e específica, da acusação de estupro feito, em vista unicamente da ausência de violência real no ato”.

Como se define o que é “ausência de violência real no ato”?

De acordo com o acórdão do tribunal, “a prova trazida aos autos demonstra, fartamente, que as vítimas, à época dos fatos, lamentavelmente, já estavam longe de serem inocentes, ingênuas, inconscientes e desinformadas a respeito do sexo”. O argumento, portanto, era de que elas “já se dedicavam à prática de atividades sexuais desde longa data”. Com que idade se poderia supor, então, que foram iniciadas em tais atividades?

Além disso, entendê-las como “prostitutas” é incluí-las numa profissionalização que, além de precoce, encobre e dissimula o ato de violência e dominação exercido sobre seus corpos. A quem cabe a responsabilidade pelo sequestro de suas infâncias? A própria mãe de uma das meninas afirmara que ela, várias vezes, faltara às aulas para se encontrar na praça com outras meninas que vendiam o corpo para ganhar algum dinheiro. É como se, para a justiça, o fato de alguém já ter sido esfaqueado, assaltado e maltratado funcionasse como álibi para que novas violências fossem perpetradas impunemente.

Essa mesma “justificativa” aparece em cenas mais anódinas do cotidiano, deixando visível sua distorção e sua eficácia como forma de domínio sobre o outro. Uma jovem me relata um acidente ocorrido com seu carro: estava parada no farol e um motorista, descuidado, entrou na traseira de seu carro. No entanto, apesar da evidência de sua culpa, o motorista argumentou com “veemente autoridade” que, com esse carro já batido (de fato, o carro já estava amassado), como é que ela poderia exigir algum ressarcimento ou reconhecimento de culpabilidade? Atônita com a inversão das posições e, identificada com o agressor, deixou que este fosse embora, concordando internamente com ele – “era verdade, o carro já estava tão amassado, por que reclamar de uma nova batida?”. Só depois se deu conta da manobra violenta e oportunista dessa inversão.

É também com “veemente autoridade”, legitimada por controversas leituras jurídicas, que meninas são consideradas prostitutas, dirimindo-se, dessa forma, a crueza que caracteriza as experiências de abuso infantil, de exploração sexual, de dominação e violência e suas consequências futuras. E, numa inversão perversa dos fatos, como costuma acontecer, principalmente quando se trata do abuso de meninas ou adolescentes mulheres, cabe à vítima a imputabilidade pelo ato e ao algoz, a inocência presumida. E o que dizer de uma justiça que posterga o julgamento de uma situação como esta, ocorrida “desde longa data”? Não é essa outra violência?

Da história dessas meninas nada sabemos. São crianças anônimas, como muitas neste país. Vagam pelas ruas, ou pelas praças, expondo, aos olhos pedófilos, seus corpos vulneráveis, ainda em formação, mas já marcados pelos sinais, cedo apreendidos, do valor da usura. Desejam, quem sabe, um novo batom, um novo vestido, ou apenas um novo brinquedo, para guardar escondido; algo que seja só seu. E que, à noite, possa lhes fazer companhia. Desejam um olhar de cuidado ou apenas o enlace com outros semelhantes, seja para “estar com”, ou para “estar contra”. Provocar ou convocar talvez não faça mesmo muita diferença, desde que um enlace aconteça. Sabemos bem que o “bate-se numa criança” pode ser entendido como “alguém me ama”. É nesse discurso inconsciente que se sustentam muitas cenas de violência.

E o que leva uma mãe a testemunhar contra sua filha, confirmando-lhe um lugar de dejeto? Já não estariam inscritos, nas histórias familiares, os discursos de desvalia? O uso do corpo como objeto de troca; uma simples mercadoria que se oferece no lugar de outra? O meio possível para se ter acesso a uma “nova” representação imaginária?

De que situação de penúria se trata para que essas meninas precisem se encontrar na praça – espaço público –, onde todos os que passam fecham os olhos ao comércio de corpos ali perpetrado? Não é o nosso país reconhecido pela facilidade do turismo sexual?

Segundo dados da UNICEF, em 2010, cerca de 250.000 crianças estavam sendo exploradas sexualmente no Brasil. E, desde a década de 90, o termo prostituição, utilizado para se referir a crianças e adolescentes, vem sendo discutido, entendendo-se que elas não se prostituem, mas são conduzidas a isso pela ação aliciadora ou conivente dos adultos, em função de seu estado de vulnerabilidade e desamparo. Essas situações devem ser nomeadas pelo que são: exploração sexual comercial infanto-juvenil, deixando evidente a “violência real do ato”.


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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde é professora do Curso de Psicanálise.



 
 
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