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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    22 Setembro de 2012  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

PROJETO CLÍNICAS DO TESTEMUNHO DO INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE
TESTEMUNHO DE UMA EXPERIÊNCIA


ISABEL MAINETTI VILUTIS [1]


UM POUCO DE HISTÓRIA

Em abril de 2012, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça convocou alguns profissionais psicólogos, psicanalistas e trabalhadores da Saúde Mental para a realização de duas oficinas de discussão teórica e política, no intuito de elaborar uma proposta de atendimento clínico aos anistiados afetados pela violência de Estado entre 1946 e 1988. Delimitou-se que seriam beneficiários deste atendimento aqueles que tivessem participado ou viessem a participar das audiências públicas, ou seja, aqueles que, com o relato de sua experiência, colaborarem na construção de uma memória coletiva que, ao mesmo tempo em que no plano pessoal propicia a elaboração do traumático, permite que ela se inscreva como memória social, evitando a repetição.

Participaram das oficinas colegas de Uruguai e Argentina, países que tem trabalhado, também, no sentido de uma reparação aos afetados pela violência de Estado, entendendo que somente a reparação financeira não dá conta do dano subjetivo da experiência traumática. A articuladora da área de relações externas do Departamento de Psicanálise, Maria Beatriz Vannuchi, participou de ambas as oficinas.

LEITURA POLÍTICO-CLÍNICA DO EDITAL

Durante maio e junho de 2012, e de posse do material recolhido nesses dois encontros, a Comissão de Anistia elaborou um Edital de convocação para entidades da sociedade civil, solicitando o envio de projetos de atendimento clínico, capacitação de profissionais e construção de memória coletiva a partir da elaboração de insumos de referência para aproveitamento profissional múltiplo, que foi publicado no diário oficial em 13 de julho de 2012 (uma versão em PDF está disponível na internet como Edital clínicas do testemunho (vale a pena conhecer).

Evidentemente, a leitura do Edital surpreende e emociona pela clareza de objetivos e pela procura de articulação entre a dimensão subjetiva do sofrimento e a necessidade de inscrição histórica do mesmo. O evento traumático individual adquire uma dimensão de elaboração coletiva e se transforma em um legado para as novas gerações. São considerados muitos aspectos importantes tais como a possibilidade de efeitos danosos de revitimação durante o processo de audiência pública, e a insuficiência da reparação financeira e moral, se ela não é acompanhada de um reconhecimento do dano subjetivo e da eventual assistência psicológica, quando necessária.

Do ponto de vista psicanalítico, podemos dizer que os conceitos de trauma, elaboração e repetição permeiam o texto jurídico numa amálgama surpreendente. Anistia não significa esquecimento e, pelo contrário, remete à memória e inscrição, fazendo dela um caminho para a reflexão crítica e o aprofundamento democrático.

Por outro lado - e para além do trabalho com os anistiados -, abre a possibilidade de capacitação com os profissionais envolvidos no projeto e cria, para a instituição encarregada do projeto, o compromisso de divulgação dos resultados e sua participação no trabalho de construção da memória coletiva.

Ambicioso em seus objetivos e parco nos recursos financeiros para implementá-los, responder a esse Edital constituiu-se em um desafio dificílimo, especialmente levando em conta o prazo exíguo entre a publicação do Edital e a entrega de projetos (aproximadamente 15 dias).

O TRABALHO INSTITUCIONAL

Após a leitura do Edital, o Conselho de Direção do Departamento de Psicanálise encaminhou uma carta à Diretoria do Instituto Sedes Sapientiae, manifestando o interesse de elaborar um projeto para ser apresentado em nome do Instituto e solicitando o acordo para realizá-lo. Soubemos, então, que outros grupos do Instituto também estavam interessados em participar e, após uma convocatória ampla a todos os setores do Instituto, a Diretoria do Sedes estabeleceu que fosse apresentado um único projeto em nome do Instituto. Formou-se assim um grupo com colegas de outros setores do Instituto, do qual participamos, pelo Conselho de Direção do Departamento, Antonieta Whately e eu.

Quando fui convidada, pela equipe do Boletim, a relatar a experiência de elaboração do projeto, me defrontei com uma situação inédita: por um lado, poder fazer um relato o mais fiel possível do andamento dos trabalhos e das articulações políticas que se fizeram necessárias para podermos realizar uma tarefa que, a priori, parecia muito difícil. De outro lado, a vontade de transmitir a importância que teve, no plano pessoal, essa experiência de recuperação da memória e de identificação com os afetados pela violência de Estado.

Após o primeiro dia de trabalho tivemos a constatação da impossibilidade de darmos conta das exigências do Edital: limite de número de caracteres, necessidade de fazermos três orçamentos para cada serviço a ser oferecido, trâmites burocrático infindáveis para sua inscrição no Ministério da Justiça, além do projeto clínico e científico que precisávamos discutir...

Optamos pela contratação de uma consultora externa, extremamente eficiente no plano formal da proposta e sensível à importância política do projeto.

No segundo dia, pareceu-nos que conseguiríamos. A união da diversidade teórica em torno de uma identificação com os princípios que norteiam o Instituto Sedes desde sua fundação, permitiu que fossem surgindo acordos, ideias e um primeiro esboço de projeto.

Foi um trabalho científico, emocional, grupal e pessoal. Muitas horas de trabalho concentradas em cinco dias e noites, às vezes em locais de trabalho improvisados, já que o Instituto Sedes não abre aos domingos e fecha cedo em período de férias. Momentos de exaltação seguidos de outros de desânimo.

E as lembranças de cada um de nós, das violências de Estado sofridas, direta ou indiretamente. A presença da memória de amigos que já não estão, junto com a alegria pelo anúncio da gravidez de nossa jovem consultora, que já encerrava seus e-mails para o grupo com um: “Até a vitória!”.

No terceiro dia, discutimos a fundamentação política da pertinência do Instituto Sedes para gerenciar o projeto. Isto implicou em reconstruir a história de lutas do Instituto: o acolhimento aos movimentos sociais de liberação, o atendimento da Clínica do Sedes aos presos políticos, a primeira reunião do que viria a ser a Comissão de Anistia, os eventos sobre Direitos Humanos, Racismo, etc. Como escolher e como fazer caber em 5.000 caracteres tanta história?

No quarto dia, as contas não fecham: o projeto resulta excessivamente caro para os recursos disponibilizados pelo Ministério da Justiça e devemos rediscutir o tamanho da proposta, repensar custos, diminuir a equipe e abandonar algumas ideias...

No quinto dia, o projeto está pronto mas excedido em 10.000 caracteres. Novos cortes se fazem necessários, desta vez para dizer o mesmo com menos palavras. A partir desse momento foram realizados os trâmites de inscrição e alguns pequenos ajustes que demandaram o trabalho prioritariamente da consultora, funcionários do Instituto e parte da equipe.

DESCRIÇÃO DO PROJETO CLÍNICAS DO TESTEMUNHO DO INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE

O projeto será desenvolvido em três eixos: clínica, em grupo ou individualmente; pesquisa – produção de conhecimento a partir do atendimento à população específica; capacitação e formação de outros terapeutas e de profissionais da área da justiça.

Serão beneficiários diretos do projeto 48 anistiados e seus familiares, se for necessária uma intervenção clínica nesse sentido. Isto pode elevar o número de beneficiários a 144.

Serão beneficiários indiretos, além dos familiares, 100 agentes de saúde e do poder judiciário que participarão de oficinas de sensibilização e formação sobre os efeitos da violência de Estado na subjetividade; 10 profissionais de saúde capacitados nesta forma de atendimento por meio de estágio; 320 pessoas que participarão de dois eventos públicos e gratuitos realizados no Instituto Sedes, oriundos de associações da sociedade civil, ONGs, movimentos populares, pesquisadores e interessados em geral; leitores de um livro disponibilizado em PDF pelo Instituto Sedes (espera-se uma média de 500 downloads até um ano após a finalização do projeto); internautas: público do vídeo-documentário, especialmente jovens (espera-se vinte mil acessos em até dois anos do final do projeto).

Os atendimentos clínicos serão prioritariamente em grupo, prevendo a possibilidade de atendimento psiquiátrico e a participação de um assistente social - quando indicado - e os trabalhos de pesquisa clínica serão conduzidos pelos terapeutas-pesquisadores engajados no atendimento aos anistiados.

Quanto aos resultados que esperamos obter com todas essas formas de intervenção, gostaria de reproduzir o trecho do projeto que se refere a eles:

“ - Recuperação da memória, elaboração e inscrição do evento traumático nos marcos individual e coletivo, como forma de evitar a repetição.
- Construção de uma posição subjetiva diferente da posição de vítima, propiciando a participação ativa do afetado na reparação do sofrimento.
- Elaboração da diferença entre a efetiva dívida social e a dívida subjetiva, propiciadora de sentimentos de culpa e vergonha que dificultam a coletivização do padecimento.
- Uma escuta clínica ética que permitia acolher o novo que esta experiência proporcionará a todos os envolvidos na mesma: afetados pela violência, terapeutas e pesquisadores.
- Que os anistiados possam retomar sua cidadania e resgatar uma participação ampla na sociedade.”

Este projeto, a ser desenvolvido durante dois anos a partir de 2013, depende da aprovação do Ministério da Justiça e concorre com vários projetos de outras instituições. Se for escolhido, será uma oportunidade muito interessante de participarmos, de alguma maneira, da árdua tarefa de recuperação e reparação de um período sinistro da história nacional.

Tomara que seja possível. Até a vitória!


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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde é professora do Curso de Psicanálise e articuladora da área de Relações Internas no Conselho de Direção do Departamento.



 
 
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