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    22 Setembro de 2012  
 
 
NOTÍCIAS DO SEDES

Debate público sobre a Rede de Atenção Psicossocial e a implantação do AME Psiquiatria na cidade de São Paulo.


Em agosto não ocorreu o evento Vamos falar de Saúde Mental? no Sedes pois a comissão organizadora entendeu ser essencial a participação do grupo no debate público organizado pelo CRP/SP, que visava a refletir sobre a situação atual dos serviços de Saúde Mental e, particularmente, a proposta de implantação das AMEs de Psiquiatria. O evento e os principais pontos discutidos são relatados abaixo, em relato de Maria Ângela Santa Cruz, com colaboração de Yanina Stasevskas.



DEBATE PÚBLICO SOBRE A REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL E
A IMPLANTAÇÃO DO AME PSIQUIATRIA NA CIDADE DE SÃO PAULO
17/08/2012
CRP/SP



MARIA ANGELA SANTA CRUZ[1]

Em 17/08/2012 realizou-se, nas dependências do CRP/SP, um debate público promovido por trabalhadores de Saúde Mental da região do Butantã, com apoio do CRP/SP, da ABRASME, do Instituto Sedes Sapientiae e do Fórum Popular de Saúde. Estiveram presentes usuários e trabalhadores de diversos serviços da cidade. Da mesa composta para disparar o debate, participaram: Yanina Stasevskas – psicóloga, psicanalista, trabalhadora no CAPS Butantã -, Pedro Gabriel Delgado – professor do Instituto de Psiquiatria e da Faculdade de Medicina da UFRJ, ex-coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde - e Moacyr Miniussi Bertolino Neto – psicólogo, Conselheiro do Conselho Estadual de Saúde, mestre em Saúde Pública (Faculdade de Saúde Pública). Como coordenadora da mesa e do debate: Maria Angela Santa Cruz – psicóloga, psicanalista, analista institucional, coordenadora do NURAAJ – Núcleo de Referência em Atenção à Adolescência e à Juventude da Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae.

A situação (síntese do que foi exposto por Yanina):
A Fundação Faculdade de Medicina da USP é a Organização Social (OS) contratada pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS) para gerir a rede de saúde da região do Butantã. Sabe-se que a argumentação de base para os contratos de co-gestão entre a SMS e as OSs é que eles seriam mais eficazes em instalar a rede de serviços em saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), para dar cobertura às necessidades da população. Mas esta região vem apresentando os piores índices na cobertura de Saúde Mental da cidade de São Paulo, ao longo dos cinco anos da gestão daquela OS, que não vem implementando nenhuma outra iniciativa na rede – muito menos os CAPSs necessários. Desde 2002, a população reivindica a implantação de novos CAPSs no orçamento participativo, sem resultado.

E, neste momento, sem consulta pública, a Secretaria Estadual da Saúde, em parceria com quatro importantes Departamentos de Psiquiatria de quatro Universidades paulistas – UNIFESP, USP, Santa Casa e UNISA – pretendem implantar o segundo Ambulatório Médico Especializado (AME) de Psiquiatria da cidade no Butantã, uma estrutura pensada para ter um grande impacto na atenção à Saúde Mental e para ter uma função de gestora de rede de Saúde Mental da cidade. Evidentemente, solapando completamente o projeto de Saúde Mental sustentado pelo CAPS Butantã, que se encontra nesse momento sucateado e fragilizado, além de não haver mais interesse da OS em gerir este serviço, talvez justamente por estarem voltados para implantar essa estrutura especializada em psiquiatria. Também foram convidados para o debate representantes do modelo AME, que não compareceram, com o intuito de explicitar publicamente os dois modelos – AME-Psiquiatria e a Rede de Atenção Psicossocial – para que a população, os trabalhadores, os usuários pudessem tomar conhecimento e expressar suas posições, conforme o protagonismo almejado no espírito das Conferências de Saúde Mental.

A problematização (síntese da fala de Pedro Gabriel, comentada):
Questionando se o que está em jogo seria mesmo a oposição de dois modelos de funcionamento da atenção à Saúde Mental, Pedro Gabriel confirma a necessidade do presente debate como continuidade de discussão em torno do processo histórico da Reforma Psiquiátrica no Brasil, dado o extraordinário peso que São Paulo representa e que por isso pode influir nas políticas públicas e no governo federal.

A própria realidade do CAPS Butantã, CAPS 1, não investido de recursos governamentais para exercer seu mandato social, não conseguiria, sem as condições mínimas para seu funcionamento, atualizar a potência do modelo de Rede de Atenção Psicossocial, com prejuízo evidente em qualquer eventual comparação.

Sobre a AME Psiquiatria, criada para ser uma grande estrutura de serviço, foram feitas algumas considerações fundamentais para o entendimento da situação. Proposta como um equipamento que teria por finalidade a ampliação do acesso aos serviços de psiquiatria, teria um grande número de funcionários – por volta de 114 – estruturando-se por áreas específicas de atenção organizadas em 5 programas baseados em especialidades psiquiátricas (leia-se DSM-IV): Transtornos de Humor e Ansiedade; Transtornos relacionados ao uso de Álcool e Drogas; Psiquiatria Geriátrica; Transtornos Psicóticos e Esquizofrenia – preferência a pacientes com 1º surto nos últimos 2 anos; Psiquiatria da infância e adolescência.

Do ponto de vista dos números de atendimento, a AME Psiquiatria certamente se destaca pela quantidade de consultas diversas realizadas. (Em documento da AME Psiquiatria da Vila Maria, divulga-se que, em 10 meses de funcionamento, foram realizadas 21.243 consultas médicas, sendo 19.191 consultas psiquiátricas e 2.052 consultas clínicas ou neurológicas. Foram 16.347 atendimentos não médicos, entre acompanhamentos psicológicos, de Terapia Ocupacional e de Enfermagem). Pedro Gabriel destaca que a questão numérica vem sendo um argumento muito utilizado na defesa do modelo ambulatorial. Nesse sentido, aponta a importância de se construir formas competentes de discutir números, pelo modelo psicossocial.

Apesar de oferecer alguns recursos interessantes, como grupos de atenção psicossocial para problemas relacionados a substâncias psicoativas, grupos de mulheres e outros, sua lógica de estruturação do serviço é a lógica do encaminhamento: esse equipamento só recebe pessoas encaminhadas de outra unidade de saúde, mostrando com isso uma relação indireta com o território, relação mediada pelo mecanismo do encaminhamento. Tanto o mecanismo do encaminhamento como a lógica do atendimento a partir do diagnóstico por clínicas de especialidade produzem barreiras de acesso ao serviço – critério importante na avaliação de um serviço público, além de aspecto considerado estrategicamente fundamental para a própria realização universal de atendimentos preconizado pelo SUS.

A Rede de Atenção Psicossocial, por sua vez, funciona segundo outra lógica: a lógica do território, em que os serviços se mantêm abertos às demandas, se constituindo em uma presença viva no território. É preciso que o acolhimento aos pacientes não aconteça apenas de início, mas seja uma posição no trabalho, de forma que crie neles um certo grau de pertencimento, relacionado com a formação de vínculo e o depósito de confiança nesta forma participativa da abordagem psicossocial. Esta seria a principal diferença, conforme Pedro Gabriel, em relação aos ambulatórios de especialidades psiquiátricas. A atenção psicossocial como campo foi duramente construída no final dos anos 80, início dos anos 90, para lidar com pessoas com transtorno mental severo. São constitutivas desse campo as noções de clínica ampliada e de território, e seria através deste último – território como algo a ser construído, como espaço de identificação e pertinência do paciente, dos familiares, dos trabalhadores do serviço – que se faria qualquer forma de validação do serviço, e não pelo número de atendimentos ou de procedimentos. É uma lógica incompatível com uma lógica centrada primordialmente em diagnósticos.

Pedro Gabriel mostra ainda como a organização de um serviço feita pela lógica do diagnóstico nada mais seria do que um transporte da lógica da pesquisa. Nesse sentido, ...“não é irrelevante que sejam estruturas ligadas a Departamentos de Psiquiatria, configurando um modelo de funcionamento com baixa densidade de diálogo com o SUS e com a Saúde Pública.”

Pelo demonstrado anteriormente, é possível se afirmar que há uma incompatibilidade entre os dois modelos, e por isso, Pedro Gabriel adverte para o risco político dessa implantação das AMEs - Psiquiatria, principalmente para um CAPS fragilizado, que pode submergir pelos investimentos nas AMEs, caso que pode se configurar no Butantã.

Haveria uma diferença ética? Haveria uma diferença de visão de mundo? Na lógica da Rede de Atenção Psicossocial, se o trabalho fez diferença na vida de uma pessoa, já valeu! Ou seja, o projeto psicossocial está voltado para a vida do sujeito, preocupando-se em abrir perspectivas para ele mesmo.

Para Pedro Gabriel, a área da Saúde Pública deveria assumir um protagonismo nesse embate, afirmando que saúde pública não se faz criando barreiras de acesso aos serviços, e sim quebrando-as, e que se a Universidade tem sua autonomia de funcionamento, o SUS não pode se submeter à sua lógica, pois sendo um sistema público construído para responder de forma eficaz às necessidades de saúde, é mais abrangente do que a formação dos profissionais.

Pedro Gabriel enfatiza ainda que: “Não basta dizer que estamos construindo rede.” Pois construí-la é na verdade “criar uma presença viva para o acesso ao território.”

A revelação: Destaquem-se três importantes e reveladoras afirmações do representante do Conselho Estadual de Saúde, Moacyr Miniussi Bertolino Neto:

1) Da forma como atualmente se executam as Políticas de Saúde em São Paulo, a Prefeitura e a Secretaria Municipal de Saúde (SMS), que é o Gestor Pleno do SUS, não têm controle sobre o seu território de abrangência. Quem detêm esse controle são as Organizações Sociais em cada região que corresponde ao seu contrato com esse mesmo Gestor.

2) Que o Plano Estadual de 2012–15, proposto pelo Conselho Estadual de Saúde, não contempla as AMEs-Psiquiatria, equipamento que não teria sido submetido àquele Conselho.

3) A citação de uma Portaria que afirma que a interferência do governo estadual na gestão plena do SUS na cidade só pode ocorrer na circunstância da Secretaria Municipal de Saúde não dar conta de seu papel, o que não consta.

E Yanina acrescentou que, na origem da proposta do AME Psiquiatria para a cidade, se encontra uma denúncia encaminhada anteriormente ao Ministério Público de que o modelo de atenção em Saúde Mental que o Ministério da Saúde propõe é resposta ineficaz para a necessidade dos usuários de saúde mental e seus familiares.

Alguns acréscimos: Maria Angela Santa Cruz inclui nesse debate a existência de outra proposta, também feita por uma associação de departamentos universitários de psiquiatria, com verba do Ministério da Ciência e Tecnologia, na esteira de um amplo projeto de medicalização social, que já vem sendo efetivado em algumas regiões do Brasil, inclusive em São Paulo: as propostas de “prevenção precoce” de transtornos psiquiátricos em bebês, crianças e adolescentes, através de várias ações, inclusive da “capacitação” de professores da rede pública de educação, pelo Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento.

O debate: Feito com ampla circulação da palavra entre os participantes, foi promotor de três importantes encaminhamentos, além de ter lançado a importante questão – de onde vêm os recursos das AMEs?

As propostas de encaminhamento:
1) Outro debate – ampliado em seu alcance e participação, com o convite a um representante do Ministério da Saúde/Saúde Mental, a um gestor da Secretaria Municipal de Saúde, a um gestor da Secretaria Estadual de Saúde, a um representante da AME-Psiquiatria e a um conselheiro do Conselho Estadual de Saúde.

Considerou-se a necessidade de uma convocação de público mais ampla do que foi possível para este debate e que esta proposta, de cunho político e de esclarecimento devido à população por parte dos gestores de políticas públicas, faz parte de um processo que envolve participação da população, sendo por isso imprescindível a presença das instâncias gestoras responsáveis por essa proposta.

2) Enviar um documento de denúncia ao CES, decidido no dia 17, tendo em vista que a proposta desses AME Psiquiatria não passaram em nenhum momento pelo CES para aprovação. Enviar o mesmo documento para o Ministério Público.

3) Fazer um ato público na cidade sobre a proposta AME-Psiquiatria

4) A formação de uma comissão de trabalho para viabilizar as propostas de encaminhamento.

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[1] Maria Ângela Santa Cruz é membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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