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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    23 Novembro de 2012  
 
 
CINEMA

UMA RUPTURA TÃO PERIGOSA


RENATA UDLER CROMBERG [1]


Agradeço à equipe do Boletim pelo convite para opinar sobre o filme Um método perigoso (A dangerous method. David Cronenberg, 2011). Ele me permitiu rever e avaliar mais favoravelmente o filme, que havia achado decepcionante e chato. A julgar pela filmografia anterior do diretor, eu esperava uma estética mais onírica e menos documental e linear, uma vez que ele gosta de histórias viscerais, que mexem em profundidade com o corpo e com a imaginação.

O filme tem o indiscutível mérito de divulgar a existência de Sabina Spielrein como pessoa importante na história do movimento psicanalítico, só que - assim como ocorre em Jornada da alma, o filme de 2002 com direção de Roberto Faenza - privilegia mais uma vez o papel de Sabina Spielrein como primeira paciente de psicanálise e amante de Carl Gustav Jung. Um método perigoso tem roteiro do autor da peça teatral The talking cure, Christopher Hampton, escrita em 2002 e encenada em Londres pela primeira vez em 2003, e se baseia no livro de John Kerr, A most dangerous Method, de 1997 (Um método muito perigoso - Jung, Freud e Sabina Spielrein: A história ignorada dos primeiros anos da psicanálise, Rio de Janeiro: Imago, 1997). A estética do filme é impecavelmente limpa, tudo perfeitamente no seu lugar, muito bem arrumado e isso chega a aborrecer, apesar do excelente trabalho dos atores Keira Knightley (uma Sabina Spielrein caracterizada de maneira um pouco excessiva como histérica), Michael Fassbender (C. G. Jung) e Viggo Mortensen (Sigmund Freud). Como documentário, parece-me bem inferior ao docdrama da sueca Elisabeth Márton - Meu nome era Sabina Spielrein, de 2002 -, que foi por mim exibido em duas ocasiões no Instituto Sedes Sapientiae e que se encontra à disposição na biblioteca.

O diretor esclarece, nos créditos finais, que o filme é baseado em eventos verdadeiros, mas certas cenas, especialmente da esfera privada, são de natureza especulativa. Além disso, alerta que todas as cartas figuradas no filme são inspiradas por aquelas trazidas no livro de John Kerr. Isso permite comentar de maneira crítica as escolhas de Cronenberg em ao menos três pontos cruciais, por transmitirem uma visão ficcional que induz interpretações parciais e simplistas, ainda que a ficcionalidade de outros momentos não tenha me incomodado tanto, por apenas condensar artisticamente pontos diferentes da história, tal como evidenciaram os documentos acessados em minha própria pesquisa.

Primeiro ponto: Certamente o diretor não teve a assessoria de nenhum psicanalista ao transpor direta e simplesmente o prazer masturbatório infantil de Sabina Spielrein em apanhar do pai para um gozo sexual adulto de apanhar de chicote de Jung. Confesso que caí na gargalhada, o filme virou comédia. Qualquer psicanalista que tenha lido a reflexão freudiana do ensaio Bate-se em uma criança, de 1919, pode reconhecer, no relato de Spielrein acerca de sua fantasia infantil, algo presente na fantasia masoquista de qualquer criança no atravessamento singular do complexo de Édipo. Esta fantasia está escrita por Jung nos registros clínicos sobre Sabina Spielrein, da Clínica Burghölzli, em Zurique, de 1904 a 1905 e na terceira carta de Jung a Freud, quando apresenta, de maneira anônima, sua primeira paciente de análise. Jung obteve, quinze anos antes de Freud, um material que seis pacientes, incluindo Anna Freud, revelariam a este. Em parte alguma da correspondência, do diário de Spielrein, em nenhum intérprete de sua história lê-se qualquer coisa que implicaria nesta transposição simplista de uma fantasia infantil em um gozo sexual adulto (ao menos não perverso, porque não é o único encenado no filme, mas é o que mais aparece). Ao contrário, há uma extensa polêmica de Zvi Lothane, psicanalista americano, que publicou um longo ensaio (Tender love and transference: unpublished letters of C. G. Jung and Sabina Spielrein, no International Journal of Psychanalysis, vol. 80, em 1999) para questionar a consumação da relação sexual e afirmar que provavelmente se tratou de um enamoramento erótico que não passou dos beijos, abraços e carinhos, a partir da referência, nos diários de Spielrein, aos encontros com Jung como “fizemos poesie”. Eu discordo de Lothane, pois a reflexão teórica de Spielrein sobre o amor, a morte e a transformação indica claramente que ela teve o início de sua vida sexual adulta com Jung. No entanto, a partir do sentido - no romantismo de poesie, como o ápice mítico do saber -, da fertilização teórica mútua que houve a partir do trabalho clínico e de pesquisa conjunto, das conversas íntimas entre eles, bem como do usufruto conjunto das óperas de Wagner, penso que seu erotismo de corpo e alma passava muito mais pela troca teórica criativa do que por chicotinhos.

Segundo ponto: Na primeira ruptura entre Sabina e Jung apresentada por Cronenberg, ele mostra que, a partir da carta escrita por Jung à mãe de Sabina Spielrein de maneira a tranquilizá-la, Jung queria restabelecer um pagamento (que na carta verdadeira é de 10 francos e o roteirista coloca 20 francos, não sei o porquê) e a condição de paciente para ela, de forma a não se relacionarem mais amorosamente. No diálogo fílmico, Sabina diz a ele que se considera paciente dele e ele diz que não a considerava mais assim e que estava querendo restabelecer este elo, com o pagamento e os encontros só no consultório. Este não é o meu ponto de vista. Jung foi sempre ambivalente em relação ao estatuto de sua relação com Spielrein, por razões de mantê-la distante e secreta para sua família e seu meio profissional. Mas Sabina não se considerava mais sua paciente pelo menos desde 1906, segundo suas cartas e diários de 1906 a 1912. É como sublimação deste amor, como filho simbólico, que dedica a Jung seu escrito A destruição como causa do devir. A posteriori, podemos dizer que é sublimação também do amor transferencial, mas que se consumou num amor sexual. Este é um dos méritos do filme: deixar claro algo que não fica na correspondência ambígua de Jung com Freud e com Spielrein, de que ele a amou e de que ela foi importante para ele, tanto pessoalmente como para a criação de seus conceitos teóricos.

Terceiro ponto: Algo que havia passado despercebido para mim, a que outras pessoas me chamaram a atenção: Cronenberg escreve no final do filme, quando expõe o que aconteceu com cada um dos atores históricos da narrativa fílmica, que Jung era o maior psicólogo de todos os tempos. Aí o meu humor só pode ser irônico com esta estranha escolha. Ao descrever o que aconteceu com Freud, ele destacou a fuga dos nazistas para Londres e a morte por câncer. Ao descrever o que aconteceu com Sabina Spielrein, ele fala do destaque como psicanalista pioneira na antiga URSS e da morte nas mãos dos nazistas juntamente com suas filhas em uma sinagoga (versão menos provável de sua morte, que se deu na ravina da Serpente com milhares de judeus e soldados soviéticos, assassinados e queimados). E de Jung, o maior psicólogo de todos os tempos, ele diz que sobreviveu à sua mulher Emma Jung e à sua amante Antonia Wolff para morrer pacificamente, em 1961. No mínimo, para fazer um paralelo com a presença do nazismo nos destinos de Freud e Spielrein, Cronenberg teria que mencionar que seu maior psicólogo havia colaborado com o nazismo e também dado o beneplácito de restrição da presença de judeus no Clube Psicológico de Zurique, por um sistema secreto de quotas, em 1944, e que foi abolido tacitamente, em 1950, sem jamais haver um pedido de desculpas, nem mesmo para as declarações antisemitas do período de 1933 ao final da guerra. Jung assumiu, em 1933, a Associação Alemã Geral de Psiquiatria, após a renúncia em sinal de protesto de Ernst Kretschmer, pois com suas palestras antisemitas, transmissões de rádio e artigos, ele havia conseguido obter influência no Reich. Já Matthias Göring, primo do “famoso” marechal, funda uma nova sociedade alemã para a psicoterapia. A conclusão que aparece em inglês nos protocolos das atas dos crimes de guerra do Tribunal de Nurenberg, O caso do Dr. Carl Gustav Jung, que envolve também Matthias Göring, escrita pelo encarregado britânico dos crimes de guerra em Nurenberg, diz que:

“Está claro que o Dr. Jung forneceu grande parte do contexto filosófico, ou talvez pseudofilosófico, do movimento nazista. O Dr. Goring também desempenhou um importante papel em sua condição de Reichfürer da Sociedade de Medicina Geral Alemã. O Dr. Jung é, aparentemente, cidadão suíço e presumivelmente imune. No que concerne ao Dr. Göring, talvez valha a pena investigar se ele pode ser processado por algum crime. Não imagino que certas opiniões, por mais repugnantes e equivocadas que sejam, constituam por si mesmas um crime”.

Esta informação eu obtive na mais completa biografia de Sabina Spielrein recentemente publicada em português, que contém uma extensa pesquisa em fontes primárias, Sabina Spielrein, de Jung a Freud, da psicanalista suíça Sabine Richebächer, publicada este ano pela editora Civilização Brasileira e que recomendo.

Parece que Cronenberg deixou reservado seu habitual toque de terror para o final de seu filme, se pudermos questionar historicamente a morte “pacífica” de Jung e a atribuição a ele feita pelo diretor cinematográfico de ser o maior psicólogo da história.

Espero que o primeiro volume de Sabina Spielrein, vida e obra de uma pioneira da psicanálise, escrito a partir da pesquisa realizada por mim e das traduções de Renata Mundt, que será publicado no primeiro semestre de 2013 pela editora Livros da Matriz [2], possa trazer ao primeiro plano a leitura e a análise da obra visionária da autora psicanalítica Sabina Spielrein, tirando-a deste lugar exclusivo de paciente e amante de Jung e de seu papel decisivo na ruptura deste com Freud, que acabam por recalcar novamente a sua importância pioneira e o sentido de sua trajetória de vida singular como psicanalista e como mulher.

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[1] Renata Cromberg . Filósofa, psicanalista e membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Doutora pelo Instituto de Psicologia da USP, é autora de Cena Incestuosa (Casa do Psicólogo, 2001) e Paranóia, (Casa do Psicólogo, 2000).
[2] Revisão da tradução de Nelson da Silva Júnior e prefácio de Silvia Leonor Alonso.




 
 
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