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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    23 Novembro de 2012  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

CLÍNICAS DO TESTEMUNHO NA ARGENTINA E NO BRASIL


MARIA BEATRIZ COSTA CARVALHO VANNUCHI [1]


No sábado, 1º de setembro, tivemos na Assembleia Legislativa de São Paulo uma reunião com a participação de Fabiana Rousseaux e Maria Rita Kehl, psicanalistas e membros, respectivamente, do Centro Fernando Ulloa, na Argentina, e da Comissão da Verdade Nacional, no Brasil. A coordenação da mesa ficou por conta de Adriano Diogo, presidente da Comissão da Verdade Rubens Paiva. Tal reunião tinha como objetivo discutir as concepções da clínica psicoterapêutica com as vítimas da ditadura no Brasil, e fez parte do seminário Psicanálise, Política e Memória em Tempos Sombrios: Brasil e Argentina. Clique aqui para ler o folder do seminário.

O público presente era de psicólogos, psicanalistas e representantes da sociedade civil e de organizações de Direitos Humanos que vêm trabalhando esta questão.

Este relato será perpassado pelas pesquisas que tenho realizado em torno da concepção da Clínica de Testemunho.

Com a implementação da Comissão da Verdade Nacional e das estaduais, assim como a ampliação do programa Marcas da Memória, da Comissão de Anistia, temos acompanhado o incremento de discussões sobre a inclusão de atendimentos em Saúde Mental como parte das políticas de reparação, na assistência aos cidadãos que foram afetados pela violência de Estado no período da ditadura civil-militar.

Desde a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, em dezembro de 2010, que julgou a responsabilidade do Estado nos desaparecimentos no Araguaia, a assistência psicológica já figura como prescrição, sendo considerada como uma ação indenizatória para as famílias dos desaparecidos, ao lado da indenização financeira. Foi, portanto, na condição de indenizaçã, ou seja, como medida de compensação devida, de maneira a anular ou reduzir danos, que a sentença incluiu a responsabilidade estatal de dar assistência psicológica às famílias dos desaparecidos.

Nas diversas políticas de enfrentamento dos efeitos deletérios do terrorismo de Estado, um conceito tem sido o fio condutor nos processos de resgate da memória: o testemunho. O testemunho articula a proposta de recomposição da memória nas dimensões de reconstrução histórica e subjetiva, principalmente porque é um ato que inclui a fala no lugar do imperativo do silêncio e devolve a condição de sujeito àqueles que foram violentamente constrangidos à condição de objeto. O suplicio físico e moral, nos regimes de exceção, são instrumento de coerção, de desumanização, justamente para apagar o que se torna vetado ao pensamento, à fala e ao ato.

Neste sentido, a participação de Fabiana Rousseaux expôs o trabalho que tem coordenado na Argentina, situando esta clínica como instrumento de suporte para a reconstrução de laços, a partir dos quais aqueles que foram vítimas de violência possam exercer seu testemunho na condição de sujeitos. Para tanto há que se retomar as conexões entre a verdade de cada história singular e a história coletiva. O entendimento é de que as sequelas produzidas pelos traumas decorrentes dos desaparecimentos e sequestros de militantes e de seus filhos imprimem um tal desamparo que constrangem ao isolamento ou mesmo à objetalização, ao lugar de vítima, sendo os testemunhos parte da reconstrução desses laços.

Há uma especificidade presente no exercício dos testemunhos na Argentina que é a exigência de validação jurídica das narrativas, já que esses testemunhos são provas em processo penal e têm consequências punitivas para os criminosos. Isso é resultado de um avanço político, mas introduz um elemento complexo que é a exigência de prova e o enfrentamento da instituição do tribunal por parte daqueles que foram violentados pelos órgãos de autoridade estatal. A clínica faz, então, um acompanhamento em torno da sustentação da palavra desse sujeito-cidadão que produzirá um enunciado, sua verdade, com recursos suficientes para não cair novamente no desamparo, repetindo a situação de violência.

Logicamente, apareceu na reunião toda uma discussão em torno das diferenças entre o processo no Brasil e na Argentina, que vão desde que, naquele país, o enfrentamento dos crimes patrocinados pelo regime totalitário já é uma realidade há anos, até o fato de que a investigação tem hoje uma conotação penal. No Brasil ainda estamos iniciando um processo de dar voz àquilo que ficou calado durante tanto tempo e o testemunho ainda não tem como consequência a punição dos agentes responsáveis. Além disso, foi ficando claro que o que aparece como tema central dos testemunhos na Argentina é a prova dos desaparecimentos e sequestros. Já no Brasil, apesar de haver muitos casos de desaparecimentos e mortes, a temática que está presente nos relatos é a disseminação do exercício da tortura e seus efeitos sobre cada um e sobre o corpo social.

Maria Rita Kehl fez sua contribuição apontando que os testemunhos registram a prática generalizada da tortura por parte das organizações repressivas da ditadura, prática essa que produziu um verdadeiro trauma social. Trauma reconhecível tanto pela devastação dos corpos e das referências nos sujeitos que foram vítimas da tortura, mas também pelo efeito de repetição no aparato policial. Levantou a hipótese de que a quebra de um tabu, por meio da autorização do uso do corpo do outro como instrumento de gozo, produziu a extensão da tortura, inclusive como instrumento de resolução de conflitos nas comunidades indígenas e camponesas nos recônditos do país. Ali não se tinha a menor notícia de que havia uma ditadura, mas houve a intensificação do uso da violência como ferramenta de dominação na resolução dos conflitos. Segundo esta hipótese, a autorização da tortura perdura até os tempos atuais como uma espécie de banalização, tendo um efeito de repetição, numa sociedade que passou a considerar a tortura como um procedimento corriqueiro e aceito. Falou dos efeitos traumáticos inclusive para os agentes da tortura, no sentido de que, para estes, depois de atravessado o limite da civilidade, só resta o destino de ser torturador.

Este último argumento, o do efeito traumático inclusive para aqueles que exerceram a violência, foi questionado, com o argumento de que essa ideia possa ser confundida com a des-culpabilização dos atores do aparato repressor, com o esquecimento de sua responsabilidade. Foi lembrado que, embora o Brasil já tenha assinado um protocolo internacional de criminalização da tortura, ainda hoje, do ponto de vista penal e do discurso coletivo, os torturadores estão livres e des-responsabilizados, sob o manto da “Lei da Anistia”.

Esta discussão merece mais espaço porque houve uma colisão de termos e conceitos entre as teorias da psicanálise e a concepção de uma política. Em psicanálise, o uso do conceito de trauma não implicaria necessariamente a ausência de responsabilidade nem a dimensão de vitimização dos agentes da violência. Só ressaltaria o efeito de automatismo de repetição. Para uma proposição política, talvez o uso deste termo ganhe uma conotação diferente. Na intersecção entre os campos haveremos de nos encontrar várias vezes nestas encruzilhadas.

Ainda no tema da responsabilidade, Maria Rita afirmou que a Comissão da Verdade vai pesquisar também os financiadores da tortura na ditadura civil–militar e o uso do aparato repressor a serviço daqueles que a financiaram.

Passaram-se muitos anos desde o final da ditadura no Brasil, mas a psicanálise nos ensina que o trauma se caracteriza justamente pela exclusão da inscrição psíquica. Com a recusa da admissão de sua existência no discurso coletivo, a marca da violência permanece imune às vicissitudes da passagem do tempo, enclausurada nos corpos, em suas dores, sem a possibilidade do desgaste e do distanciamento.

A proposta de uma clínica que trabalhe o testemunho aponta para a inscrição das verdades como saber compartilhado, dando vez à memória em sua dimensão de registro e também de esquecimento. Enquanto os fatos ficarem relegados ao silêncio, mantém-se uma condenação aos sujeitos feridos, que portariam em seus corpos tudo aquilo que o conjunto da sociedade não quer saber.

Voltando à questão da prestação de assistência psicológica como parte de uma política de indenização, nos termos da Clínica de Testemunho, proposta que foi construída a partir de um trabalho com a contribuição de psicanalistas, a indenização ganharia uma dimensão simbólica, e ocuparia o lugar de instrumento de auxílio da retomada da palavra.

A psicanálise e nós, psicanalistas, com certeza temos ainda muito a contribuir e a aprender nesta clínica.

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise, articuladora da área de Relações Externas do Conselho de Direção do Departamento de Psicanálise, terapeuta e coordenadora do Núcleo de Atendimento de Famílias da Instituição Projetos Terapêuticos.




 
 
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