PUBLICAÇÕES

    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    24 Abril 2013  
 
 
ESCRITOS

AS MENINAS


RUBIA DELORENZO [1]

Dissimulada, com o canto dos olhos registrando toda a cena que provoca, soberba e indiferente como um senhor da terra, a menina.


Em cima do patinete, desliza dançarina, equilibrista. Atravessa os espaços embriagada de júbilo e avança, valente, despertando fascínio e tensão.

Que perfeito! Vai cair?

O que da artista diminuta evocou a figura da infanta?

Sei de muitos que escreveram sobre a obra-prima de Velázquez. Sei de muitos que repintaram com deleite, divertidos, As Meninas.

O que é que lembra na menina que escorrega brandamente, a pequena princesa Margarita, Infanta de Espanha?

Seria a porcelana de seu rosto, o domínio que vem do olhar arguto, o temperamento destemido, imperioso?

A mim, o que comove é essa pose de menina iluminada, esse gesto indiscutível, entre criança e rainha. Feita duas vezes rainha.

É esse mesmo gesto soberano que vejo na altivez da menina que desliza, movendo o patinete, e voa como se fosse alada.

Há uma sensação de captura nessa expansão que as torna tão infladas e as compõem como tiranas.

Na tela, a cena doméstica – secundária à tarefa efetiva do pintor – exerce tal atração e é tão forte, que é apenas a menina que enxergamos e o que em torno dela está para servi-la.

Tudo se escurece para melhor fazer brilhar a majestade de seu gesto e ela, a infanta, sua presença que irradia o brilho do dourado do cabelo, superposto ao da seda luminosa do vestido, é o espelho perfeito de um instante transitório mas paradoxalmente eterno. Ficamos presos – até que o encanto se dissipe – nesta rede fechada, no intrigante gosto pela perfeição e a inocência. No momento ímpar da experiência desse esplendor são insuspeitadas as razões de alguma ponta de melancolia.

Quando sobrevém a primeira dor? A primeira ruga no rosto da criança? A primeira trinca no monumento ideal? Pois, esses pequenos narcisos, de vida longa e breve, como a imagem e a flor, perdem-se dentro de si, na hora dura, na hora escura, ensimesmados.

Picasso as vê quebradas, As Meninas.

Explode a imponência da criança, que, agora, se vê partida, dividida, sobreposta. Na nova geometria que inaugura ao lado da perfeição do retrato, voam pelos ares os estilhaços, alteram-se a infanta e seu reinado. Logo vemos a menina emagrecida, fininha, delgada, por dentro da roupa-caixa, da roupa armada que a veste: a infanta está reduzida, a realeza murchou.

Na série de telas pintadas de agosto a dezembro de 1957, em sua releitura da obra As Meninas, Picasso mói a excelência das formas, a ilusão da luz. Ali, na reinvenção de planos e volumes próprios à estética do artista, nas modulações que alteram proporções e formas, vemos despedaçar-se a harmonia anterior.

Numa das telas desta mesma série, a menos caleidoscópica, talvez, pintada mais ao gosto da Guernica – branco, preto, um grão de cinza, algum marrom - quase que se pode ler: “Somos muitos em um. Somos o direito e o avesso, somos o claro e o breu. Somos partidos”.

Picasso é Velázquez, ele é também o que o antecede.

Nicolazito é Paul vestido de arlequim, inacabado. O anão, bobo da corte, é também criança perfeita.

O cão pisoteado vira touro furioso.

A princesa virou sapo. É, agora, a anã que se agiganta.

No corpo tão deformado, na figura feia e desfigurada, encontra-se o inverso da criança-luz, mais-que-perfeita, a criança recusada, apavorante, apavorada.

As partes – o esplendor e a anomalia – estão só na aparência separadas, fixas, mostrando-se uma exterior à outra. Na verdade, são fragmentos móveis que se interpenetram, se afastam, voltam a se esbarrar...

Não raro vemos uma através da outra. Vemos simultaneamente, do alto, de baixo, por fora, por dentro.

Poderia a majestade em seus caprichos, viver sem a deformação de sua anã? É imperioso manter o disforme fora e desprezá-lo.

A menina do início, a que deslizava vaidosa, certa vez, diante do quadro de Velázquez, olhou atentamente a pequena monarca do retrato e sem hesitar, reconheceu-se: “Sou eu. Essa sou eu”.

Algum tempo depois, folheando o livro de figuras à procura da pintura impressionante, ao encontrá-la - sua expressão já sombreando o júbilo da primeira vez - diz, incerta: “Acho que sou parecida com ela... quando estou com meu vestido de anquinhas...”.

E, quase solene, com a pontinha dos dedos miúdos, faz o gesto suspendendo o babado da saia.

Instante breve mas perene, que faz doer e exultar.

Janeiro de 2013


________________________________

[1] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.



 
 
Departamento de Psicanálise - Sedes Sapientiae
Rua Ministro Godoi, 1484 - 05015-900 - Perdizes - São Paulo - Tel:(11) 3866-2753
www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/