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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    24 Abril 2013  
 
 
O MUNDO, HOJE

REPERCUSSÕES CLÍNICAS DO PRINCÍPIO PÓS-MODERNO
DA NÃO CONTRADIÇÃO


DANIEL LIRIO [1]


Quando fez um ano de vida, minha filha ganhou da bisavó um cachorrinho de pelúcia. Antigamente, esses bichinhos simulavam latidos, rosnados, davam a patinha ou até faziam xixi. Como não sabíamos o que este faria, apertamos a patinha e esperamos. Ficamos então, estupefatos com sua manobra: ele cantou, com trejeitos, Only you, clássico do The Platters de 1955.

No dia seguinte, voltando para casa a pé, parei em um lugar que, aos meus olhos, era uma lanchonete nova no bairro. Para minha surpresa, o local era um estúdio de tatuagem que vendia açaí. Achei curiosa essa junção de signos de culturas diferentes - uma mais esportista; outra mais underground. Lá pelas tantas, contudo, percebo algo estranho na música, até que reconheci tratar-se de um canto evangélico...

Em ambos os casos – aos quais o leitor pode certamente acrescentar uma longa lista – temos um mecanismo central da pós-modernidade: a coexistência sistemática de signos contraditórios. Assim, experimentamos apenas um leve estranhamento diante de combinações que, em outros tempos, seriam impensáveis, como um cachorro cantar ou um herdeiro da cultura punk aderir a signos naturebas ou evangélicos. Contudo, para quem cresce em um mundo onde os signos deslizam tão facilmente, a palavra “absurdo” perde sua razão de existir, pois não há mais um “mundo normal” ao qual se contrapor.

Esta configuração é compreendida como a confusão entre o mundo da fantasia e o mundo real, isto é, o imaginário e a realidade não funcionam mais como instâncias separadas que conferem sentido uma a outra. Isto pode ser observado pelo tamanho do investimento libidinal da sociedade nas estrelas da televisão, que passam a ditar os valores éticos e estéticos, tornando-se referência para o que é bom ou mau, belo ou feio. A partir daí, é a mídia que dá o padrão de realidade, tornando difícil saber onde acaba a novela ou anúncio publicitário e começa a vida mundana.

Este tema foi inicialmente abordado por Jean Baudrillard. Possivelmente o pensador mais eficiente para o entendimento da contemporaneidade, é um autor relativamente pouco lido. Um outro autor mais reconhecido para falar da Sociedade do Espetáculo é Guy Debord. Esses autores falam de uma hiperinflação do mundo dos signos, do mundo das imagens, em que as vicissitudes do cotidiano ficam escamoteadas. Baudrillard chama de hiperrealidade a essa realidade que parece ainda mais real, mas que não tem esse núcleo duro de real, não possui detalhes chocantes, ela não emperra, não inibe, não faz sintoma, não vacila; apenas flui, seus signos deslizam, vagueiam.

Esse processo ocorreria na economia, na política, na cultura e até no próprio corpo. Se, por meio de cirurgias plásticas, cada parte do corpo pode ser modificada sem que isso implique um reposicionamento subjetivo, é porque o corpo virou um acessório entre tantos outros. As diferentes condutas de uma pessoa também não precisam guardar coerência entre si. Não causa espanto que alguém fume antes da ioga, frequente o candomblé e estude física, goste de surf e de rodeio etc. Na época de Baudrillard e Debord, décadas de 60 e 70, era dito que isso acontecia porque os signos trocavam-se entre si, mas não se trocavam com o real. Posteriormente, Zizek (2003) falou de uma realidade purificada de seu peso, de sua substância chocante, dando exemplos como o café sem cafeína, a cerveja sem álcool e o doce sem açúcar. Kehl (2004) retomou Debord para falar da transcrição de toda a realidade cotidiana para o mundo das imagens, em que as experiências mais íntimas só adquirem sentido se forem vistas pelos outros, se ganharem publicidade.

Essa discussão interessa imensamente à psicanálise, pois lança luz sobre formas de adoecimento e possíveis intervenções clínicas. O correspondente da não contradição em termos subjetivos é o prejuízo da função de síntese por parte do ego, que deve negociar com o id, superego e com a realidade, organizando os diferentes tempos da história pessoal e constituindo, assim, uma identidade relativamente estável. Instância responsável pelo contorno, consistência e sentimento de unidade do ser, o ego forma uma imagem em que o sujeito se reconhece.

Uma imagem egóica mais plástica pode ser bastante salutar, esteja o sujeito bem ancorado no simbólico e, portanto, apto a utilizar esta amplitude em favor de sua liberdade. Contudo, esta condição pode ser muito ameaçadora, se a inserção simbólica for precária e o sujeito se vir desamparado frente a um universo de possibilidades equivalentes, à medida em que não consiga distinguir quais delas estão em consonância com o seu sentimento de si. Chego, assim, a um primeiro ponto: a pós-modernidade opera uma passagem de um tipo de sofrimento calcado no excesso de repressão para sofrimentos decorrentes da fragilidade egóica, como a apatia, o pânico e a depressão.

Esta transformação se radicaliza ao ser enfocada a constituição da subjetividade infantil. Como se constitui o princípio de realidade em um mundo imprevisível, em que não cabe a ideia do absurdo ou inverossímil? Na esteira desta discussão, o ponto nevrálgico é o reconhecimento da diferença sexual e a assunção de um gênero alinhado a uma anatomia – ou seja, como os jovens de hoje constituem a própria identidade sexual. Aqui, o questionamento em torno do homo ou heteroerotismo é coisa do passado. O desafio para a psicanálise da atualidade é a compreensão das figuras inseridas na concepção de transgênero, indicando com isso tanto a pessoa que se reconhece como integrante de um gênero diferente daquele que lhe é atribuído socialmente como aquela que não se sente pertencente a gênero algum. Em ambos os casos estão franqueadas as possibilidades de escolha homo, hetero ou bissexual. Nesta discussão, vale questionar se o esquema freudiano de “identificar-se com A e tomar B como objeto de desejo” ainda funciona. Mais ainda, no que se refere ao princípio da integração egóica, cabe pensar se a disposição para justapor signos ou imagens contraditórias deve necessariamente ser referida à figura da recusa e, por conseguinte, à perversão, ou se ela indica uma nova lógica de funcionamento bem ancorada na cultura contemporânea.

Mais um passo

Podemos efetuar mais um passo no sentido de aprofundar a discussão desses simulacros, isto é, destes dispositivos que embaçam a distinção entre imaginário e realidade, em que a contradição seria aniquilada. É importante notar que, ao contrário do que diz Baudrillard, os signos devem guardar algum lastro com a realidade. Uma boa ilustração é o mundo do mercado de ações e investimentos. O valor dos títulos negociados é muito maior do que a riqueza concreta que daria liquidez a esses papéis. Contudo, se ações das companhias são negociadas por valores exorbitantes, pode-se criar uma bolha que, se estoura, leva à perda de confiança e à queda imediata dos preços. Em suma, mantém-se imperativo algum nível de articulação entre realidade e imaginário.

O mesmo lastro com a realidade pode ser observado nos outros simulacros mencionados. Em um estúdio de tatuagem que vende açaí, os utensílios das duas atividades jamais podem ser misturados, sob pena de contaminação; uma música evangélica pode afugentar clientes de outras crenças religiosas. Uma pessoa do sexo masculino que não reconheça seu pênis como adequado para o seu gênero de pertencimento pode querer escondê-lo ou mesmo extirpá-lo, mas deverá fazê-lo em conformidade com as leis da biologia. Um candidato à cirurgia de redução de estômago deve estar ciente da revolução nos hábitos e valores que esta escolha implica. Ou seja, esses signos não são intercambiáveis à priori e devem sim, pagar seu tributo ao real. Façamos então uma pequena retificação na teoria de Baudrillard, para compreender que esses signos deslizam de forma aparentemente fluida, mas que eventualmente se chocam com a realidade.

A questão verdadeiramente sutil a ser tratada, portanto, é que esses signos aparentemente se trocam de maneira fluida – ou seja, criam esse efeito para o espectador. Contudo, para a constituição subjetiva, este “aparentemente” faz toda a diferença. Voltando à perspectiva do desenvolvimento infantil, se algo do princípio de realidade está camuflado e isto precariza a constituição egóica, a consequência pode ser a tentativa dos jovens de buscar, por meio de atos extremos, vestígios deste princípio de realidade. São exemplos desta busca as práticas que colocam em risco a integridade física de si e dos outros.

Finalmente, esta especulação nos leva a pensar sobre o tipo de intervenção clínica capaz de promover algum reposicionamento dentro desta configuração subjetiva. Em uma sociedade marcada pelo excesso repressivo e pela rigidez identitária, a simples possibilidade de associar livremente já representava um ganho e levava quase naturalmente à significação, ou seja, aos conteúdos recalcados. Contudo, em uma configuração marcada pelo enfraquecimento das forças repressivas e pelo excesso de identidades, o discurso jorra desorientado e compulsivo. Apoiado nas novas tecnologias das redes sociais, twitter, blogs e comunidades mais diversas, o sujeito pode narrar a si mesmo indefinidamente. Neste sentido, a psicanálise se mantém extremamente valiosa, pois a interpretação promove o entrelaçamento entre significante e significado, interrompendo o deslizamento dos significados aleatórios e constituindo uma significação. É no enlaçamento do significante com o significado que o sujeito se depara com sua questão singular, com sua posição fantasmática. Aqui ele se choca com o real de seu sofrimento; real que não desliza, não se contradiz, mas implica o sujeito na possibilidade de reposicionamento verdadeiramente novo.

Vale, finalmente, retomar o aforismo lacaniano de que “a angústia é aquilo que não engana”. Por ser exterior ao significante, a angústia pode cortar a cadeia e “fazer sulco no real”, dando ao sujeito a oportunidade de se deparar com aquilo que lhe é mais estranho (unheimlich). Aqui, as dúvidas e racionalizações são formas de tentar fugir da angústia, enquanto a ação genuína se fundamenta na certeza que habita a angústia. (Lacan, 2005, p. 88)

Portanto, a compreensão psicanalítica se choca com as concepções da psiquiatria organicista e das neurociências que patologizam a angústia. Em nome de uma suposta realidade cerebral, elas buscam eliminar as contradições do sujeito com a cultura, para que ele “funcione bem”. Em contraposição, nós psicanalistas podemos compreender a angústia como aquilo que funda o fenômeno humano e o institui como contraditório em relação à cultura, ao outro e a si mesmo, e sua sustentação é parte de nossa batalha cotidiana.

Referências Bibliográficas
BAUDRILLARD, J. A troca simbólica e a morte. São Paulo: Loyola, 1996. 295 p. BUCCI, E.; KEHL, M. R. Videologias: ensaios sobre televisão. São Paulo: Boitempo, 2004. 252 p. (Coleção Estado de Sítio)

DEBORD, G. (1967) A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de janeiro: Contraponto, 1997. 237 p.

LACAN, J. O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. 366p.

LIRIO, D. R. As modificações corporais como busca de um Corpo Simulacro. Anais do II Colóquio Internacional Práticas e Usos do Corpo na Modernidade. São Paulo. 2010. Também disponível em: www.daniellirio.com.br

ZIZEK, S. Bem-Vindo ao deserto do Real! São Paulo: Boitempo, 2003. 192 p. (Coleção Estado de Sítio)



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[1] Psicanalista, mestre em psicologia social pela USP, professor universitário. Foi aluno do curso de Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Autor do livro Suspensão corporal: novas facetas da alteridade na cultura contemporânea. (São Paulo: Annablume, 2010). www.daniellirio.com.br




 
 
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