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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    24 Abril 2013  
 
 
NOTÍCIAS DO CAMPO PSICANALÍTICO

HOMENAGEM A J.-B. PONTALIS


DANIELLE MELANIE BREYTON [1]


Em 15 de janeiro de 2013 faleceu em Paris o psicanalista, escritor e editor Jean-Bertrand Pontalis.

Morreu no mesmo dia em que nasceu, 89 anos depois. Em se tratando de Pontalis, é quase impossível não ver nesse derradeiro encontro alguma poesia. Ele que afirmava que evocar a morte é também dar lugar ao que aparece, ao novo, e que, na sua experiência, a doce melancolia e o apetite de viver andavam de mãos dadas.

Assim, entre as muitas formas de começar a falar sobre Pontalis é a poesia que abre o caminho. O límpido manejo das palavras e o declarado amor pela linguagem são os traços mais singulares de sua longa, profunda e diversa trajetória dentro da psicanálise, melhor dizendo, através da psicanálise, pois que, navegando por suas margens, ele vai mais longe, sem se afastar dela.

Na ocasião de preparar a entrevista de Pontalis para a revista Percurso (42), em 2008, tive o privilégio e o imenso prazer de me dedicar à leitura de seus livros mais recentes ainda não traduzidos para o português (Frère du précédent, Elles, um pouco mais tarde, Le songe de Monomatapa). Neles, mas também em outros anteriores – Loin, Le dormeur éveillé, Fenêtre... a lista é grande! – considerados obras do campo da literatura, encontramos uma original e bela composição da biográfica experiência psicanalítica com a vida e suas histórias. A fragmentária e criativa memória em fluxo e reflexão.

Em alguma ocasião, da qual se arrepende um pouco, propôs o nome de autografia para essa sua escrita. Arrepende-se, pois não consegue de todo definir esse termo. Distingue-a da autobiografia, em que o eu (moi) é tomado quase como um objeto, do qual se fala. Na autografia trata-se da expressão do eu (je), “falando e tentando falar”. O eu se escreve, não se descreve. Se essa diferença é dificilmente explicável, ela se faz sentir de forma muito clara na leitura, bastam algumas linhas.

Os textos são enxutos, suaves e precisos. Algumas frases ecoam.

Em Frère du précédent (2006), acompanhamos um Jibé (apelido referido às iniciais de seu nome, J.-B., pelo qual é conhecido na França em razão de ter assinado assim quase a totalidade de seus escritos) tentando elaborar a sua tormentosa relação com seu irmão mais velho (J.-F., o precedente). Nessa empreitada, ele busca a história da relação entre dois irmãos na sua genealogia familiar. Enumera célebres pares de irmãos, elege algumas obras literárias em torno da relação entre dois irmãos homens e seus duelos fratricidas. Inicia pela Bíblia, Caim e Abel.

Acompanhamos seus avanços e suas resistências a começar a escrever, a entrar no tema e a pôr um fim no livro, mas também na guerra, que acaba, mas nunca finda. Flutuamos junto a ele na recuperação de sua história, inscrita na história familiar, na história da França e na história da civilização. Tudo isso em breves capítulos, não lineares, íntimos, mas em nada excessivos, profundamente emocionantes. Poderia ser mais psicanalítico?

Um pequeno extrato: “Sonhei em te dedicar esse livro do qual escrevo as primeiras linhas. Rapidamente eu me repreendo: tampouco vou, agora que, morto, você não pode me machucar, procurar me reconciliar”.

E são vários esses seus livros. Sempre com essas características, breves, compostos de fragmentos, lindamente escritos e articulados em torno de algum tema. Elles (2007) são retratos de mulheres através dos quais fala sobre o amor. Em Songe de Monomatapa (2009), é a amizade que ele recolhe, e nos faz ver um mundo em que não pode faltar “aquele que nos protege dos tormentos do amor, nos afasta da fúria raivosa, faz recuar a morte”.

Perdre de vue (1988), Traversée des ombres (2003), En marge des nuits (2010), Avant (2012), Marrée basse, marrée haute (ainda por vir), como diz o escritor Daniel Pennac, “só a enumeração dos títulos de Pontalis é suficiente para exprimir o prazer que experimento ao lê-lo. São títulos sonhadores, flutuantes, quase silenciosos (...)”.

Jean-Bertrand Pontalis foi aluno de Jean-Paul Sartre no Liceu Pasteur e, marcado por essa forte influência, fez seus estudos superiores em filosofia, tornando-se professor dessa disciplina. Inquieto em busca de uma palavra mais própria, aproximou-se da psicanálise e iniciou uma análise didática com Jacques Lacan. Fez parte do círculo próximo desses dois grandes. Colaborou e foi, por diversos anos, membro do comitê de redação da revista Les Temps Modernes, criada e dirigida por Sartre. Também foi responsável pela transcrição dos primeiros seminários de Lacan, assim como de uma compilação de diversas transcrições resumidas.

Com intervalo de alguns anos, acabou rompendo com ambos, em um mesmo movimento que Pontalis atribui a um mal estar advindo do que sentia como um abuso de poder. Reconhecedor explícito do brilhantismo, da inteligência e inventividade de cada um deles, mas avesso à idéia de devoção, prefere falar em desprendimento à ruptura. “Sartre tinha uma inteligência alegre, veloz e habilidosa, mas ele tornava a minha, às vezes, triste e derrapante”. Quanto a Lacan, “a recusa, não de reconhecer a minha dívida que é imensa em relação a sua pessoa e seu pensamento, mas de ficar preso na sua língua”.

Já com relação a Merleau-Ponty, manteve-se muito próximo, e o considera como aquele que o ajudou a liberar-se de uma linguagem especializada e encontrar a direção de uma linguagem comum, encarnada. “... apenas a língua comum – comum, não universal – deixa alguma chance à palavra naquilo que ela tem de único”.

Avesso aos dogmatismos, J.-B. Pontalis manteve em sua trajetória a psicanálise em trabalho e articulação. Dividiu-se, melhor seria dizer multiplicou-se entre a clínica psicanalítica e o trabalho de editor e escritor.

Em 1966 criou a prestigiosa coleção Connaissance de l’inconscient, através da qual publicou diversas obras de Freud, introduziu na França Winnicott, Masud Khan e abriu espaço a inúmeros outros autores. Nessa mesma coleção, em 2012, publicou em co-autoria com Edmundo Gomes Mango Freud avec les écrivains, livro que pretende mostrar o que a psicanálise, sobretudo Freud, deve aos escritores.

Durante 25 anos, entre 1970 e 1994, dirigiu a Nouvelle Revue de Psychanalyse, revista marcada pela independência em relação às instituições psicanalíticas e que visava a aproximação da psicanálise com outras disciplinas, sobretudo a literatura. No comitê de redação figuravam André Green, Didier Anzieu, Guy Rosolato, Victor Smirnoff, entre outros. Ao todo são 50 números, o último dos quais (no outono de 1994) intitulado l’inachèvement (O inacabado), quando Pontalis resolveu interromper sua publicação. Declarou por vezes que, quando olhava em sua prateleira o conjunto das revistas, sentia que deixaria no mundo uma obra útil, coisa que não sentia em relação a nenhum de seus livros.

Desde 1989 também dirigiu a coleção L’un et l’autre: mais uma de suas criações aproximando a psicanálise e a literatura. Nesta um fala de outro através de si. São retratos subjetivos da vida de um outro, atravessados pela memória e imaginação do autor.

Não por acaso deixo para o fim a referência ao conhecido e reconhecido Vocabulário de Psicanálise que Pontalis assina em co-autoria com Laplanche. Essa é minha singela homenagem a ele, que, sem renegar a importância dessa obra e do trabalho empreendido, gostava de afirmar o quanto tinha se afastado dessa forma de abordar a psicanálise.

Sob a direção de Daniel Lagache, foram quase 10 anos de árduo trabalho que resultaram na publicação da 1ª. edição em 1967. Tão evidente que é quase desnecessário dizer do valor dessa obra, incontornável para aqueles que estudam e trabalham a psicanálise, que foi traduzida em mais de 20 línguas.

Pontalis ressalta que a grande aquisição desse trabalho para ele “foi a de que a teoria freudiana não forma um todo unificável, não apenas porque ela está em constante evolução, viveu remodelações, mas porque ela é feita de deslocamentos, de contradições, de retornos do recalcado.”. E como limite dessa empreitada, tão centrada no aparelho conceitual, aponta para a ausência, nas mais de 500 páginas do Vocabulário, de qualquer referência a textos para ele tão preciosos e perturbadores, nos quais a psicanálise se faz sentir mais do que em muitos outros, como O distúrbio de memória na Acrópole, ou O tema da escolha do cofrinho, O estranho, etc. “Não continuei nessa via que consiste em trabalhar e fazer trabalhar os conceitos, até fazê-los sofrer (...)”.

Para concluir, recorro às palavras de um daqueles que, além do prazer da leitura, tiveram o privilégio do convívio com a pessoa de J.-B. Pontalis. Cito o escritor e jornalista Jacques Drillon: “E eis que a morte nos levou Pontalis – ela nada se recusa. Ele era o melhor entre os bons, o mais fino entre os inteligentes, o mais clarividente e o mais livre. O mais talentoso também, entretanto sem exageros nem vaidade. E entusiasta, e gozador, e encantador...”.

Pontalis não deixa discípulos, deixa amigos e admiradores.

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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