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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    24 Abril 2013  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

DOMINGO NA RUA


CRISTINA BARCZINSKI [1]

Domingo de manhã, um sol tímido, depois de uma sequência de dias chuvosos. Um convite na caixa de mensagens: comemoração do Dia Internacional do Direito à Verdade sobre Violações de Direitos Humanos. Não conhecia a data, que foi instituída em 2010 pela Assembléia das Nações Unidas, como homenagem ao arcebispo Óscar Romero, assassinado por um membro do exército salvadorenho em 24 de março de 1980, no altar da catedral de San Salvador, onde oficiava a missa. Na época, El Salvador passava por uma guerra civil e Monsenhor Romero, que pregava a não-violência, passou a denunciar os abusos aos direitos humanos cometidos pela junta militar que governava o país. Ele foi uma das 22.000 vítimas da violência política naquele ano.


São Paulo, 24 de março de 2013. As pessoas vão chegando aos poucos à rua Maria Antonia, palco importante de enfrentamentos entre alunos da USP e do Mackenzie (estes apoiados por organizações fascistas), que culminaram, a 3 de outubro de 1968, no assassinato de um estudante secundarista, José Guimarães – foi a Batalha da Maria Antonia. Hoje, 43 anos mais tarde, é uma atmosfera diferente, famílias com crianças pequenas, algumas nos carrinhos, outras sentadas nos ombros dos pais, avós levam os netos pelas mãos. Amigos se encontram e se abraçam, enquanto os marronzinhos preparam um cordão de isolamento que logo, logo não dá conta do número de pessoas que vai chegando. Os carros passam devagar e seus passageiros olham, interrogativos, para a cena. Os músicos, no palco improvisado no alto das escadarias do prédio, ajustam o som e o simples ensaio já provoca algum balanço vivo nos corpos.

Foi esta a primeira vez em que a data foi comemorada oficialmente no Brasil, com a programação de dois eventos, um em São Paulo durante a manhã e outro, à tarde, no Rio de Janeiro. A comemoração paulistana foi apresentada pela psicanalista Maria Rita Kehl, membro da Comissão Nacional da Verdade, criada no governo de Dilma Roussef com o propósito de restaurar as histórias de abusos cometidos pelo Estado brasileiro durante períodos ditatoriais [2]. No Rio, o evento aconteceu na Praça São Salvador - lugar tradicional de roda de chorinho aos domingos - com participação do Movimento Memória, Verdade e Justiça e direção de Cecília Boal, a presença de artistas, ativistas e vítimas da violência de Estado.

O Dia Internacional do Direito à Verdade, comemorado pelo Movimento de Artistas pela Verdade em São Paulo, um coletivo liderado pela Companhia do Latão com direção de Sergio Carvalho, trouxe muitas lembranças a todos, a começar por José Miguel Wisnik que, enquanto ex-aluno da Faculdade de Filosofia e, portanto, frequentador do prédio da rua Maria Antonia na década de ´60, lembrou-se de um tempo em que os alunos de um curso universitário “buscavam inserir-se na vida, não no mercado”. O nome Maria Antonia para ele evocava uma potência feminina, endereço de um lugar de onde não se conseguia sair, tantas eram as discussões e descobertas ali vividas. Wisnik rememorou mulheres fortes, como Elenira Nazaré e Iara Iavelberg, com as quais conviveu e que desapareceram após aderirem à militância. Disse da importância da nomeação do que aconteceu, dos mortos e desaparecidos, pois só assim poderemos desvelar “a mentira maiúscula – a de que nada disto aconteceu”. Na sequencia, apresentou junto a Celso Sim a canção de Jorge Mautner, Consciência do limite [3]. Em seguida, a Companhia do Latão, TUSP, Estudo de Cena e Companhia Estável uniram-se numa performance baseada na leitura de um texto de Bertold Brecht - As cinco dificuldades em escrever a verdade [4]. O texto, declamado por vários atores, foi entremeado por belas canções, como Gracias a la Vida de Mercedes Sosa, e testemunhos, como o de Débora Maria Silva, valente fundadora em 2006 do Movimento Mães de Maio, motivada pelo assassinato de seu filho por policiais[5]; ela pediu que o passado se una ao presente e que a Comissão da Verdade não deixe de incluir em seu projeto a investigação destes assassinatos recentes.

Maria Rita Kehl esclareceu que a dignidade humana depende do acesso à busca da verdade; mesmo que esta verdade possa não ser toda, é fundamental que o caminho de busca não seja dificultado pelos agentes de estado. Como afirmou em seu artigo na Folha naquele mesmo domingo, “Se o estabelecimento da verdade histórica, nas democracias, está sujeito a permanente debate, o direito de acesso a ela deve ser incontestável. A garantia do direito à verdade opõe-se à imposição de uma versão monolítica, característica dos regimes autoritários de todos os matizes. Ela exige a restauração da memória social, estabelecida no debate cotidiano e sempre exposta a reformulações, a depender das novas evidências trazidas à luz por ativistas políticos e pesquisadores. (...) A verdade social não é ponto de chegada, é processo. Sua elaboração depende do acesso a informações, mesmo as mais tenebrosas, mesmo aquelas capazes de desestabilizar o poder e que, por isso, se convencionou que deveriam ser mantidas em segredo. Se o reconhecimento dos fatos que um dia se tentou apagar não costuma trazer boas notícias, em contrapartida a supressão da verdade histórica produz sintomas sociais gravíssimos - a começar pela repetição patológica de erros e crimes passados”[6].

Para descarregar o ambiente de trevas imposto pela mentira autoritária, que infelizmente persiste em declarações[7] e atos recentes, o evento terminou numa celebração luminosa à vida, por meio de um animado carnaval de rua convocado pelo bloco de percussão Ilu Oba De Min. Esta ainda é uma batalha pela verdade, armada de poesia, música e dança, pois, como afirma Maria Rita, “só a arte nomeia os crimes silenciados no Brasil”.


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[1] Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise, integrante do Grupo de Trabalho Sexta Clínica e da equipe editorial deste Boletim.
[2] Leia a respeito o artigo “Uma Psicanalista na Comissão da Verdade”, edição n. 21 do Boletim Online.
[3] “A liberdade é bonita, mas não é infinita! Eu quero que você acredite, a liberdade é a consciência do limite! Os erros e os defeitos cotidianos, fazem parte dos direitos humanos. E o coração quer a atitude da inclusão em plenitude das minorias, das etnias, dos excluídos, humilhados e ofendidos, da esperança ressuscitada pela inclusão da criança abandonada. Com sorte iremos concebê-las, as conquistas da morte e das estrelas. Oh biogenética, oh cibernética, que alegria viver e a descoberta do outro é puro prazer. Meta, meta, meta, meta, meta, meta, meta, meta, Metafísica. A liberdade é bonita, mas não é infinita! Eu quero que você me acredite, a liberdade é a consciência do limite. E o resto, me entenda, é desconcentração de renda! ”.
[4] “Hoje em dia qualquer pessoa que queira combater as mentiras, a ignorância e escrever a verdade precisa superar pelo menos cinco dificuldades. Ele precisa ter a coragem quando a verdade é negada em todos os lugares; a inteligência para reconhecê-la apesar de oculta em todos os espaços; a habilidade para manipulá-la como arma; o discernimento para selecionar em quais mãos ela será efetiva; e a engenhosidade para disseminar a verdade entre essas pessoas. Esses são problemas formidáveis para escritores que vivem sob o Fascismo, mas eles existem também para aqueles escritores que fugiram ou foram exilados; eles existem mesmo para os escritores trabalhando onde a liberdade civil prevalece”. O texto integral, com tradução de Vitor Pordeus, pode ser acessado em http://archive.org/stream/CincodificuldadesDeEscreverSobreAverdade/BrechtEscreverSobreAVerdade5Dificuldades_djvu.txt.
[5] A impunidade dos casos de execução de jovens das periferias paulistas ainda persiste, mas o movimento tem alcançado vitórias, como o fim da expressão “resistência seguida de morte” dos BOs da polícia paulista. O leitor pode se informar sobre o tema em http://maesdemaio.blogspot.com.br.
[6] http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1250962-os-crimes-do-estado-se-repetem-como-farsa.shtml.
[7] O recém nomeado secretário particular do governador Geraldo Alckmin, Ricardo Salles, fundador do Movimento Endireita Brasil, questionou a existência de crimes cometidos por militares durante a ditadura, provocando a indignação de Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado Rubens Paiva, assassinado pelo Doi Codi em 1971. (http://blogs.estadao.com.br/marcelo-rubens-paiva/exige-se-uma-retratacao/).



 
 
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