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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    25 Junho 2013  
 
 
ESCRITOS

HISTÓRIAS PARA PEQUENOS E GRANDES


RUBIA DELORENZO [1]

Para minha neta


Era noite preguiçosa de domingo. De repente na TV, um programa novo, interessante. Falava do futuro virtual do livro: das pesquisas muito sérias, das tecnologias de ponta, do primor dos resultados. Cansada deste maravilhamento imposto para consumir, já prestes a desligar o aparelho, que presente! Um desenho animado veio fechar a programação.


Era noite aqui. Era noite lá, também. Vê-se, então, uma livraria no meio da rua deserta, aparentemente às escuras, silenciosa como todos os outros que dormem. De repente, quando tudo está bem quieto, a vida adormecida, uma luz denuncia pela fresta que, de fato, no interior, começa clandestina uma festa.

Nesta noite, a livraria se acendeu. Tinha o burburinho e a agitação da Vinte e Cinco em véspera de Natal.

As estantes exibiam com muita variedade, edições atraentes feitas com muita arte: capa mole, capa dura, tecidos trabalhados especialmente para encapar, relevos nos desenhos para se sentir texturas ao toque, verniz preto, verniz branco, impressões de cor em kraft.

A balbúrdia no recinto era tamanha e fez pensar em balada badalada de cidade grande ou em footing de quermesse em cidade do interior.

Sabendo de seu amor pelos livros, vou fazer a narrativa deste encontro memorável entre os muitos livros que lemos com aqueles que, juntas, ainda leremos.

Primeiro os livros acordam, se espreguiçam, se sacodem. Tiram alguma poeira do corpo, esticam a pele enrugada. Depois, se escovam, se aprumam. Nada de insetos nojentos, nada de traças. Hum! Que cheiro bom de papel! De longe, o vestígio da cola.

Descem, então, das estantes, as brochuras, os encadernados de capa imponente e os de lombadas mais tímidas que de tão apagadas obrigam ao uso da lente. Estavam bem ofegantes pelo esforço da descida os exemplares mais carnudos, seja pela extensão das histórias ou pelo volume dos contos.

Modificando seus hábitos – de passivos, de imóveis, expostos aos olhos inquietos e a manuseios gulosos – os livros começam febrilmente a transitar.

Explodem a ordem alfabética, distorcem a ordem temática e se instaura desordem frenética. Letras, temas, títulos, nomes escapam do cativeiro costumeiro da língua, da disciplina livreira e principiam a deslinguar. Sem cerimônia nenhuma começam a conversar.

Foi o livro de receitas o que primeiro mostrou-se. Neste livro de doces ilustrado com talento, viam-se rosquinhas coquetes com pintas de chocolate, e cenourinhas de marzipan com topete verde-escuro e o corpo meio escarlate. Dedos de quituteiras percorreram a massa informe e moldaram as figurinhas: melancias, bananinhas, peras e maçãzinhas e por último as joaninhas.

Viam-se os docinhos primorosos, canoinhas enfeitadas, tudo vestido a rigor. Nas fotos da mesa pronta, celofanes, papel de seda, o de alumínio plissado e brilhante, fitas, forminhas de papel rendado, tudo arranjado e disposto para adornar brigadeiros e cookies , beijinhos e cupcakes , com diferentes ganaches .

Muitos livros se chegaram para conhecer o segredo dos açúcares.

Havia muitos livros de arte e incríveis livros de histórias: Alice, Dom Quixote e muitos mais.

As páginas passavam ansiosas, flutuavam como saias rodadas flutuam em dia de vento forte. Através, podíamos entrever a menina, a queda no túnel, a pressa do coelho, a rainha de copas, o castelo de cartas. Também podíamos vê-la aumentando, encolhendo, quase se afogando no seu lago de lágrimas.

“Esse livro é doido, Maria – disse o poeta [2] à sua filha – “o sentido dele está em ti“.

O poeta disse mais. Amava tanto esta história, tirou dela tão profundos ensinamentos, que ofereceu o livro à filha no dia em que fez 15 anos. Disse a ela:

“Escuta essa parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha... mas o contrário também acontece... o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte... O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom humor.” E ainda : “... prepara-te para a visita do monstro e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: ‘Devo estar diminuindo de novo’. Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.”

Viu só, que curioso, como os livros conversam entre si? Como Alice apareceu no livro do poeta? E como a prosa dele está, agora, aqui entre nós?

Isso aconteceu também no livro do Fonchito, onde ventos do conto antigo vieram soprar na nova história. Lembra-se? Fonchito amava em Nereida, em seu belo rosto calmo, os cabelos azuis de tão negros, da cor da madeira do ébano, e a pele branca de neve com suavidade de seda. Foi por esse amor que fez refletir a lua no fundo do balde - lua que tremia um pouquinho com o movimento da água – para poder trazê-la bem perto e dar de presente a alguém que se quer bem aquilo que não se alcança.

Percebeu, que interessante, como as histórias se combinam? Como um livro vai surgindo do tecido amalgamado daquilo que antes lemos com o que agora inventamos?

Nasce uma história do sábio alinhavo das palavras, assim como nasceram das mãos divertidas de Steinberg os desenhos ou das mãos aflitas de Bispo do Rosário, os mantos.

Repete-se a aventura do artista que dá à linha vazia, uma forma, um corpo, um caminho.

Livros de gente grande não se furtaram à festa. Vi As mil e uma noites , Orlando, O retrato de Dorian Gray espiando um pouco tímidos, com medo de atrapalhar. Mas logo ficaram à vontade.

Por entre as folhas do primeiro, avistava-se o pássaro Roque. Carnívoro como os falcões e as águias, alimenta-se de carne humana e dizem ter força bastante para erguer um elefante. Coisas misteriosas são ditas sobre os dois outros livros de história chamados romances. Disseram de Orlando que uma mulher se escondia dentro da alma do homem. Que Orlando era ele. Que Orlando era ela. E sobre Dorian afirmaram que aí se lê sobre o segredo da beleza eterna, da eterna juventude. Como é que o tempo se suspendeu para ele? É a história da própria miséria do homem.

Celebrando essa grande amizade entre os livros, aproximou-se de todos o livro do Picasso exibindo aquelas mulheres que amamos, aquelas mulheres estranhas pintadas de frente e de lado, para melhor serem vistas, inteirinhas, de um só bocado. As que primeiro encontramos nas páginas que passam lânguidas são as que estão se enfeitando. Parece que estão em fila indiana: uma mais velha segurando um pente está atrás da menina que ela penteia. Esta, por sua vez, tem à sua frente uma moça que mostra sua imagem no espelho. Como são um pouco egípcias com seus bizarros perfis, mostram que o cuidado feminino e a tradição de adornar-se vêm de muito, muito longe. E transmite-se.

Por entre as folhas que oscilam fazendo o livro gingar, podemos ver a Mulher lendo . Debruçada sobre o livro que abraça apaixonada, parece que amamenta, parece que acalenta, o certo é que olha comovida.

Vê-se através neste bailado das páginas a Mulher da poltrona vermelha , enrolada sobre si, contorcida. De dor? De prazer? Não sabemos. Será que o artista não viu justamente os dois sentimentos? A mulher doída e a que se deleita? Não podia passar ignorado neste livro de pinturas, o Retrato de Nusch Elouard , aquela senhora vestida com um casaco militar extravagante certamente adquirido na butique conhecida como “Ao casaco elegante”.

Chegou quase no final, com luxo de livro de arte, uma edição da Tarsila. Com a capa solta brilhante envolvendo o tecido claro de linho, fez sucesso ao entrar. Essa presença marcante evocou tantas pinturas bonitas e quantas lembranças de infância não se moveram dentro de nós!

Tia Tarsila deixou o Lago , o Poente , o Manacá e com pernas bem firmes, com passos gigantes ganhou o mundo, como se diz.

Vimos seus brincos longos e dourados, seus cabelos de mulher, muito pretos e esticados, presos num coque redondo na nuca... Vimos a moça tornar-se, vestida de Manteau rouge , de lábios tom de carmim, tão vermelhos quanto o traje... Como estava bela!

No Carnaval de Madureira , trouxe para o Rio de Janeiro a Paris que ela igualmente amava: à maneira de um carro alegórico, ela pintou a torre Eiffel. A mesma torre gigante que você viu com assombro quando de dentro do barco, na travessia do rio, chegamos tão pertinho que quase pudemos tocá-la.

Assim como tia Tarsila, como você, bem pequena me mudei do lugar onde nasci. Deixei para trás as procissões, a roupa de anjo de asas macias, a missa de domingo, o carnaval de bloco. E também a jabuticabeira alta, o fogão à lenha, o milho descabelado para preparar a pamonha. Deixei minha Cuca e minha Negra.

Mas as coisas que se perdem, que deixamos – não precisa ficar assim tão triste – elas voltarão nos sonhos. Como nos quadros da tia Tarsila, na estrada de ferro, na estação, sempre haverá movimento. Os trens que deixaram para trás a infância são incríveis. Porque são trens que levam e trazem de volta.

Tia Tarsila já era grande, mulher feita, quando pintou o Mamoeiro , O Pescador , as Palmeiras e a Estação de Ferro Central do Brasil. Na arte dela, tudo estava,de novo, lá. Por que não estaria na nossa arte? Só não sabemos bem os horários desses trens malucos, seu roteiro, as paradas, seus desvios. Não conhecemos de antemão os obstáculos que obrigam, às vezes, à mudança de rota, os embaraços do caminho. Mas, ainda que estejam atrasados ou até adiantados demais, é certo que trarão em seu corpo, uma saudade, um campo de cogumelos e, outra vez, uma imensa alegria.

Não me lembro mais como termina o filme. Mas podemos terminá-lo ao acaso, na invenção. Sabendo que os nexos, o léxico, as articulações, são Bruegel, são Bosch, Dali, surreal.

Na fantasia de quem conta, como naquela de quem ouve, o que importa é essa navegação sem fim pelas palavras que faz de cada história uma linha movente, que avança, que ondula, buscando infinitos portos para atracar. Assim foi na imaginação de Lobato: lobo + rato, lobo+ gato, bato no lobo, lobo do mato.



Novembro - 2012




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[1] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[2]Paulo Mendes Campos. “Para Maria da Graça”, in Para gostar de ler . Volume 4 – Crônicas. Editora Ática, 1992.




 
 
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