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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    25 Junho 2013  
 
 
CINEMA

TEMPORALIDADE PLURAL EM DEPOIS DE MAIO EVOCA ANOS REVOLUCIONÁRIOS E CONVOCA O PRESENTE


NAYRA GANHITO [1]


Onde você estava em 1971? E agora, aonde você está?

A primeira virtude de Depois de Maio (Après Mai), que estreou oportunamente este mês em São Paulo, é impor estas perguntas àqueles que estamos com mais de 50 e fomos jovens naqueles anos. O título do filme de Olivier Assayas[2] se refere, no imediato da narrativa, a maio de 68, “o mês de todos os possíveis” (Walter Salles), mas não se trata apenas de um bom filme de época. O que o torna tão especial é sua temporalidade peculiar, capaz de evocar a sensação de pertencer a uma época mas também de nos fazer constatar, com uma agudeza desconcertante, que hoje ainda estamos depois de maio. E de indagar-nos como diabos viemos parar aqui.

“...maio de 1968 foi uma espécie de primavera do mundo. Tudo se ousou, tudo se pensou, tudo se fez. E a tentativa de mudar o mundo (como queria Marx) e a vida (como desejava Rimbaud) foi tão bela que, com frequência, nos esquecemos do seu fracasso político. (...) Por isso, talvez, seja tão difícil falar sobre a herança dessa revolução generosa e não cumprida, como faz Olivier Assayas em seu Depois de Maio.” (Luis Zanin, Estadão)

Conforme os letreiros iniciais, estamos nos arredores de Paris em 1971, a três anos dos conflitos que incendiaram a cidade e que se alastrariam pelo ocidente na década de 70. A ideia de uma revolução radical já tinha sofrido seus golpes, mas a atmosfera ainda estava aquecida.

Poucas e curtas tomadas nos inserem paulatinamente no espírito do tempo e destes jovens ainda no colegial, tomados pela preocupação de constituir “a nova resistência”. Numa sala de aula, enquanto o professor cita longamente Pascal (entre céu e inferno existe a vida...) um jovem inscreve com a ponta do compasso o A anarquista em sua carteira escolar. Panfletagem na saída da escola. Em pleno calor de assembléia, debate e conflitos apaixonados sobre as prioridades das próximas intervenções. Urgência na tarefa: ritmo dos mimeógrafos e stencils rodando a mil os panfletos e cartazes.

De repente, duas longas e belas sequências nos projetam para dentro do sabor e do preço do fervor revolucionário da virada dos 60 para os 70: a passeata ferozmente reprimida pela polícia e o revide dos estudantes, a cena noturna na própria escola, que seria totalmente pichada e coberta de cartazes. Cenas de tirar o fôlego, que assistimos ofegantes como os personagens e seus perseguidores em sua corrida, vigor do cineasta que sustenta a câmera. O furor policial nas cacetadas, pontapés e bombas de gás lacrimogêneo e a agressão pelos estudantes ao vigia, na segunda cena, não deixam dúvidas: nenhuma das partes estava brincando.

Pulsação peculiar desse tempo marcado pela crença de que o mundo pudesse mudar radicalmente pela força do nosso desejo e ações. Laboriosa atividade de uma geração, lembrete desconcertante do instante recente no qual compromisso com o mundo e coerência entre pensamento e ação eram os valores maiores. Valores maiores, ideais, por conseguinte, também mandatos, imperativos de época: lá estão as patrulhas ideológicas exercidas por certos ‘companheiros’, permeando a narrativa...

Estamos longe da atmosfera lúdica e lúbrica de Os sonhadores, de Bertolucci.

Olivier Assayas está hoje com 58 anos e tinha 16 em 1971, assim como o protagonista Gilles (Clément Métayer), cujo percurso, feito mais de incertezas que de respostas, se confunde com a memória e experiência pessoal do diretor, mas também com as transformações de seu tempo e aquelas da passagem da adolescência para a vida adulta.“Seria pessimista de minha parte olhar para uma época que foi tão importante, na minha vida inclusive, como o fim - ? - de alguma coisa... por isso quis fazer Depois de Maio. (...) Gilles, até certo ponto, sou eu, mas a verdade é que me projeto em todos os personagens. Só assim conseguiria falar do idealismo e do entusiasmo que estavam no ar." (O. Assayas). O tempo histórico está ali, na ambientação geral do filme, na evocação de certos fatos, nos tipos da época representados no leque de personagens, mas o diretor impõe com firmeza seu ponto de vista – com Gilles e nas leituras e músicas que lhe servem de referência e que circulam pelo filme como uma profusa colagem de citações.

Questão das questões da época: o que é verdadeiramente revolucionário? O filme seria a resposta formulada pelo cineasta 40 anos depois: “É possível, sim, mudar o mundo.(...) Mas antes é preciso encontrar seu lugar nele.” (Daniel Felix). A câmera acompanha solidária os dilemas destes jovens que ainda somos nós, mas é capaz também de certo distanciamento – não julga nem toma partido entre as várias opções e destinos tentados pelos protagonistas. Os chavões ideológicos não nos aborrecem, o distanciamento da câmera, distanciamento no tempo do cineasta que amadureceu desde então, antes nos fazer sorrir com certa ironia. A essência destes anos não estava nas palavras de ordem da luta política, mas na abrangência e ousadia das transgressões, na descoberta de que qualquer aspecto da vida é imediatamente político: amoroso, cultural, sexual, social, estético.

“Foi assim: saímos à rua para fazer uma revolução e acabamos fazendo outras, que não eram previstas, talvez melhores do que a que tínhamos planejado” (Calligaris).

O conflito de Gilles entre suas aspirações artísticas e a militância política num momento em que a primeira era vista como saída individualista e a segunda, coletiva e revolucionária, é um tema que atravessa todo o filme.

“Você fala como artista”, diz com certo desprezo um colega. Na Itália, após a exibição de um documentário sobre as relações de trabalho, alguém pergunta: “Se o tema é revolucionário, a sintaxe também não deveria ser revolucionária? Choque com aqueles que consideravam as inovações estéticas como “elitistas e pequeno-burguesas”, incapazes da tarefa de “informar o proletariado”. Questão super atual que se coloca para as nossas existências e a das nossas mais caras instituições: é possível alguma transformação usando a mesma estética do poder ao qual ela quer se confrontar?

Tudo é político, a amizade e o amor inclusive, que em Gilles se divide entre a inquietação hedonista de Laure (Carole Combes) e a determinação engajada de Christine (Laura Creton). Em busca de respostas, eles e seus amigos transitam pela militância & pela poesia beatnik & pela pintura & pelo rock progressivo & pelo misticismo oriental. A ação se espraia para a Itália, Londres e Nepal. As certezas vão ruindo, nada é estanque, tudo pode acontecer ou mudar.

Como condensar uma gama tão ampla e polimorfa de questões num só filme e ainda provocar a evocação que é ao mesmo tempo de um ontem e do agora? Por exemplo, pelo contraste entre as tomadas cruas das cenas ativistas, a escolha de atores estreantes e uma estética mais orgânica, cheia de sensualidade nas cenas amorosas, nas viagens e nos momentos de criação febril e solitária. Contraste sutil: tratava-se disto e daquilo. A trilha sonora também alterna um fundo de “som ambiente” nas ações militantes e músicas executadas na íntegra, que comentam em fluxo contínuo os movimentos afetivos dos personagens, como a linda balada Decadence, de Kevin Aires ao final. A presença do fogo insiste nas cenas, como arma de ataque ou defesa ao “sistema”, como elemento ritual nas festas e na queima voluntária, oferenda ao efêmero, de pequenas criações do protagonista - cartas, escritos, desenhos. Intensidade como valor... que no entanto pode fugir ao controle.

A evocação de época que se faz desta forma é instantânea e sensorial: cheiro de madeira da carteira escolar que recebia generosamente a inscrição de nossos desejos e segredos, textura da tinta sobre o papel, dos cartazes pintados a mão e reproduzidos semi-artesanalmente. Cabelos e tecidos fartos. Signos de um “passado bastante conhecido e, curiosamente, amado por muitos que nem haviam nascido” (Allyson Oliveira). Na ausência de computadores e da parafernália tecnológica dos dias de hoje, a vida acontecia em tempo real.

A potência da obra deve-se então à forma contemporânea mas absolutamente singular – uma elaboração de sua própria experiência - encontrada pelo diretor de filmar a vibração própria daqueles anos, numa narrativa nem linear nem fragmentada, mas guiada pela emoção dos encontros e desencontros dos personagens. Filme “coral e polifônico” (Luis Zanin), sem superlativos, feito de pequenos grandes momentos com economia, franqueza e sutileza nos detalhes. As múltiplas faces das transformações em curso, em cujos desdobramentos estamos mergulhados até hoje, são condensadas em breves e iluminadas passagens e diálogos: a liberação sexual e seu impacto sobre a relação entre os gêneros, o conflito entre gerações, a experimentação estética, com as drogas, o flerte com o oriente. Seu olhar atual sobre aqueles anos não é nostálgico, romântico ou pedagógico, sabe que muitos de seus ideais acabaram frustrados, antes busca captar, naqueles, “o nascimento de um mundo que, em muitos aspectos, já é o nosso.” (Luis Zanin)

No entanto, apesar do sabor de fim de festa à medida que o filme avança, o que predomina não é propriamente o sentimento de fracasso ou desencanto, mas uma estranha mescla de desconcerto, auto-ironia e intenção de prosseguir. É que o desenrolar dos acontecimentos vai mostrando que aquilo que era coletivo e grupal iria se desmembrar e dar lugar a escolhas individuais que distanciam e separam, sugerindo que, daí em diante, o caminho seria mais solitário. “...o que está em jogo é a transmissão do bastão (...) do protagonismo político num momento de ressaca geracional. Assayas se posiciona como pertencente aos que recebem o bastão e mostra o que diferentes pessoas fizeram com essa atribuição.” (Heitor Augusto). Se isto é tratado com certa naturalidade pelo diretor, é porque, como o final do filme sugere com Gilles, acabaria encontrando sua própria voz no cinema, essa arte coletiva, e no tratamento de certas temáticas num mundo que se revelaria mais árido e mais sombrio.

.............. ...em 1971 eu tinha 12 anos, e no meu colégio estadual da zona leste – nos arredores de SP - não se ouvia um pio sobre o estado de exceção que grassava no país. Ainda existiam matérias como Educação moral e cívica e Economia doméstica para as meninas. Em casa, murmúrios entrecortados que se escutavam aqui e ali não chegavam a costurar pra nós, a terceira geração, a situação clandestina e perigosa de um avô ativista, que aparecia e desaparecia...nem as feições macabras que a “festa” tomou por aqui.

Dez anos depois, eu estaria na Europa, vivendo tardiamente o que foi meu depois de maio, no movimento que foi um dos destinos da militância nos anos 80, a Antipsiquiatria, cujo slogan ainda era “A liberdade é terapêutica”. Ali e em torno ainda estavam a atmosfera e os tipos que povoam o filme de Olivier Assayas: os alternativos, os independentes, os militantes de carteirinha, os drogados, os hippies extemporâneos, e claro, os loucos. Olhávamos com certa admiração colegas que, dizia-se, atuaram em movimentos como as Brigate Rosse ou o Baader-Meinhof. A esquerda européia acreditava que a revolução partiria do “terceiro mundo”. Sexo, drogas e rock and roll ainda tinham sabor revolucionário.

Voltei ao Brasil a tempo de festejar nas ruas a campanha pelas Diretas-já.

Ainda assistiríamos a queda do muro de Berlim e, atônitos, a aparição da figura do yuppie e da estética Wall Street nos anos 90; logo, da internet e celulares e sua penetração irrefreável, que mudariam para sempre o cenário e a temporalidade cotidianas. Do surgimento do pragmatismo e do economês no lugar do discurso e das paixões políticas. Do culto ao corpo e da assepsia geral no lugar da poesia. O triunfo da psiquiatria biológica.

Hoje, depois de maio, de certa forma ainda jovens, prosseguimos, desta vez diante de um poder mais incorpóreo, porém mais implacável e eficaz. O inimigo nunca mais seria visível.

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[2] Considerado um dos grandes contadores de história do cinema contemporâneo, entre seus filmes estão Clean (2004), Horas de Verão (2008) e o telefilme Carlos (2011). Après Mai ganhou o prêmio de roteiro no Festival de Veneza 2012 e é cotado para o prêmio de melhor filme francês do ano.




 
 
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