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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    25 Junho 2013  
 
 
ARTE

DA VINCIS DO POVO - ENGENHO E CRIAÇÃO


CRISTINA BARCZINSKI [1]


O título da exposição já é instigador por si, aproximando o grande artista renascentista, dono de um talento extraordinário tanto para a criação artística quanto para a investigação científica, ao criador anônimo, ao homem comum. O artista que propõe este caminho é o chinês Cai Guo-Qiang, que se apropriou da pólvora, criada acidentalmente na China, durante a dinastia Han, por alquimistas em busca do elixir da longa vida. Qiang usa este material explosivo para construir poesia, desenhos, contar histórias. Dos familiares fogos de artifício, por ele transformados em pura cor, explora o subproduto – a fumaça. Com ela, montou espetáculos grandiosos, como um enorme arco-íris negro flutuando sobre Edimburgo, assim como uma exposição feita no Museu Metropolitan de Nova Iorque em 2006, quando, em horas marcadas – e apenas em dias bonitos -, o visitante era guiado para um terraço de onde poderia se surpreender com a aparição de uma pequena e delicada nuvem negra.


No recém inaugurado Museu Nacional dos Correios[2], no vale do Anhangabaú, um porta-aviões de ferro ocupa boa parte da primeira sala, e no seu interior, transformado em uma sala de projeções, podemos assistir a um belo documentário russo sobre as invenções do século XX. Este escultura-navio-baleia foi encomendada por Qiang a um dos inventores amadores chineses por ele selecionados para construir sonhos em forma de navios, aviões, discos voadores, robôs. Estes homens são conhecidos em suas comunidades, passam anos fazendo experimentos, na busca incessante de realizar seus projetos, por vezes à custa de sua vida. Trechos de documentários dos encontros de Qiang com estes homens atestam o grande respeito do artista, que os visita em suas pequenas oficinas, escuta suas explicações e testa seus inventos. No mesmo espaço, pendem do teto centenas de artefatos coloridos produzidos, a convite do artista, por alunos de escolas públicas de Brasília, onde foi inaugurada a exposição.

No trajeto entre o Museu e o Centro Cultural Banco do Brasil-SP, vários objetos feitos de metal parecem sobrevoar os pedestres, fazendo com que estes parem e olhem para cima, gesto raro numa cidade onde a atenção constante aprisiona nosso olhar na horizontal e nos condena à pressa. Parados, podemos ver, acima da entrada do CCBB, um boneco pendurado de braços abertos, numa referência à foto emblemática na qual Yves Klein se lança no vazio, Saut dans le vide[3]. Dentro, a referência à arte milenar de pintura chinesa, no uso de um rolo vertical gigante que ocupa toda a altura do pé direito do saguão de entrada do museu, com imagens feitas com pólvora representando diversos pássaros e flores brasileiros. Usando a mesma técnica, Qiang convidou milhares de fotógrafos amadores a enviarem pelo instagram imagens do Brasil, que resultaram na escolha de algumas para serem reproduzidas pelo artista.

A conversa permanente proposta por Qiang entre a arte, invenção e risco não cessa de nos provocar. A filmagem da execução de suas obras mostra verdadeiras performances coletivas, nas quais as explosões controladas (ou talvez nem tanto) produzem belas imagens no papel ou no ar. Também emocionam suas montagens poéticas, como a criação de uma floresta de pipas de tecido, transformadas, com a ajuda de ventiladores, em pequenas telas de projeção de documentários sobre artistas chineses. O pequeno grupo de pessoas admitidas a cada vez na sala se desloca por entre as árvores em silêncio ou faz comentários em voz baixa, para não quebrar o encantamento. No último andar da exposição, já por cima da clarabóia do prédio, mais uma instalação delicada que conjuga um berçário de plantas tropicais e pequenas pipas brancas, sobre as quais o artista escreveu os nomes de cada um dos inventores.

Nunca aprendi a pousar, é o título da exposição das máquinas de voar. Voemos, pois.
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[1] Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise e membro da equipe editorial deste Boletim.
[2]A montagem da exposição em Brasília e em São Paulo pode ser acompanhada no link vimeo.com/66770764.
[3] Salto no vazio é uma fotomontagem de 1960 concebida pelo artista francês, e ilustrou um panfleto de Klein contra as viagens espaciais americanas, classificadas por ele como “arrogantes e estúpidas”. Porém a imagem do salto ultrapassou este contexto, pois segue nos convidando a refletir sobre verdade e mentira, a relação com o vazio, o risco da experiência. No caso desta exposição de Qiang, nascido num país onde o progresso se faz a custos altos, tanto ambientais quanto humanos, a homenagem justamente a esta obra também ganha um sentido político.




 
 
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