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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    26 Setembro 2013  
 
 
NOTÍCIAS DO SEDES

ANISTIA 1979 -2013: O QUE FALTA?


3ª Conversa Pública da Clínica de Testemunho do Instituto Sedes Sapientiae Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva Núcleo de Preservação da Memória Política



MARIA AUXILIADORA DE ALMEIDA CUNHA ARANTES[2]



O Brasil que acorda agora deve acompanhar os que nunca dormiram. Entre estes estão os resistentes que lutam por um país onde a verdade seja inteira, a liberdade plena e a justiça um valor supremo. Estas foram consignas da luta que militantes da anistia levaram às ruas no final dos anos de 1970. Exigiam a liberdade para os que estavam nas prisões por perseguição política e liberdade para o retorno dos exilados e banidos. Liberdade para todos os que foram expulsos de seus locais de trabalhos, de seus sindicatos e entidades de classe e impedidos de exercer sua profissão, de dar aulas e frequentar a universidade. Exigiam a liberdade de ir e vir pelas ruas e pelas praças onde faixas pudessem ser abertas e cartazes levantados. Liberdade para expor ideias, escrever, cantar, encenar peças e produzir filmes.

A liberdade da palavra, de expressão e de manifestação constavam dos princípios do Comitê Brasileiro pela Anistia de São Paulo, ao lado da liberdade de associação e de reunião, da autonomia sindical e de atuação política e partidária.

Sim, a campanha pela anistia ampla, geral e irrestrita não foi um movimento sem bandeiras e muito menos sem programa. Aos poucos todos nós que nos reunimos para fundar os CBAs percebemos que estávamos em desvantagem em muitos sentidos e principalmente estávamos sob a mira de armas e espreitados permanentemente.

Inúmeros dirigentes políticos estavam presos, outros banidos e muitos exilados. Um contingente enorme de militantes resistentes permanecia clandestino dentro do Brasil.

Muitos haviam sido assassinados e outros estavam desaparecidos.
Percebíamos cada vez mais que a ditadura que vigia no país há 15 anos viera para ficar. Os próprios ditadores quando se apossaram da cadeira da presidência da República em 1º de abril de 1964 se auto legitimaram no poder. Puseram sobre suas próprias cabeças a coroa e nas suas mãos estavam as armas.

Os 17 Atos Institucionais e os quase 200 Atos Complementares baixados caíam sobre nós como barreiras quase intransponíveis: banimento do país, pena de morte, extinção do habeas corpus, e a obstrução do direito de defesa. Cassaram mandatos parlamentares impondo um arremedo de funcionamento legislativo que tentava disfarçar o Estado de Exceção. A Justiça passou a ser uma prerrogativa das forças armadas. Não conhecíamos os ditadores que passaram a mandar no país.

Mas conhecíamos muito bem suas vítimas. Eram nossos irmãos, nossos companheiros e amigos. Eram filhos e eram pais. Sabíamos o que tinha acontecido com eles. Mas não sabíamos tudo. E foi por isso que o movimento pela anistia se organizou: para dar um basta, para saber tudo, para exigir a verdade e sustentar a liberdade.
Inicialmente como uma iniciativa de mães de estudantes universitários e depois como o Movimento Feminino pela Anistia[2]- criado em São Paulo em 1975 -, a proposta de anistia naquele momento falava em esquecimento e perdão.

Os partidos políticos estavam proibidos e as organizações revolucionárias, destroçadas. A vigilância sobre os brasileiros era permanente. Os serviços de infiltração nas manifestações, a censura e a escuta telefônica cerceavam nossos passos. Qualquer suspeita levava à prisão.

Os movimentos que quisessem se organizar, apesar das condições desfavoráveis, tinham que ousar, e inventar. Assim fizemos.

Em São Paulo fundamos o Comitê Brasileiro pela Anistia - o CBA/SP - em 12 de maio de 1978. O CBA do Rio de Janeiro, o primeiro, fora fundado no mês de fevereiro deste mesmo ano. CBA/SP estava disposto a levar à frente um programa político mínimo e de ação que ia além do esquecimento e do perdão e exigia a libertação imediata de todos os presos políticos; volta de todos os exilados, banidos e cassados; reintegração política, social e profissional dos funcionários públicos ou privados demitidos por motivos políticos, exigia o fim radical e absoluto da tortura; a revogação da Lei de Segurança Nacional; desmantelamento do aparato repressivo; esclarecimento das mortes e dos desaparecimentos. Sempre e todo o tempo, exigíamos o julgamento e a punição dos responsáveis.



O CBA e o Sedes Sapientiae


As primeiríssimas reuniões do CBA/SP foram feitas no Sedes. Celeste Fon e eu éramos familiares de presos políticos. Conhecemo-nos dentro do Presídio do Barro Branco visitando o Aton Fon Filho, irmão de Celeste e o Aldo Arantes, então meu marido. Chegamos no Sedes em maio de 1978, acompanhadas do nosso advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, que marcara este encontro. Descendo a ladeira da rua Ministro Godoy avistamos a Madre Cristina, que nos aguardava no corredor externo, ainda vestida com seu hábito de freira. A primeira sala em que nos reunimos foi a sala 4, do primeiro andar. Havia outras pessoas que integravam estas primeiras reuniões. Madre Cristina não participava, dizia que precisava ficar do lado de fora, para que ninguém pudesse nos interromper. Depois fomos percebendo que ela era nossa protetora e guardiã; temia a presença da polícia e ficava em estado de alerta. Aqui alinhávamos os primeiros passos do CBA/SP. Além da presença da Madre Cristina, na lanchonete do seu João podíamos tomar um café e comer um pão com manteiga na chapa... Dizíamos: só isso seu João, e ele, só, num tá bom? Mas o principal era que o seu João tinha uma aliança férrea com a Madre, ele fazia parte do esquema de proteção das nossas reuniões. Só muito depois ficamos sabendo destas coisas. O tal do café era um pretexto e o balcão, que ele limpava pra lá e pra cá com um pano, tirando a poeira inexistente, na verdade servia para ele ficar ali vendo quem entrava e quem saia. E de fato, deste posto, veio nos avisar, em uma destas ocasiões, que havia um policial disfarçado em uma reunião que fazíamos neste auditório. O policial foi posto pra fora, e a Madre ajudou.

Uma das primeiras tarefas do CBA/SP e de sua Executiva foi a discussão e elaboração da Carta de Princípios e Programa Mínimo de Ação, terminada em julho de 1978, cuja redação final coube ao representante dos sindicatos dos jornalistas, o Perseu Abramo. O CBA/SP foi estruturado a partir de representantes de entidades e não exclusivamente através de filiações individuais, e reuniu em seu elenco executivo pessoas já conhecidas publicamente, e outras na qualidade de familiares dos militantes políticos atingidos [3]. Houve intensa articulação com os CBAs no interior do estado de São Paulo, que multiplicavam e expandiam a luta pela anistia, através de atividades próprias ou em parceria com o CBA/SP. Espalharam-se por São José dos Campos, Santos, Campinas, Piracicaba, Limeira, Sorocaba, Ribeirão Preto, Bauru, no ABC, Assis, Osasco, Itapira, Jacareí, Mogi das Cruzes e Guaratinguetá.

Aos CBAs foram se juntando muitos que não eram militantes e nem familiares, eram cidadãos cansados da ditadura civil militar e que se indignavam. Eram músicos, poetas, cartunistas, escritores e artistas. Emprestaram seu texto, seu traço e sua voz, sua profissional capacidade de comunicar para que fôssemos ao mesmo tempo aguerridos, mas sem perder a ternura.

Em 1978 organizamos o Primeiro Congresso pela Anistia nos dias 2, 3, e 4 de novembro. Foi um marco na implementação dos comitês de anistia, que chegaram a ser 60, organizados em todo o Brasil. A abertura do 1º Congresso, realizada na PUC/SP, teve suas reuniões de trabalho no Instituto Sedes Sapientiae, com o aval da Madre Cristina. O encerramento foi no Teatro Ruth Escobar, uma das integrantes da Executiva do CBA/SP. Não conhecíamos pessoalmente quem participaria das reuniões. Decidimos afixar, nas portas das salas do primeiro andar, pequenas placas nomeando as diferentes categorias dos atingidos: familiares de presos, de exilados, cassados e aposentados, familiares de mortos e de desaparecidos. Cada um dirigia-se à sala onde encontraria afetados pela mesma situação. E foi assim que conhecemos, pouco a pouco, parte dos que moravam em São Paulo, seus nomes, as histórias de seus familiares e tomamos consciência da profundidade da repressão, da violência da tortura e dos casos de assassinato e de desaparecimento[4].

As decisões deste Congresso foram reunidas em uma pequena publicação que contou com a produção de Leda Corazza, integrante do CBA/SP. Na capa amarela, foi impresso um trabalho de Manoel Cyrillo de Oliveira, preso político no Barro Branco. Foram os anais deste 1º Congresso de Anistia.

Seis meses depois, em 15 de junho de 1979, participamos do Primeiro Encontro das Entidades de Anistia organizado pelo CBA/RJ. Neste encontro a Comissão Nacional de Mortos e Desaparecidos divulgou uma publicação contendo a relação dos mortos, dos desaparecidos no Brasil e no exterior, com suas biografias e as condições conhecidas de seu assassinato. Publicou-se também extensa lista com o nome de todos os torturadores e a descrição dos instrumentos de tortura, bem como a denúncia da máquina de tortura usada em todo o país, sob o patrocínio do Estado brasileiro, com o apoio de empresários e de civis, aliados aos ditadores.



Agosto de 1979


Antes da votação da Lei, a mobilização foi intensa nas ruas de São Paulo. No dia 8 de agosto de 1979, o comício na Praça da Sé foi um marco decisivo na campanha da anistia. Até então a Praça da Sé, assim como outros espaços públicos, estava proibida para manifestações de qualquer natureza e a realização do primeiro Ato Público para a retomada da praça, fortemente cercada pela polícia militar, a pé ou a cavalo, foi uma vitória política na reconquista das ruas. No coração da cidade de São Paulo e junto ao seu Marco Zero, os movimentos ocuparam a praça, que voltou a ser do povo. A Convocatória para o Ato, escrita pelo CBA/SP, dizia: “Hoje se sabe no Brasil que o regime militar, que se implantou no país em 1964, prendeu, torturou, matou, baniu e exilou, cassou e demitiu inúmeros brasileiros de seus postos de trabalho (...) Fez calar a livre manifestação do pensamento, fechou universidades, invadiu sindicatos e deixou o povo sem liberdade no campo e na cidade. Hoje os brasileiros que querem para esta nação a liberdade e a justiça vêm publicamente exigi-las. (...) Este mesmo regime apresentou no dia 27 de junho um Projeto de Anistia Parcial que deixa de fora muitos brasileiros atingidos durante estes 15 anos. Submete funcionários civis e militares a novos condicionamentos e humilhações para a reintegração em seus cargos. Deixa de fora trabalhadores e estudantes atingidos pela CLT e pelos Atos de Exceção. Deixa na prisão e no exílio muitos brasileiros. Nem sequer uma palavra sobre os que matou e fez desaparecer durantes estes anos. Este projeto deverá ser votado pelo Congresso Nacional ainda neste mês de agosto. (...) Não podemos em nome da justiça e da própria grandeza da Anistia aceitá-lo e por isso mesmo o repudiamos”.

Para o dia 14 de agosto foi organizada a caravana de militantes, familiares e representantes de entidades de apoio à anistia a Brasília para acompanhar o desenvolvimento do debate no Congresso Nacional e estabelecer um contato com parlamentares. Mantivemos a mobilização nas ruas e no dia 21 foi realizado um segundo Ato Público na Praça da Sé.

Sabíamos que o Congresso Nacional legislava dentro dos limites impostos pelos ditadores. Não tínhamos ilusões, pensávamos porém que poderia vir a prevalecer o que os movimentos exigiam. Acalentávamos uma esperança pois tivéramos uma convivência fraterna com o Senador Teotônio Villela, presidente da Comissão Parlamentar Mista - reunindo Câmara e Senado. Ele era o principal responsável pelas reuniões no parlamento e sistematização dos documentos que chegavam de todo o país: cartas das famílias, listas de torturadores, descrição das torturas, relato de sequestros, casos de assassinato, e relação dos que estavam desaparecidos. O senador nos surpreendeu. Era um latifundiário e usineiro de Alagoas, um homem de convicções conservadoras e de direita, eleito pelo partido do governo, a ARENA. Tornou-se sensível à luta pela anistia. Veio até os movimentos, visitou os presos e se reuniu com a militância. Tornou-se nosso interlocutor. Na primeira visita que fez aos presos políticos em São Paulo, confinados no Presídio do Barro Branco, Celeste e eu fomos designadas para acompanhá-lo. Juntamente com o senador Severo Gomes do MDB fomos buscá-lo no hotel Jaraguá e o levamos ao presídio. Não entramos. Depois de longa permanência, na sua saída já ao final da tarde, o ouvimos dizer aos jornalistas: Aqui não encontrei nenhum lobo das estepes e nenhum terrível homem das cavernas. Encontrei brasileiros idealistas e homens que lutaram por seus ideais.

A denúncia da proposta da ditadura, de ampliação do projeto, que já realizávamos conforme exigência dos movimentos de anistia, foi plenamente encampada pelo Senador a partir desta aproximação cordial conosco, com as famílias e com os presos também do Rio de Janeiro, de Pernambuco e do Ceará.

No dia 28 de agosto de 1979, finalmente conhecemos o que o Congresso brasileiro produziu: uma anistia parcial e de dupla mão. Deixou de fora muitos brasileiros, não abriu para eles as portas da prisão, e pior: anistiou também os torturadores. Não podia ser diferente: legislaram sob a tutela dos generais e sujeitaram-se a eles. Negociaram o inegociável, entenderam que a tortura não é crime quando o Estado não a proíbe. Fortaleceram a contramão da ética, desrespeitaram seus próprios concidadãos que consideravam inimigos internos, seguindo à risca os ensinamentos da Doutrina de Segurança Nacional. Não se envergonharam da lei que aprovaram em um acordo de liderança, levando ao plenário uma votação decidida previamente.

O legislativo traiu os movimentos de anistia. A derrota foi um duro golpe. Ao longo de todos estes anos, muitos ainda continuam determinados na busca dos desaparecidos, exigindo que a justiça leve os responsáveis a julgamento. A tortura, o assassinato, o sequestro e ocultação de cadáveres são crimes e todo crime deve ser punido.

Trinta e um ano depois da Lei de Anistia, fomos tristemente surpreendidos com a decisão do Supremo Tribunal Federal, publicada em 14 de abril de 2010, que manteve a compreensão de que a Lei 6.683 de 28/8/1979 anistiou, sim, os torturadores, apesar da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF nº 153 -, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que formulou o seguinte pedido: “A proponente (Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil) pede que o Supremo Tribunal Federal dê à Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, uma interpretação conforme à Constituição, para declarar que a anistia, objeto desse diploma legal, não se estende aos crimes de homicídio, estupro e tortura, praticados por agentes públicos contra opositores ao regime político então vigente.(...) Em outras palavras, o que se pede na presente demanda não é a revisão da lei de anistia, como se diz por aí, mas sim a sua correta interpretação, de acordo com os padrões de técnica jurídica consagrados e a exigência fundamental de respeito à dignidade humana.(...) O que está em causa, na presente demanda, não é uma controvérsia jurídica comum. O Supremo Tribunal Federal, como órgão de cúpula do Estado Brasileiro, assume agora a responsabilidade histórica de defender a honra nacional e a dignidade do nosso povo, pelo reconhecimento de que os crimes hediondos, praticados pelos agentes do regime autocrático do passado, são inapagáveis, qualquer que seja o tempo decorrido desde o seu cometimento”.

O STF desconsiderou a brilhante argumentação da OAB escrita pelo jurista Fábio Comparato e manteve a interpretação de que os crimes conexos aos crimes políticos foram anistiados[5]. Esta interpretação mantém-se e não se discutiu mais - pelo menos até agora.

Mas os movimentos sociais podem discutir. A sociedade pode questionar. Assim fizemos na época da campanha de anistia de 1979. Enfrentamos as leis e sua interpretação. Não perguntamos o que era possível e o que era permitido. Não fizemos um raciocínio técnico. Fizemos uma campanha política. Exigimos o que era justo. Conseguimos um pouco. Passado tanto tempo, fortalecidos pela experiência da democracia, temperados pela liberdade de expressão e autorizados a buscar a verdade, podemos tentar mais uma vez.

O que podemos fazer?

Se os movimentos que saíram às ruas estão conseguindo vitórias é porque a indignação prevaleceu. Os que hoje portam cartazes talvez nem soubessem que houve um tempo em que não se podia andar livremente pela avenida Paulista, pelo viaduto do Chá, pela orla de Copacabana e nem ao redor da praça da Liberdade. E se sabiam, não temeram e ousaram. Se a praça é do povo, se a rua pode ser ocupada, porque não exigimos também publicamente que os dirigentes do Brasil digam para todos nós e, principalmente, aos familiares onde estão os corpos dos nossos desaparecidos?

Desde que se compreendeu que a tortura é um crime que fere os humanos, estejam onde estiverem, sabemos que a tortura é um crime contra a humanidade. Em nosso curto tempo presencial em trânsito pela história podemos construir novas reciprocidades e melhorar a condição das relações entre os humanos. Podemos exigir que a tortura seja penalizada onde tiver ocorrido e quando estiver ocorrendo. É um crime que não prescreve. A compreensão da legislação internacional referente aos direitos humanos é de que a tortura praticada pelo agente do Estado, no exercício de sua função, é crime. Foi o que ficou estabelecido no art.1º da Convenção da ONU de 1984, Contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. É crime de quem praticou diretamente o ato de tortura, de quem a autorizou e testemunhou e de quem soube que ocorreu. Logo, estamos em dívida conosco mesmos. A Constituição Federal de 1988 no art.5º, inciso III diz o seguinte: ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano e degradante; e o inciso XLIII, acrescenta: a prática da tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.

Devemos encorajar nossos dirigentes e representantes que estão no Executivo, no Legislativo, e os que estão no Judiciário, a fazer o que tem que ser feito. Não podemos descansar antes disso. Os familiares dos mortos e desaparecidos políticos não descansaram, ainda não dormiram, permanecem em busca do possível e recorrem ao impossível. Juntamente com o Centro pela Justiça e o Direito Internacional- CEJIL - e a Human Rights Watch/Américas, encaminharam em 1995 à Corte Interamericana de Direitos Humanos uma petição que se refere à responsabilidade do Estado brasileiro pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre membros do Partido Comunista do Brasil e camponeses da região do Araguaia. Em 2010 foi publicada a decisão da Corte que impôs ao Estado brasileiro um conjunto de decisões expressas em um longo texto de quase 120 páginas. Ao acatar a petição, a Corte declara por unanimidade, entre outras, que: “As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil. O Estado é responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal; (...) O Estado é responsável pela violação dos direitos de liberdade de pensamento e de expressão consagrados no artigo 13 da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos”.

Escolhi este fragmento da Sentença para que saibamos que estamos no caminho que deve ser percorrido. As decisões não estão referidas exclusivamente aos que caíram no Araguaia, aplicam-se a todas as violações que não puderam ser, até hoje, investigadas. Temos agora um suporte internacional para que demandas da campanha da anistia que não foram aceitas possam ser atendidas.

Continuamos a querer que todos os responsáveis pelos crimes cometidos sejam julgados. Que sejam penalizados. Já sabemos seus nomes. Estão nas incontáveis listas que foram organizadas pelos próprios presos políticos, ainda dentro das prisões, há mais de 40 anos. Estão em textos e documentos organizados pelos movimentos de anistia, pelos familiares, pelos advogados. Estão em livros e dossiês publicados pelo próprio governo brasileiro, coordenados pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

Queremos e continuamos a esperar que o Brasil honre a história de lutas de todos os que tombaram para fazer com que neste país a Memória, Verdade e Justiça sejam sustentadas sob a bandeira da Liberdade de asas sempre abertas sobre nós.


28 de agosto de 2013



 

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1 - Psicóloga, psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, fundadora do Comitê Brasileiro pela Anistia de São Paulo - CBA/SP(1978), membro da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia.
2 - O Movimento Feminino pela Anistia (MFA), pela redemocratização do país, tinha como presidenta Terezinha Zerbini, cujo marido foi preso e perseguido após o golpe de 64.
3 - Durante os dois primeiros anos o CBA/SP teve como dirigentes: Luiz Eduardo Greenhalgh, advogado de presos políticos; Perseu Abramo, representando o Sindicato dos jornalistas; Vanya Sant’Anna, da Associação dos Sociólogos no Estado de São Paulo; Judith Klotzel, da Associação de Docentes da USP; Ruth Escobar, empresária e diretora de teatro; Rubens Boffino, professor da Associação de Professores do Estado de São Paulo e Maria Auxiliadora Arantes, representante da Comissão de Familiares de Presos Políticos. Também se juntaram à Executiva: Helio Bacha, médico sanitarista e Maria Augusta Capistrano, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Posteriormente Fernanda Coelho, vinda do Rio de Janeiro e Suzana Lisboa, de Porto Alegre, juntaram-se à Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos, que permaneceu reunindo-se mesmo após o encerramento das atividades da campanha da Anistia. Junto à Executiva foram estruturados núcleos de apoio à campanha, entre estes o Núcleo de Profissionais de Saúde, que prestou especial atenção aos presos políticos, sobretudo em relação às sequelas da tortura. Estes profissionais estabeleceram protocolos de atendimentos e foram os primeiros a sistematizar as sequelas de torturas. As representantes deste núcleo eram Zillah Abramo e Martha Salomão, e também estavam os médicos Sergio Paschoal, Cláudio Meneghini, Jorge Mattar, Milton Martins. O Núcleo de Advogados foi essencial na defesa dos atingidos e mesmo os que não participavam presencialmente de reuniões do CBA/SP foram seus consultores em diversas ocasiões. Entre eles: Airton Soares, José Carlos Dias, Idibal Pivetta, Belisário dos Santos Jr, Marco Antonio Barbosa, Mario Simas, Iberê Bandeira de Mello, Marcia Ramos de Souza.
4 - A abertura oficial do Congresso foi feita no teatro da PUC/SP, o TUCA, durante a reitoria da professora Nadir Gouvêa Kfouri que um ano antes, em setembro de 1977, defendera com altivez o campus da PUC durante sua invasão pela Polícia Militar comandada pelo coronel Erasmo Dias. O encerramento foi feito no teatro Ruth Escobar.
5 - A interpretação de quais são crimes conexos aos crimes políticos anistiados distorceu o entendimento a ponto de interpretar a tortura como um crime conexo ao crime político. Uniu em um mesmo laço o crime político e um crime imprescritível, a tortura. O esclarecimento, bem como o julgamento e penalização dos responsáveis, é uma proposta que tem se mantido insolúvel.

 




 
 
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