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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    26 Setembro 2013  
 
 
O MUNDO, HOJE

DA IMPORTÂNCIA DA TRANSDISCIPLINARIEDADE NO TRATAMENTO DO AUTISMO


ENTREVISTA COM MARIE-CHRISTINE LAZNIK[1]



CRISTINA BARCZINSKI e MARIA CAROLINA ACCIOLY[2]



O Boletim Online entrevistou neste mês de agosto a psicanalista Marie-Christine Laznik, que veio ao Brasil para dar conferências, uma supervisão aberta ao público e lançar seu último livro, A hora e a vez do bebê.

Boletim Online – O PREAUT existe desde 1998 e é uma associação reconhecida no trabalho de intervenção e pesquisa sobre o(s) autismo(s) e na detecção precoce de sinais de autismo em bebês. A ideia atribuída à psicanálise de que a criança autista foi um bebê desinvestido pela mãe, ideia esta que fez com que algumas pessoas entendessem que a psicanálise sustentava uma teoria culpabilizante em relação à figura materna, vem mudando nos últimos anos. O que se manteve e o que mudou nestes anos na sua visão sobre a gênese e o tratamento do autismo?

Esta afirmação é inteiramente equivocada e já faz tempo... Sou psicanalista e afirmo que o autismo é uma doença neurodesenvolvimental, e isto não é falar de etiologia, mas dizer que qualquer que seja a etiologia (e há muitas) que leva este bebê a não entrar na relação, a não curtir o desejo do outro, o fato de não fazer isso prejudica de forma extrema a constituição do que os neurocientistas chamam de cérebro social.

A PREAUT é uma instituição que nasceu com um grupo de psiquiatras e psicanalistas em 1998 para fazer pesquisa, em termos populacionais, sobre sinais precoces de autismo em bebês, a partir de minhas hipóteses - que hoje estão comprovadas do ponto de vista dito “científico” -, de que haveria possibilidade de avaliar não o risco de autismo, mas o início de autismo. A importância destas pesquisas é que, se a intervenção terapêutica for precoce nos casos de início de autismo, nos primeiros meses de vida, é até possível reverter o quadro, o que deixa de ser verdade mais tarde. Em junho de 2013, foram publicados na literatura científica americana os primeiros resultados com comprovação de um sinal de autismo em bebês de 9 meses com síndrome de West, um tipo de epilepsia que aparece em bebês, dos quais 50% vão se tornar autistas - e descobrir quais é importante. A grade de sinais precoces proposta pelo PREAUT mostrou fidelidade e especificidade com esta pesquisa, que faz um follow up dos bebês até os 4 anos e meio, passando por todos os exames tradicionais americanos. O diagnóstico destas crianças examinadas aos nove meses é indubitável. Se juntarmos o espectro autístico clássico ao que agora está no DSM V no espectro como retardo grave e global de desenvolvimento e linguagem, a especificidade é de 100%; se tomarmos apenas o espectro mais clássico, são mais de 80%. A partir dos resultados desta pesquisa, a equipe de neuropediatras validou, sem intenção prévia de fazê-lo, a grade de sinais proposta pela PREAUT. Entretanto, validar o sinal aos 9 meses já é um pouco tarde, gostaria que o sinal fosse validado aos 4 meses, mas como a síndrome de West se manifesta entre 4 e 9 meses, isto impossibilitava só escolherem os bebês mais novos, pois a síndrome precisava estar já manifesta para entrarem na pesquisa.

A pesquisa PREAUT, na qual trabalharam 600 médicos da rede pública que examinaram 15.000 bebês, deve ser publicada em 2014. Cerca de 6.000 bebês não voltaram às unidades básicas de atendimento, então foram escolhidos estatisticamente por volta de 1.000, com os quais a equipe de pesquisadores retomou o contato. O resultado pode não ser tão bom do ponto de vista da pesquisa, pois os bebês que apresentavam sinais aos 4 meses foram colocados em tratamento precoce pelos médicos para tentar resgatá-los e isto alterou a amostra. Estes sinais são importantes para a intervenção precoce, se comparados ao CHAT[3], aplicado aos 18 meses, quando o quadro já está instalado, e o cérebro, extremamente prejudicado.


Boletim Online - Como você tem pensado esta relação entre genética, neuroplasticidade e primeiras inscrições psíquicas?

Existe um filme girando na internet de um neurocientista que nada tem a ver com a psicanálise, e que trabalhava em Yale até 2 anos atrás - Ami Klin[4], um brasileiro judeu-americano. Este cientista está apaixonado por bebês, diagnóstico precoce e tratamento nos primeiros meses de vida. Ele trabalha com eye-track, um aparelho que colocamos na cabecinha do bebê, para ver a direção exata do olhar dele, e isto faz toda a diferença. Para o cérebro social, tem de olhar no olho do outro. Afinal o problema não é do olho, mas do desejo do outro que se expressa pelo olho, esta janelinha por onde passa o desejo, a fantasia do outro. Os bebês que se tornam autistas não olham, e isto não acontece porque a mãe tem ou não fantasias inadequadas, mas sim porque eles não olham, qualquer que seja a fantasia materna. Eles olham ao lado, e isso prejudica o cérebro social, porque este bebê precisa de interação precoce com o outro, é assim que nosso cérebro se constitui. A grade desenvolvida por mim e pela equipe do PREAUT faz o mesmo de forma mais simples, já que bastam dois sinais[5], isso torna possível aos médicos do serviço público utilizarem este recurso no tempo da consulta. E por isso quero que Klin passe a grade nos bebês da pesquisa dele para validação.

As afirmações feitas por Salomão Schwarstzman, no quadro apresentado por Dráuzio Varella nos blocos do Fantástico, não procedem. Ele vê um pedaço de filme familiar e diz: o bebê olhava, ele era normal com seis meses! A questão não é apenas que o bebê olhe ou não, mas que ele se faça olhar, isto faz toda diferença. Nos filmes da pesquisa do neurocientista Ami Klin, basta ter prosódia de manhês[6], que o bebê olha. Sobre a prosódia de manhês, nossa ferramenta de entrada em contato com estes bebês, há sete publicações “científicas”, que foram feitas em laboratórios de física acústica, usando também recursos da neurologia, psiquiatria, neurociência, e algumas destas pesquisas tiveram um fator de impacto enorme. Claro que usamos a linguística, em seguida os engenheiros também participam para, através da estatística, saber quais daqueles dados são significativos ou não. Existem na equipe analistas que são doutores em neurociências – e isto é importante para conseguirmos ser ouvidos. Eu só sou aquela que dá ideias.

Uma equipe italiana de neuropsiquiatria selecionou 1.500 trechos de filmes domésticos, 500 com bebês autistas, 500 com bebês normais e 500 com bebês com retardo mental. Isto foi estudado, com duplo cego, randomizado, para ver onde havia interação e se ali aparecia prosódia de manhês. Fizeram uma tese em física, na qual eles chegaram a um algoritmo para achar a prosódia de manhês sozinho. Desta forma, conseguiram provar que um bebê futuro autista escuta preferencialmente quando há prosódia de manhês. Existe um enorme trabalho envolvido nestas pesquisas no mundo da ciência: a passagem de uma hipótese, feita a partir de milhares de filmes familiares, depois a gravação de sessões de psicanálise com estes bebês, observando que, na hora em que se ouve aquele determinado tipo de voz, o bebê olha. Portanto é preciso toda esta maquinaria de guerra e o fato de que laboratórios de pesquisa se interessem pelo tema, para poder examinar os dados, verificar uma hipótese e construir uma verdade “científica”.


Boletim Online - A ausência dos picos prosódicos seria uma defesa da mãe diante do fechamento do bebê?

Nossa equipe descobriu e provou que os pais de autistas fazem picos prosódicos - é um dos poucos momentos em que as crianças olham para eles - e estimulam muito mais os bebês do que aqueles das crianças deficitárias e normais. Eles tentam desesperadamente entrar em contato com seus bebês. A criança normal, os pais tentam fazer dormir, não é preciso excitar, pois ela já está o tempo todo atrás deles. Um belo tipo de prosódia de manhês ocorre quando papai e mamãe estão juntos, pois eles se autoestimulam em manhês um ao outro, para se apoiarem. Esta ideia de que as mães não estimulariam e assim os bebês ficariam autistas - se pode enterrar. É muito difícil lidar com estes bebês hipersensíveis enquanto pai de autista, é pior do que o artista de circo numa corda bamba, pois se não se estimula, ele fica no buraco mas, se a estimulação passa de um certo ponto, o bebê se fecha. Difícil ser criativo se o bebê nunca te olha e isto dificulta o trabalho do analista também - e é bom isto acontecer na presença dos pais, porque assim eles se dão conta de que não é um problema mãe-criança. A maior barbaridade que se pode dizer para uma mãe com um bebê com sinais de autismo é de que se trata de um problema mãe-bebê - não é verdade, é um problema adulto-bebê, qualquer adulto recebe o mesmo tratamento. O bebê de mãe deprimida, o bebê de mãe psicótica, delirante, este também não olha, mas se agarra ao analista ou a qualquer outro adulto, como tábua de salvação. Na hora em que eles acham que uma prosódia os chamou, não precisamos refazer uma conquista na próxima sessão. Os outros, começando um autismo, são como serpentes de mar - eles aparecem e somem. Isto permite um diagnóstico diferencial entre depressão e começo de autismo.


Boletim Online - Não se tem nenhuma comprovação de qual seria o gene causador do autismo...

Talvez nunca saibamos exatamente como isto se passa. A partir de uma pesquisa nacional, comprovou-se o seguinte: quando tomamos gêmeos bivitelinos, se um tem autismo, 10 por cento também vão ter; nos univitelinos, um tem autismo, de 50 a 80 % têm - óbvio que há uma questão genética, mas nem sempre, nem em tudo e não se sabe como. Trabalho com bebês muito pequenos, vou apresentar na palestra a análise de um bebê com um mês e uma semana... A plasticidade dos neurônios, das células dos bebês nos primeiros meses é muito grande, e nós temos uma plasticidade genética. Sabemos que a epigenética[7] é a maneira como o gene vai se expressar ou não. Durante a gravidez isto já atua, a epigenética está presente nos primeiros meses e ao longo da vida inteira, mas é mais importante quanto menor seja o bebê. O cérebro social, principalmente no segundo semestre, está se constituindo, se organizando. Quando não há estimulações da relação com o outro, isto é grave, afinal o sujeito – esse psiquismo - vai se constituir na relação, no desejo do outro, que também constitui o cérebro social. Imagine a gravidade do que é esta interrelação primeira, daí a importância de se trabalhar no precocíssimo.


Boletim Online - Falar em precoce nos leva a um tema bem polêmico, que é a prevenção e diagnóstico precoce, que está associado ao uso que se pode fazer disto nas políticas públicas, com a introdução da medicalização.

As associações de pais de autistas pediram que o nome do PREAUT (Prevenção ao autismo) fosse mudado para Programa de pesquisa e estudos sobre o autismo. O bebê de um mês que não olha já está com o início de uma doença. Nós tratamos da doença enquanto ela ainda pode ser curada - não é prevenção, mas percepção dos inícios da doença que já está lá. O diagnóstico se faz hoje em dia muito mais cedo, antes era com três anos, hoje com dois anos eu dou diagnóstico, sou analista e acho que analista tem que dar diagnóstico em parceria com um médico – desculpem, sei que vocês têm uma briga lá em Brasília, o ato médico[8]. Na França eu trabalho direto em parceria com uma pedopsiquiatra mais jovem, ela fica comigo na sala, aprendendo. Chego mais rápido ao diagnóstico porque sou mais velha, para afirmar que uma criança está no espectro. Os pais perguntam: você tem certeza? Eu digo que sim, mas que podemos fazer ainda muita coisa, vamos começar agora a trabalhar e fazer todos os exames orgânicos - genético, neuropediátrico e metabólico - e a psicanalista pede os exames, marca as consultas. Tudo isto sai de graça na França, é importante salientar. É preciso encontrar planos de saúde que cubram estes exames aqui no Brasil, a medicina neste país é um escândalo, as pessoas ficam completamente sem dinheiro. A equipe médica que trabalha conosco gosta muito do nosso trabalho, inclusive porque mandamos os bebês mais novinhos para os exames. Levamos, infelizmente, de três a quatro meses até que eles sejam convocados, mas menos de seis meses para saber se há uma patologia associada. Em outros equipamentos, se leva mais tempo, os pais podem ficar dois anos sem saber para onde ir. Conosco, em seis meses se sabe se há uma patologia associada. É preciso que se saiba, porque quando estudamos não autistas de dois ou três anos, vemos que há remissão. O que aparece na A.D.I.[9], exame americano mais conceituado para avaliação de diagnóstico de autismo, que usamos para conseguir publicação, é que do grupo de crianças diagnosticadas com autismo há três anos, 25% delas não são mais, ou seja, há crianças que saem do espectro, é importante saber disto.

Usamos apenas trabalhos comprovados e publicados, quero deixar isto bem claro. Houve uma pesquisa sobre um grupo de adolescentes autistas (12 a 14 anos) de um hospital-dia e foram feitos exames genéticos. Muitos destes adolescentes tinham acesso à linguagem, mas com baixo nível de funcionamento, senão estariam em escolas comuns. Em 40% deste grupo, foram encontradas patologias associadas ao quadro de autismo, através do mapeamento genético e exame clínico feito pelo geneticista. É impossível enveredarmos por todo um trabalho assumindo a responsabilidade ética de passar ao largo de uma patologia associada, pois algumas poucas patologias são metabólicas e podem ser tratadas com medicação. Um psicanalista não pode deixar isto de lado e tratar anos uma criança sem cuidar de uma patologia associada, que tem um tratamento e que poderia melhorar o estado geral desta criança. Assim se medica a patologia, e não o autismo, elas podem ser tratadas e devem ser levadas em conta. Agindo assim, cuidando de todos os aspectos envolvidos, pode-se proteger o tratamento e evitar que ele seja abandonado pelas famílias. Ninguém vai procurar alguém como o Salomão Schwartzman, que diz “saiam da análise e vão fazer comportamental”, porque todos os exames foram feitos e o diagnóstico foi dado. Não existe uma disputa entre as diferentes abordagens, pois elas trabalham em parceria. Existe na França uma instituição - Maison departamental des personnes handicapées[10] - , através da qual a família recebe recursos do governo, tendo a cada ano a situação da criança reavaliada através de um exame médico, para confirmar se o diagnóstico ainda é pertinente. Acho eticamente justo submeter-se a esta reavaliação, pois a ajuda do governo permite à mãe ter mais tempo para acompanhar a criança aos diversos tratamentos. O recurso é importante e eu mesma batalho para que as famílias sejam ajudadas. Como exemplo, o transporte de táxi dos bebês para serem atendidos por mim na instituição são gratuitos, o seguro paga porque houve uma declaração de espectro. Acho um absurdo os psicanalistas que não dão diagnóstico dizendo que isto não é psicanalítico, isto é horrível, pois os pais precisam disto. Uma vez feito o diagnóstico, a equipe pode formar uma frente com tudo o que pode ser feito para tratar a criança. Há diferenças nas estratégias abordadas, pois algumas crianças em certas famílias podem fazer análise até três vezes por semana, ao passo que para algumas crianças isto ainda é cedo e para algumas famílias a psicanálise não faz sentido, pois estão num mundo onde o psiquismo, o inconsciente ainda não cabe. A psicanálise não é uma panacéia universal, aplicável à humanidade. Ela se aplica a determinados casos e em algumas famílias. Senão é como pôr um remédio em cima de um gelo – não funciona. Tenho uma colega, Graciela Crespin, que vai dar umas conferências aqui em abril em evento organizado por Cristina Kupfer, e criou uma nova ala do PREAUT – a UDAP[11] - com financiamento da Cruz Vermelha. Trata-se de uma instituição médico-social, na qual a proposta de tratamento é cognitivo-comportamental, mas coordenado pelo grupo multidisciplinar ao qual eu pertenço, cujos membros, em sua maioria, são médicos com formação psicanalítica. Assim a criança faz análise e, ao mesmo tempo, para aquelas que têm distúrbios graves do comportamento, a UDAP vai em casa trabalhar com a criança em termos comportamentais, para que a família consiga dar conta de conviver com o filho. Este também vai à escola, ao mesmo tempo em que trabalha na sua análise, e este trabalho gera uma grande diferença de perspectiva sobre o tratamento destes pacientes.


Boletim Online - Psicanalistas brasileiros junto a profissionais da Saúde organizaram o Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública após acontecimentos graves - como o quase encerramento de um centro de atendimento reconhecido e um edital público que definia apenas uma abordagem de tratamento para o autismo -, que tentavam desqualificar o trabalho da psicanálise com autismo e priorizavam a terapia cognitivo-comportamental. Como você vê essa situação no Brasil e no mundo?

Acho que a responsabilidade por esta desqualificação também é dos psicanalistas, que têm muita dificuldade em trabalhar de forma transdisciplinar. Acredito ser possível transplantar no Brasil a forma de atendimento que fazemos - há psicanalistas aqui, como a Claudia Mascarenhas Fernandes em Salvador, que está muito ligada à Graciela Crespin, e conhece bem a UDAP, que poderiam trazer este trabalho para o Brasil. Para exemplificar como ocorre o nosso trabalho, existe um menino que está em análise três vezes por semana com os pais - eu não acredito na eficácia da análise individual de criança autista, que é um modelo kleiniano. Este menino está falando lindamente, vai frequentar o ensino elementar, além de ter uma UDAP em casa para trabalhar com os distúrbios de comportamento - e os pais são extremamente gratos ao atendimento. Por outro lado, esta criança só começou o atendimento aos três anos, assim a não constituição do cérebro social na época certa trouxe sequelas que afetam a aprendizagem. Por conta disto, pedi à analista dele, que é também psiquiatra, o exame neurovisual do garoto, pois neuropsicólogos também fazem parte da equipe. Para que esta criança possa aprender a ler, sem que a leitura seja fragmentada e não seja apreendida, ela fez um exame neurovisual com um neuropsicólogo e vai ser atendida por uma fono especializada no trabalho de resgate dos distúrbios neurovisuais - e isto em nada impede a sua psicanálise. Esta é uma perspectiva transdisciplinar. Na verdade, é melhor que psicanalistas estejam coordenando o processo de atendimento como um todo.

Acho que o grande problema da ABA[12] é proibir os pais de buscarem o tratamento psicanalítico, mas também já vi psicanalistas proibindo as famílias de irem para a ABA e de fazerem exames genéticos nos filhos. Pior do que a bobagem, é o espelhamento da bobagem num campo e no outro. A transdisciplinariedade no tratamento da patologia autista é indispensável. Muitas crianças são agitadas e precisam trabalhar com integração sensorial[13], técnica americana conhecida pelas terapeutas ocupacionais. Neste caso a criança pode fazer sua análise e, uma vez por semana, faz uma sessão de integração sensorial – e isto é ótimo. Além disso, em relação aos problemas escolares, estas crianças têm déficit real de competências cognitivas e a professora precisa saber onde pode puxar, onde não pode, pois vai humilhar a criança. Hoje em dia não trabalho em equipes onde não haja um profissional que saiba aplicar o PEPR (Perfil Psicoeducacional Revisto), que é um exame cognitivo, para poder orientar os educadores. Aqueles que trabalham em termos comportamentais também precisam reconhecer que estas crianças têm uma dimensão subjetiva, elas têm sofrimento psíquico e devem ser ouvidas em análise. Uma criança normal que vai à análise e que vai num bom colégio tem estimulação cognitiva oito horas por dia. Uma criança autista tem direito a ter esta estimulação também. Não concordo com os psicanalistas que são avessos a qualquer outro tipo de intervenção, a ideia de que, para uma criança de três anos com autismo, a sessão de psicanálise vai resolver tudo - isto é megalomania, não tem outra palavra.


Boletim Online - Esta discussão está acontecendo no Brasil, onde a psicanálise acabou ficando muito solitária, sem fazer parcerias, sem divulgar pesquisas.

Muitos psicanalistas acham que não precisam continuar aprendendo, mas um pequeno grupo continua. Eu frequento vários congressos internacionais, e são poucos os psicanalistas presentes, devíamos ser muitos mais. Mas há pesquisa acontecendo, inclusive em outras áreas, e nós, psicanalistas, precisamos participar deste movimento.

Faço parte da diretoria de uma sociedade chamada CIPPA - Coordenação internacional de psicanalistas e psicoterapeutas se ocupando de autismo -, cuja maioria dos membros é composta de analistas kleinianos. A presidente é a Geneviève Haag, uma kleiniana francesa importante, e que diz as mesmas coisas que eu, que sou uma lacaniana. Tudo o que eu disse hoje é uma posição geral desta diretoria, desta coordenação internacional, não é só minha, não. Gostaria muito que brasileiros fizessem parte desta coordenação internacional, com psicanalistas franceses, italianos e ingleses, pois estes defendem uma posição ética, política.


Boletim Online - Qual está sendo o impacto do Le Mur e deste movimento na França, que é um movimento similar ao que aconteceu no Brasil?

O que me preocupa agora é o 3ª Plano Autismo, um plano de política pública que simplesmente esqueceu a palavra psicoterapia[14]. Está havendo um movimento muito grande contra este plano, que não é transdisciplinar. É preciso que se diga que a ABA, que é integralmente comportamentalista, perdeu muitos processos, em particular no Canadá, onde Michelle Dawson, autista e também pesquisadora do assunto, questionou judicialmente os fundamentos científicos das intervenções comportamentais. Há uma diferença em relação aos cognitivistas, que diferentemente da ABA, trabalham em parceria com profissionais de outras abordagens.

Quanto à questão da medicalização, poucos psiquiatras infantis na França, no caso de uma criança agitada, começam dando Ritalina, eles fazem todo um trabalho com a família e com a criança, para ver se é possível. Em raríssimos casos se chega à Ritalina, alguns com resultados interessantes, a meu ver. O problema da Ritalina é que uma vez que se começa, não se para mais, é para a vida, embora funcione, de fato, em alguns casos. A dificuldade na retirada faz com que os americanos estejam voltando para trás.

Voltando ao conflito com os médicos, pertenço a uma sociedade psicanalítica - Associação Lacaniana Internacional - cuja maioria dos membros são médicos. Lá não existe esta divisão que se vê no Brasil, pois sempre tenho um médico a meu lado, trabalhando. Fico atarantada com a militância narcísica dos psicólogos contra os médicos, para mim esta é uma atitude antimédica que não ajuda a dialogar. Continuo achando que a hora de prescrever um remédio, dar um diagnóstico, eu continuo achando que isto é um ato médico e me considero atrasada nesta discussão de vocês, mas vejo uma reivindicação narcísica antimédica da parte dos psicólogos - e isto não ajuda a dialogar. Não consigo sentir as coisas da mesma forma, talvez por viver uma realidade diferente[15]. No Centre Alfred Binet, onde trabalho há 40 anos, todas as equipes são dirigidas por médicos, e todos são psicanalistas de divã. Quando recebem crianças com este tipo de problema, buscam as histórias familiares, a história da criança, a dinâmica psíquica – e são médicos. O diploma de medicina não obriga a ser estúpido. A formação do médico no Brasil é que tem de ser discutida, não o fato de alguém ser médico. Mário Eduardo Pereira, quando estava na França, trouxe alguns residentes de psiquiatria da Unicamp para estagiarem um semestre no Centre Alfred Binet, e eles ficaram surpresos com o tipo de trabalho ali desenvolvido, onde não existe diferença na escuta de um médico e na escuta de um psicanalista. No Brasil, ao contrário, os psicólogos assustam tanto os médicos, que estes acabam fugindo de medo, acabam sendo inimigos de classe, uma coisa de maluco...


Boletim Online - Uma coisa que é importante distinguir, e este é um ponto abordado pelo Alfredo Jerusalinsky, é o diagnóstico diferencial em relação às psicoses não decididas na infância, parece que ainda existe muita confusão a respeito.

Autismo e psicose não se parecem, infelizmente. Concordo com Jerusalinsky quando ele diz que o DSM-V faz um saco de gatos, juntando autismo específico e inespecífico, sendo que o autismo específico é autismo mesmo, e no não específico cabe tudo, inclusive a psicose e o tipo de tratamento é totalmente diferente. Nos EUA há uma confusão lastimável, em parte para assegurar que as famílias consigam o reembolso do custo do tratamento. Mas que existe autismo e que ele é totalmente diferente de uma psicose - isto é uma realidade. A psicose infantil está incluída no autismo não específico no DSM-V, o tratamento é inadequado porque o médico muitas vezes não diagnostica direito, assim como quando o psicanalista recebe um autista e pensa que basta ter um consultório, que ele dá conta sozinho - não é que conosco está tudo bonitinho e com a medicina está um horror. Está complicado para o lado da psicanálise também, e temos que encarar nossas próprias dificuldades para podermos dialogar com as dificuldades dos outros. Tenho uma grande dificuldade em entender esta guerra antimedicina. Claro que a formação do médico, do psiquiatra, no Brasil é muito deficiente; por exemplo, segundo os residentes da Unicamp, no Brasil a criança já sairia com a receita de Ritalina na primeira consulta, enquanto que na França, passamos seis meses trabalhando com a família, antes de sequer pensar em medicação.


Boletim Online – Você já teve oportunidade, no Brasil, de ter contato com estudantes de Medicina?

Tenho o maior interesse neste contato. Quando Marcos Mercadante era vivo, tive contato com estudantes de medicina, fui ao Departamento de Neuropsiquiatria trabalhar com a equipe dele e com os grupos de estudantes no HC. Nossos colegas médicos são interlocutores de primeira, são os mais importantes; a formação dos médicos tem problemas, mas também a de psicólogos. O meu primeiro interlocutor é o médico pediatra que atende o bebê, como é que eu vou ser antimédica?


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1 - Psicanalista, membro da Associação Lacaniana Internacional, atende pais-bebê no Centro Alfred Binet. É co-fundadora do PREAUT, centro de pesquisa sobre o autismo na França. É autora de diversos artigos científicos e dos livros: Rumo à Palavra, ed. Escuta, O Que a Clínica do Autismo Pode Ensinar aos Psicanalistas, Ágalma Editora, A voz da sereia, Ágalma editora, Complexo de Jocasta, Ed. Companhia de Freud e A hora e a vez do bebê , Ed. Instituto Langage.
2 - Da equipe editorial do Boletim Online.
3 - CHAT (Checklist for autism in toddlers) é um instrumento de avaliação que possibilita detectar traços de autismo em crianças de 18 meses, levando em conta o desenvolvimento social e da comunicação.
4 - Ami Klin é psicólogo clínico e neurocientista, trabalhou durante 20 anos no Programa de Autismo do Centro de Estudo da Criança na Universidade de Yale e atualmente dirige o Centro Marcus de Autismo em Atlanta. O vídeo mencionado pode ser encontrado no link http://www.ted.com/talks/lang/pt-br/ami_klin_a_new_way_to_diagnose_autism.html.
5 - A saber: o não olhar do bebê na relação com o adulto cuidador e a não instalação do terceiro tempo do circuito pulsional - não se fazer objeto de desejo do outro, não se fazer olhar.
6 - Os picos prosódicos, conhecidos como manhês, referem-se a um ritmo e entonação da voz materna que faria este bebê com sinais de autismo se conectar com o outro.
7 - A teoria da epigenética afirma que o ambiente também pode alterar a transmissão do material e da herança genética. Eva Jablonka, uma das pioneiras neste estudo, afirma que existem quatro dimensões de herança: a genética, a epigenética, a comportamental e a da linguagem; no caso da espécie humana, não podemos separar o que é genético do que é social – está tudo interligado.
8 - Para conhecer uma avaliação recente do andamento da questão no Brasil, o leitor deve consultar a matéria nesta edição do Boletim: Onze anos de luta: ato médico – lei (pls) 268/2002 3 7702/2006, de Ana Maria Sigal.
9 - Autism Diagnostic Interview – ADI - é uma entrevista planejada para ser utilizada junto aos pais, com o objetivo de fornecer um diagnóstico diferencial dos transtornos globais do desenvolvimento. O foco de atenção dela é baseado em três áreas principais do desenvolvimento: a) as qualidades da interação social recíproca; b) comunicação e linguagem; c) comportamentos repetitivos, restritivos e estereotipados.
10 - A Maison départementale des personnes handicapées (conhecida pela sigla: MDPH) é um grupo de interesse público presente nos departamentos franceses, que trabalha a favor da igualdade de direitos e de oportunidades, da participação e cidadania das pessoas deficitárias. O serviço é formado por equipes multidisciplinares e oferece planos personalizados, de acordo com as necessidades de cada paciente. (Fonte: http://www3.fe.usp.br/secoes/inst/novo/laboratorios/lepsi/biblioteca/estante/hist_autismo.pdf), referente à Jornada Psicanálise, Autismo e Saúde Pública, realizada em São Paulo, em março de 2013.
11 - A UDAP, unidade de acompanhamento PREAUT da Cruz Vermelha francesa, atende a crianças que estão no espectro autista e crianças com outros transtornos de desenvolvimento, fazendo intervenções em casa e na escola, utilizando técnicas cognitivo-comportamentais.
12 - Applied Behaviour Analysis - Análise Comportamental Aplicada.
13- A teoria da Integração Sensorial, desenvolvida pela terapeuta ocupacional americana Anne Jean Ayres, baseia-se na hipótese de que o autista apresenta um déficit específico, localizado no processamento das sensações. Essa disfunção se caracteriza ou por um problema na modulação sensorial, isto é, na intensidade e na natureza da resposta dada aos estímulos sensoriais percebidos, ou por falhas na discriminação destes, com uma interpretação equivocada das características temporais e espaciais dos estímulos sensoriais. Na Terapia de Integração Sensorial são usadas brincadeiras, jogos e atividades lúdicas para organizar a estimulação sensorial. O ambiente terapêutico deve conter equipamentos e recursos que promovam sensações e informações sensoriais variadas e desafiadoras.
14 - O 3° Plano Autismo 2008-2011, proposto pelo governo francês, é marcado por uma forte inspiração biológica, com a preferência por intervenções de caráter educativo e cognitivo, ao mesmo tempo em que se consideram outras práticas de tratamento como obsoletas. Segundo o psicanalista Claude Bernard (2010), da Universidade de Lyon, esse documento nada mais é do que o reflexo da psiquiatria atual, sustentada por indústrias farmacêuticas e regida pela lógica econômica dos planos de assistência de saúde, dos quais se esperam resultados rápidos e eficazes. A psicanalista Geneviève Haag foi convidada a integrar a equipe responsável pela elaboração deste documento. Contudo, constatou-se posteriormenteque suas sugestões relativas ao tratamento do autismo, fundamentadas na prática psicanalítica e psicomotora, foram desconsideradas na elaboração final do documento. http://www3.fe.usp.br/secoes/inst/novo/laboratorios/lepsi/biblioteca/estante/hist_autismo.pdf)
15 - Remetemos o leitor ao mesmo artigo de Ana Sigal, mencionado na nota nº 8.




 
 
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