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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    27 Novembro 2013  
 
 
NOTÍCIAS DO CAMPO PSICANALÍTICO

CLÍNICA PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA: PERSPECTIVAS E DESAFIOS


ADRIANA BARBOSA PEREIRA [1]
MARIA MANUELA MORENO [2]



É com grande prazer que oferecemos ao Departamento de Psicanálise uma pitada dos trabalhos que transcorreram durante o evento internacional Clínica psicanalítica contemporânea: perspectivas e desafios, ocorrido no dia 11 de outubro deste ano. Este evento dá continuidade e consolida a parceria do Instituto de Psicologia da USP, estabelecida por seus professores Nelson Ernesto Coelho Jr. e Luis Cláudio Figueiredo e pela pós-doutoranda Bianca Savietto (com parceria da FAPESP e sob orientação do último professor) e a Université de Lyon 2 (França), representada por René Roussillon. Essa reunião científica teve como objetivo fomentar discussões em psicanálise que sustentem a complexidade da herança de Freud e reinventem suas práticas e teorizações.

Na manhã de sexta, o evento foi aberto por uma entrevista realizada por nós com o Prof. René Roussillon, professor de psicologia clínica e psicopatologia na Universidade de Lyon 2, membro titular da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP), para ouvi-lo a respeito de suas teorizações sobre os processos de simbolização psíquica que mesclam tradição e inovação e têm contribuído enormemente para trabalharmos nossas próprias questões de pesquisa [3]. Roussillon tem voltado suas investigações à clínica dos sofrimentos narcísico-identitários e aos estudos dos processos de subjetivação. Entre seus temas de pesquisa está a simbolização primária e suas falhas relacionadas ao trauma psíquico. Ele é autor de numerosos artigos e livros. Seu livro, Paradoxos e situações limite da psicanálise, Ed. Unisinos, foi traduzido para o português em 2006. Ele foi publicado na França em 1991 e ganhou o prêmio Maurice Bouvet.

Nesta entrevista, Roussillon sustentou que o processo de simbolização tem início em presença do objeto externo. Em sua concepção, existe uma circularidade teórica paradoxal no que se refere à simbolização: para simbolizar é necessário fazer o luto da coisa, para fazer o luto da coisa é necessário representá-la e simbolizá-la. Em um primeiro momento, o sujeito alucina o objeto que encontra. Baseado no último Freud, 1938, da simultaneidade entre alucinação e percepção, Roussillon considera que o encontro sensível com o objeto materializado produz uma primeira apresentação psíquica (Darstellung). Os objetos externos têm uma função constituinte, uma função simbolizante, é sua materialidade que permite a transferência psíquica. O autor pensa que não se trata de representar ou não representar, mas de poder constituir uma representação que reconhece que representa. A psique, na esteira do pensamento de Green, deve, a seu ver, se representar também naquilo que ela não representa. Trata-se da problemática da reflexividade psíquica, que constitui uma revolução paradigmática em psicanálise. Outra temática importante, discutida durante a entrevista, refere-se à importância da atenção e teorização sobre o jogo ou a brincadeira em psicanálise. Roussillon propõe uma pesquisa qualitativa ampliada a respeito dos jogos potenciais e brincadeiras constitutivas e de seu desdobramento ao longo da vida. Em sua opinião a psicopatologia psicanalítica pode ser relacionada aos jogos potenciais que não puderam ser jogados e perderam seu poder de simbolização. A publicação completa da entrevista, planejada para o próximo ano, trará uma versão mais completa e aprofundada desse diálogo com René Roussillon.

Na parte da tarde, Bianca Savietto, apresentou um instigante caso clínico de um(a) jovem transexual, como forma de discutir a problemática dos sofrimentos não neuróticos. Tais sofrimentos se configuram, atualmente, como um dos principais desafios ao pensamento e à atividade psicanalítica. Luís Claudio Figueiredo e Nelson Ernesto Coelho Junior, co-autores do texto apresentado por Bianca, destacaram em sua falas os processos de contra-transferência mobilizados pelo caso. Então, René Roussillon, Marion Minerbo (doutora, analista didata e docente da SBP-SP) e Octavio Souza (doutor, pesquisador IFF/FIOCRUZ) teceram seus comentários sobre o caso, a partir de diferentes pontos de vista. A primeira parte da tarde de sexta foi dedicada a esse complexo material clínico do(a) jovem transexual, refletindo sobre as implicações teóricas e técnicas marcadas pela pluralidade, a partir da escuta clínica e dos exercícios metapsicológicos que cada analista/comentador apresentou. A proposta de concentrar a atenção de vários psicanalistas no mesmo material clínico se mostrou um interessante modelo de trabalho em psicanálise, experimentado de modo semelhante na visita de Roussillon ao IPUSP em 2012, que se deu pela mesma parceria.

Por fim, René Roussillon nos apresentou um pouco do seu pensamento acerca das mudanças técnicas suscitadas pela clínica dos sofrimentos narcísico-identitários, que se encontra em seu último livro intitulado Manual das mediações terapêuticas, lançado neste ano na França. Segundo o psicanalista, o problema central da psicopatologia consiste na integração psíquica. Esta última pressupõe um movimento de domínio e discriminação. A matéria psíquica primária é hipercomplexa, multiperceptiva, multipulsional, é em princípio um amálgama enigmático entre dentro/fora, eu/não-eu. Ela não é imediatamente alcançável. Green diria: o tempo em que algo ocorre não é o mesmo em que ele é significado. Roussillon frisa que o processo psíquico passa necessariamente pela mediação, do meio e do tempo. É por meio da transferência que a matéria psíquica ganha forma. Ela precisa ser transferida para um meio (analista) que possa acolhê-la. Novamente, Roussillon aponta para o mecanismo inaugural da simultaneidade entre alucinação e percepção, onde dentro e fora se recobrem e se estabelece uma ligação. Devemos poder pensar os pensamentos, para nos apropriarmos subjetivamente deles, eles precisam ser projetados no mundo - desta forma, os processos ganham materialidade. Essa materialização do pensamento é necessária na origem da simbolização e deve ser diferenciada de uma possível redução simbólica a uma suposta exclusividade da experiência concreta. O objeto primário é o primeiro meio. Ele apresenta uma função de transformação, que deverá ser transferida para outros objetos do mundo. Estes devem, para poder acolher a matéria viva transferida, apresentar também uma função meio maleável, para que o pensamento se dê por representantes psíquicos e possa constituir a reflexividade psíquica.

Esta notícia, obviamente, oferece apenas o gostinho das discussões que se desenrolaram durante o evento. De qualquer forma, para os que se interessarem, vale anunciar que o evento deste ano dá sequência ao ocorrido no ano passado, a partir do qual foi produzida uma coletânea intitulada Elasticidade e limite na clínica contemporânea. O livro, publicado pela Editora Escuta, foi lançado na tarde de sexta, no IPUSP, e oficialmente na manhã do dia 12, na Livraria da Vila – Lorena, precedido, por uma palestra de Roussillon homônima à publicação. Os interessados pela problemática discutida poderão recorrer a esta e outras publicações dos autores “dentro do contexto de reinvenção de uma psicanálise contrária à doutrinação e afeita ao paradoxal.” (nota dos editores).

Vale ainda dizer que os psicanalistas brasileiros merecem mais traduções dos livros e artigos do nosso convidado internacional do evento, o psicanalista francês René Roussillon.


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[1] Psicanalista, especialista pelo Lugar de Vida, mestre e doutoranda pelo IPUSP. Analista visitante do Grupo de Arte e Psicanálise do EBEP/SP.
[2] Psicanalista, ex-aluna do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, mestre e doutoranda pelo IPUSP.
[3] Maria Manuela Moreno: As figuras intersubjetivas e intrapsíquicas do traumatismo precoce na simbolização primária (doutoranda IPUSP sob orientação do Prof. Nelson Ernesto Coelho Jr, bolsista da FAPESP); Adriana Barbosa Pereira: Experiência psicanalítica e experiência estética: formas apresentativas entre força e sentido (título provisório, doutoranda do IPUSP sob orientação prof. Nelson Ernesto Coelho Júnior e bolsista da CAPES).



 
 
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