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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    27 Novembro 2013  
 
 
NOTÍCIAS DO CAMPO PSICANALÍTICO

ESPERAR É URGENTE


ELOISA TAVARES DE LACERDA [1]



Prevenção na Primeira Infância – cuidados e riscos, foi esse o título do II Encontro Internacional e o IX Encontro Nacional sobre o Bebê da ABEBÊ [2]. O evento aconteceu em Brasília, do dia 31 de outubro ao dia 03 de novembro de 2013, e marcou o retorno à cidade onde a ABEBÊ foi fundada, em 2002. Em sua segunda edição internacional, marcou, ainda, a continuação da participação oficial de colegas de outros países, sedimentando, assim, um campo de trocas sistematizadas, que acarretou em uma maior pluralidade e diversificação quanto aos estudos teórico-clínicos e teórico-educacionais nacionais e internacionais sobre o bebê e toda a primeira infância.

Nesta nona edição, o Encontro levou-nos a olhar para tudo aquilo que preocupa não somente os profissionais dos vários campos clínicos, mas também os da educação infantil, debruçados sobre o tema geral da PREVENÇÃO. A escolha deste assunto – a prevenção com seus cuidados e seus possíveis riscos – se deu não apenas por ser um tema muito atual, como ainda pelo fato de que o mesmo nos provoca simultaneamente na direção dos cuidados e contornos ao bebê e do acolhimento aos seus pais e, noutra direção, na perspectiva da predição – com o risco adicional de se fechar um futuro para a pequena criança, quando a intenção do profissional pode ser a de detectar o risco para poder prevenir o futuro, quando cheio de angústia ele se depara com a impossibilidade de ter, necessariamente, a possibilidade de transformar numa linha direta e reta uma “aposta num futuro melhor” em uma “garantia de um futuro melhor”!

Desdobrado em cinco eixos principais – A Ética do Cuidado; Cuidados por meio da Educação; Cuidados por meio da Atenção à Saúde; A Prevenção e Situações de Vulnerabilidade e Cuidados no Cenário do Potencial Desenvolvimento Atípico – tivemos a intenção de convidar todos aqueles que compartilham da prática e do interesse na primeira infância a refletir sobre o ato de prevenir junto àqueles que se encontram em processo de advir, para que fôssemos, todos juntos, problematizando e criando espaços ricos de sustentação e de trocas para que os vários campos dos cuidados e dos estudos sobre os bebês e seus pais se desenvolvam cada vez mais na rede pública e nos espaços privados.

Na escrita para este Boletim, resolvo me alongar no assunto central do Encontro a partir do impacto diante do Simpósio de Abertura, ou seja, do tema que foi tratado de maneira tão enfática e profunda por profissionais brasileiros e estrangeiros [3] ao longo de duas horas, já que a Prevenção, além de ser um tema que me é muito caro, é um assunto dos mais atuais e que tem sido muito debatido – a partir de situações clínicas e educacionais – nas mais variadas situações que têm reunido profissionais de campos diversos ao longo desse ano de 2013, inclusive nas mídias escritas e televisivas.

Mas quero adentrar essa temática me remetendo à palestra da psicanalista Regina Orth de Aragão numa escrita muito bem orquestrada a quatro mãos, as dela e as de Isabel Kahn Marin, também psicanalista (presidente da ABEBÊ, a primeira e vice presidente, a segunda). Essa palestra nos brindou com uma apresentação muito consistente e delicada problematizando a Promoção, Prevenção ou Predição? – tema deste simpósio inaugural, além de ter nos chamado a atenção para: o que se quer dizer quando se fala na Prevenção? Porque pode-se correr o risco de cairmos na Predição, o que nem de longe vem a ser a mesma coisa! Essas psicanalistas propõem contornos nos cuidados à primeira infância que possam conter e elaborar a angústia num processo transformador, ao se resgatar a tradição psicanalítica na qual o desafio seria pensar num modo de prevenção subjetivadora, relacionada ao cuidado e à atenção psíquica transmitida pela escuta e pelo acolhimento (eu penso que tanto do clínico quanto do educador). Nessa perspectiva, a distinção entre prevenção e predição é fundamental: “Os avanços importantíssimos nos conhecimentos a respeito dos fatores de risco e das condições propícias para o desenvolvimento da Saúde Mental trazem em si o perigo da tentação preditiva.”[4]

Foi com a intenção de chamar os leitores para este sentido de “alerta a um perigo tão tentador”, a prevenção como garantia e não como uma aposta, que resolvi fazer das palavras de Guedeney, Esperar é urgente, o título desse artigo. Elas nos foram trazidas por Regina e Isabel ao nos remeterem às intervenções psicoterápicas pais-bebês desse autor que, juntamente com Serge Lebovici, há muitos anos escreveram-nas num livro sobre essa clínica [5]. E é também, por conta dessas palavras-título e ao que elas me remeteram ao longo de todo o Encontro, que resolvi colocar aqui o fragmento clínico da apresentação que fiz no Painel de número VI para, a partir dessa vinheta, poder tecer alguns comentários na direção da Prevenção na Primeira Infância – cuidados e riscos, porque mesmo trabalhando com pais-bebês que me chegam para atendimento já em marcado sofrimento, reafirmo a urgência de o clínico poder ter recursos próprios para saber e/ou conseguir esperar antes de dar diagnósticos e/ou prognósticos muito sombrios nestes tempos tão primeiros da pequena criança, que ainda está em processo de estruturação e de desenvolvimento. Dizendo de forma ainda mais imperativa, penso que em muitas situações onde esperar se faz urgente, as cenas clínicas com a primeiríssima infância deveriam ser sustentadas pela possibilidade de o psicanalista usar seu pensamento clínico como forma de inaugurar junto ao bebê e aos seus pais, ambos em sofrimento, a possibilidade de organizar, junto ao bebê, o acolhimento de um adulto de referência que pensa por si e que o pensa. Para que este adulto, que poderia ser sua própria mãe ou seu pai, venha a se sentir amparado pelos vários clínicos que transitam simultaneamente nos atendimentos, ao mesmo tempo apostando nas condições dos pais de cuidar e se ocupar de seu bebê ao poder deixar lá conosco a enorme angústia trazidas por eles e que os impedia de pensar até aquele momento em que foram procurar ajuda.

Fragmentos Clínicos: O bebê, aos seis meses de idade, chega encaminhado como sendo cego e autista por uma fonoaudióloga de um serviço público, que conhecia nossa forma de trabalho interdisciplinar. Encontro-o na sala de espera com sua jovem mãe (18 anos) e sua avó materna. Minhas primeiras impressões me levam a pensar que não dará para aceitar a avó dentro do enquadre clínico. Impressão que decido acatar porque é muito intensa, quase uma certeza!? Portanto, assim que entramos na sala de atendimento, delicadamente mostro um lugar para a avó se sentar enquanto sigo com a dupla mãe/bebê até o espaço configurado e organizado como o local de acolhimento e mostro onde a mãe pode sentar com seu bebê ao colo. Importante salientar que o primeiríssimo manejo psicanalítico desta primeira cena com essa família foi ter deixado a avó num lugar mais afastado do acolhimento à mãe e ao bebê feito por mim e pela mini equipe que estava comigo naquele atendimento. Com este manejo, desde o primeiro encontro nos dirigimos diretamente à mãe, convocada que se viu a responder sobre seu filho e sobre ela própria para contar a história de Álvaro ali para nós todos.

Ato IÁlvaro chora. Pescoço mole, sem coordenação, como se fosse um boneco cujos membros desorganizados parecem obedecer mais à força da gravidade que a algum habitante daquele corpinho – descreve-nos a fisioterapeuta. Seu estrabismo acentuado chama minha atenção, principalmente porque vem associado à uma ptose palpebral bilateral, mais acentuada à esquerda, parecendo-me que ambos são da ordem de um evitamento ativo por parte do bebê. Nesse sentido, penso que Álvaro, em sua pouca idade, já experimentou vivências tão violentas a ponto de precisar se retirar dessa forma tão “autística” (se é que se pode falar assim!?) para não ter que experimentá-las, mesmo que para isto perca a visão! Quando penso isto, imediatamente procuro acalmar a angústia que cresce dentro de mim, e olho para ele. Assim que faço um breve contato com Álvaro, me certifico que ele não é cego, mas não consigo explicar perante à equipe porque tenho certeza disto! Foram precisos oito meses acompanhando-os para que o oftalmologista de uma renomada instituição dissesse à mãe que seu filhinho tinha 100% de acuidade visual!

A intensidade das cenas clínicas com eles é sempre tão forte que, ao início do tratamento, a fisioterapeuta relatava que depois dos atendimentos ficava sempre com muito enjôo. Penso que é a contratransferência direta no corpo a corpo com o bebê que nos mostra tanto sofrimento para tão pouca idade. Eu percebia o quanto era-lhe difícil suportar uma atitude mais passiva, porque menos apegada à perspectiva de um agravamento do quadro de Álvaro, podendo partir para a intervenção fisioterápica inicialmente antecipando a possibilidade de o bebê se abrir para o contato com ela. Somente a partir da aposta na capacidade de Álvaro suportar a relação com a fisioterapeuta, foi possível o início de um contato tônico, gestual, rítmico, numa dinâmica corporal que não poderia ainda incluir palavras nesse laço inaugural, onde o contorno e as atribuições de sentidos, tanto dos apelos do bebê quanto suas respostas à estimulação, eram dadas ao longo de cada sessão pelos dois psicanalistas presentes. Assim a leitura da movimentação e da organização corporal do bebê podia ir se abrindo para a antecipação do sujeito e da aposta em seu desenvolvimento e, não mais, para a antecipação de sintomas que impediriam seu desenvolvimento.

Ato IIFrente ao brinquedinho musical (um palhaço), Álvaro se coordena melhor, globalmente falando e ganha tônus! – novamente a fisioterapeuta anuncia a mudança do bebê. E o psicanalista que está junto nesta mini equipe, diz: Álvaro fixa o olhar no palhacinho e para de chorar. Fica com uma mão na boca e a outra segura o dedo de Elô que está muito próxima a ele e em seu campo de visão. Ficam assim por quase quinze minutos, em silêncio. A situação toda parece-me muito frágil, e qualquer fala de um de nós poderia romper a estruturação mínima que alcançaram mãe, bebê, Elô e a avó, que se mantém à distância sem mexer um músculo, acompanhando a cena com atenção. Mas, apesar da intensidade e da suposta fragilidade, a cena me traz um alento, dado inferido pela minha contratransferência que precisa de confirmação da Elô e de uma resposta à minha pergunta: porque se preservou o silêncio por tanto tempo, naquele primeiro momento da cena clínica com Álvaro?

Penso que permiti, ou melhor, que instaurei ali um silêncio como o possível manejo clínico psicanalítico que encontrei dentro de mim. Mas sei que não é qualquer silêncio, como aquele em que nos silenciamos por não ter o que dizer ou fazer! Cabe-me colocar que instaurei ali um silêncio cheio de sentidos, sendo que o primeiro sentido foi o lúdico, onde somente um palhacinho podia preencher a cena com sua visão colorida e musicada, dando leveza à densidade da situação clínica nesse nosso encontro com eles. Mas, por trás do palhacinho estava eu, com meu rosto e meu olhar para Álvaro, numa expressão de encantamento e surpresa – surpresa sempre necessária nas cenas com tamanha densidade como a que vivemos ali com este bebê e sua jovem mãe, ambos completamente desamparados! Buscava o olhar do bebê para que ele pudesse viver ali comigo algo capaz de fazer com que ele quisesse ver/enxergar sem desviar ativamente seu olhar e/ou deixar cair suas pálpebras! Mas eu sabia que este tempo de espera que eu me dava e a ele também, sem me ater à urgência que aparecia estampada nos profissionais à nossa volta, permitiria que Álvaro - e por que não sua mãe também? - pudesse baixar a enorme tensão daquele rostinho, ao mesmo tempo que poderia permitir à mãe um tempo sem angústia em que algum processo psíquico pudesse circular dentro dela, derretendo seu olhar gélido! E, para minha surpresa, Álvaro foi além do que lhe ofereci, mostrando-nos seu desejo de se manter ligado a mim ao segurar meu dedo entre seus dedinhos. Por que esse foi meu primeiro manejo clínico transferencial? Porque pressenti que a situação de vida de Álvaro e de sua mãe era tão dramática para eles e para todos à volta deles, que algo daquela “tensão no ar”, ao se dissolver, nos inundou numa alegre onda de calor humano que emanava de cada um dos presentes naquela sala. Finalizo esse fragmento clínico imaginando que os profissionais que o atendiam em suas consultas até aquele momento, exceção feita à fonoaudióloga que nos encaminhou o bebê, não faziam uma leitura semelhante à nossa com relação ao seu sofrimento psíquico e ao de sua mãe, embora já o rotulassem de autista e de cego. E volto a parafrasear Regina Orth de Aragão, será que é possível predizer o futuro da expedição humana?

Encerro meu texto deixando aqui minhas impressões primeiras do Encontro, atravessada que estou (até agora!) pelas falas dos profissionais que foram ao Encontro – para dar os cursos pré-congresso[6], apresentar filmes, painéis, simpósios, oficinas, pôsteres e participar das rodas de conversas e, ainda, pelo contato que pude ter com vários deles ao longo desses quatro dias em Brasília. Trocas vivas e atuais, de notável horizontalidade, possibilitando diálogos importantes nos debates entre jovens profissionais e os mais maduros. Resta ainda testemunhar o quanto me foi agradável repousar o olhar numa imensidão de verde e de bela arquitetura da Capital Federal, enquanto circulava com vários colegas do nosso e de outros departamentos do Sedes, que vão a cada vez em maior número prestigiar esses Encontros, se não com suas competentes apresentações, com suas ricas contribuições, sempre profícuas.


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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise e do Departamento de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae de SP; Membro fundador da ABEBÊ - Associação Brasileira de Estudos sobre o Bebê e da atual Diretoria.
[2] A ABEBÊ – Associação Brasileira de Estudos sobre o Bebê é uma associação multiprofissional, sem fins lucrativos, criada com o objetivo de trabalhar em favor do desenvolvimento de condições psíquicas propícias para a vida do bebê – da concepção até os três primeiros anos de vida, ou dizendo de outra maneira: cuidando da construção da parentalidade e da constituição do psiquismo. Elabora, promove e apóia estratégias e ações inovadoras, comprometidas com o atendimento às necessidades da primeira infância, visando sua aplicação prática em larga escala em todo o Brasil, além de repercutir internacionalmente, já que estamos afiliados à Waimh - World Association for Infant Mental Health. Através de seu site (www.abebe.org.br ), divulga o que profissionais de forma isolada e/ou institucionalmente fazem no Brasil e também no exterior.
[3] Bruno Rebillaud da França e Nora Scheimberg da Argentina.
[4] O material apresentado por Regina Orth de Aragão e Isabel Kahn Marin neste simpósio, que me foi gentilmente cedido pelas autoras, já se encontra no prelo com o título: Entre o estranho e o familiar – desafios para a prevenção.
[5] Guedeney, A. e Lebovici, S. – Intervenções psicoterápicas pais-bebês, Porto Alegre, Artmed, 1999.
[6] Curso I – A pintura e a modelagem como meios terapêuticos no tratamento dos autismos e de outras patologias precoces, ministrado pela psicanalista francesa Anne Brun; Curso II – Relação entre o ambiente e os cuidados maternos: efeitos de prevenção na primeira infância, ministrado pelo psicanalista francês Bruno Rebillaud; Curso III – Desafios da educação de bebês em creche: na diversidade, como garantir a singularidade?, ministrado pelas educadoras Cisele Ortiz e Maria Tereza Venceslau de Carvalho e Curso IV – Transtornos alimentares na primeira infância, ministrado pelo pediatra e psicanalista Wagner Ranna.



 
 
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