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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    27 Novembro 2013  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

MEDICALIZAÇÃO DA VIDA COTIDIANA (DOSSIÊ) [1]




EQUIPE EDITORIAL DO BOLETIM ONLINE

Como é bela a humanidade!
Oh! Admirável mundo novo em que vivem tais pessoas
.
Shakespeare, Tempestade.



Durante o ano de 2013 selecionamos alguns artigos que circularam entre grupos de profissionais que trabalham com Saúde Mental e também na mídia aberta sobre o importante debate atual da medicalização excessiva de adultos e crianças, a partir de novos diagnósticos nosológicos. O lançamento do DSM-V este ano e sua repercussão no meio médico, psicanalítico e outros, deixa claro que este é um assunto de interesse maior para toda a sociedade, que precisa ser debatido pelos profissionais e pelos pacientes/usuários dos serviços de Saúde e seus familiares. Como disse Vladimir Safatle na matéria de outubro da revista Cult que dedicou um dossiê ao tema, esse movimento de transformar toda experiência que carrega um sofrimento em patologia torna a “vida dependente de maneira compulsiva da voz segura do especialista, restrita a um padrão de normalidade que não é outra coisa que a internalização desesperada de uma normatividade disciplinar decidida em laboratório.”

Destacamos o fato, levantado por diversos destes textos, do caráter político e econômico subjacente a este panorama. De um lado a indústria farmacêutica patrocina pesquisas na área de Saúde Mental priorizando interesses mercadológicos; de outro, a psiquiatria estende sua jurisdição a tal ponto que já testemunhamos a patologização da vida comum, do sofrimento, do luto, da revolta, da desobediência, da diferença, do espontâneo. No mesmo dossiê da Revista Cult, Mario Eduardo Costa Pereira esclarece em seu artigo que há uma discordância entre os dois órgãos considerados referências nos EUA: por um lado a APA (Associação de Psiquiatria Americana), que lançou o Manual de Psiquiatria (DSM) e de outro o NIMH (National Institute of Mental Health), principal órgão financiador de pesquisa nesta área nos EUA – e, segundo Mario Eduardo, no mundo -, que posicionou-se publicamente em discordância com DSM-V, afirmando que deixará de usá-lo como referência em suas pesquisas, passando a basear-se em critérios próprios (o RDoC: Research Domain Criteria).

Chega-se a falar em epidemias diante do aumento absurdo de certos diagnósticos, os quais já vêm acoplados com uma prescrição medicamentosa. O fármaco precede a doença: “doenças fictícias” !, um artigo afirma, provocativamente - criam-se doenças para dar conta das drogas. Um exemplo é o diagnóstico de TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade). No Brasil, segundo reportagem da Folha de São Paulo de 5 de novembro [2], a estimativa é que 1,9% das crianças em idade escolar apresentam este transtorno. Nos EUA, apresenta-se como epidemia: 9% das crianças diagnosticadas e muitas destas medicadas. Na França, apenas 0,5% [3]. É claro que podemos pensar o quanto as doenças e os sofrimentos psíquicos são construídos na intersubjetividade e portanto a sociedade e a cultura são protagonistas na constituição da saúde e da doença. Mas também fica evidente o interesse de mercado da indústria farmacológica e o interesse social, político e repressivo (reproduzido nas e pelas famílias) em manter as crianças domadas.

Desde o DSM-IV falamos também em epidemia de autismo e de depressão. O luto agora, a partir do DSM-V, é considerado patológico se ultrapassar 15 dias! O diagnóstico está mais preciso, como dizem muitos médicos em relação ao autismo, ou o que testemunhamos é uma patologização crescente dos comportamentos a serviço de calar o que se manifesta como dissonante em relação àquilo que os poderes querem imprimir como uma nova ordem global inquestionável?

Sabemos que cada época cria padronizações do que é o normal e do que é patológico em função de seus ideais dominantes. Vale perguntar o que em nossa cultura atual é estabelecido como patológico, obedecendo e ao mesmo tempo produzindo ideais questionáveis - transformar todo luto em “depressão” num mundo de imperativos maníacos, domesticar ou esvaziar qualquer rebeldia ou angústia infantil com a noção de “hiperatividade”, entre outros.

Podemos indagar se, após décadas nas quais a marcha da psiquiatrização do viver e do sofrimento humanos parecia inesgotável e inexorável, o fato de um conflito interno ao próprio campo da psiquiatria vir a público pode afinal ser tomado como um primeiro sinal do esgotamento desta tendência, colocando no horizonte a possibilidade de uma inflexão no campo. Considerando que a resultante deste conflito ainda está necessariamente aberta ao jogo de forças sociais em movimento – como o foi seu próprio surgimento – temos pela frente, enquanto psicanalistas, uma convocação e uma oportunidade de incidir neste jogo de forças, ao lado de toda a sociedade.

Links recomendados:

Das razões para indicar uma abordagem clínica no campo da psicopatologia da criança, de Leda Fischer Bernardino em fevereiro de 2013

Do DSM-I ao DSM-V: efeitos do diagnóstico psiquiátrico “espectro autista” sobre pais e crianças, do MPASP em 11/04/2013

Transforming diagnosis, de Thomas Insel em 29/04/2013

Instituto de Saúde Mental dos EUA “abandona” o DSM-V: o que isto significa?, de Psicologia dos psicólogos em 14/05/2013

Acordei doente mental, de Eliane Brum em 20/05/2013

O DSM-V e a fabricação da loucura, de Fernando Freitas e Paulo Amarante em 23/05/2013

Pra acabar com o DSM – A obrigação a uma referência diagnóstica ao DSM prejudica a cientificidade; opera à revelia do tratamento psíquico; tem custo altissimo para os Estados e paralisa a pesquisa e o ensino, manifesto dod Coletivo Stop DSM

El psiquiatra que "descubrió" el TDAH confesó antes de morir que "es una enfermedad ficticia", fonte: Der Spiegel em 25/05/2013

A história da psicopatologia no Brasil, por Benilton Bezerra em Café Filosófico de 14/07/2013

A moral psiquiátrica, de Vladimir Safatle em 01/10/2013

O futuro de uma classificação, de Gilson Iannini e Antonio Teixeira em outubro de 2013

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[1] Este dossiê dá continuidade àquele publicado na edição 4 do Boletim Online, de fevereiro de 2008, sob o título Medicalização da infância e da adolescência (dossiê), que se encontra disponível no site do Departamento através do botão Primeira Página, Boletim 4: http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/index.php?apg=b_visor&pub=4&ordem=10&origem=ppag
[2] http://www1.folha.uol.com.br/fsp/equilibrio/137350-a-doenca-da-normalidade.shtml
[3] Revista Samuel: Por que as criancas francesas nao tem deficit de atencao





 
 
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