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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    28 Abril 2014  
 
 
CINEMA

OS MIL SEXOS DE TAÍS, JOÃO, CANDY MEL, LAERTE ....E DE TODOS NÓS


MIRIAM CHNAIDERMAN [1]


É tocante o depoimento de Taís Souza no documentário De gravata e unha vermelha [2]: “Há mil sexos dentro desse corpo que o Estado diz que é dono”. Em outro momento do documentário, Taís afirma que é dopada de hormônio, que inventa seu gozo, que fabrica seu prazer. A lucidez de Taís é cortante. Fala de um não-lugar no mundo, de ser uma aberração, de desafiar os dogmas religiosos.


Nathalie Zaltzman inicia seu ensaio “O sexo oposto” (in Ceccarelli, Novas Sexualidades, Escuta, 1999) relatando uma conversa entre um jardineiro amador e um especialista. O texto começa com uma pergunta relativa ao Ruscus naculeatus que, “como nunca produziu bagas vermelhas”, torna impossível saber “se se trata de um pé macho ou fêmea”. O especialista sugere – “para determinar o sexo do ruscus” – plantá-lo próximo a outro Ruscus. E afirma: “somente a presença de uma outra planta poderá revelar seus respectivos sexos; por sua floração, se forem do mesmo sexo, pela frutificação, se forem dos sexos opostos” (p. 89). O botânico conclui afirmando que “a vida submete todos os seres vivos às mesmas leis, não importando o grau de complexidade”. Mas, no mundo vegetal, interpreta Nathalie Zaltzman, “o destino anatômico é marcado: a determinação sexual de um sujeito, macho ou fêmea, não pode se realizar sem a presença de um outro sujeito, seja ele do mesmo sexo ou não”. No mundo vegetal, “sem linguagem, sem inconsciente e sem fantasma”, a determinação do sexo depende da presença de uma outra planta. Mas, até nas plantas, a alteridade é anterior à identidade.

Para Nathalie Zaltzman, a identidade de gênero seria a primeira. Mas, “o original desta inscrição se compõe de fragmentos que circulam indefinidamente” e que se opõem a qualquer trabalho de domesticação “que tente fixá-los em sua migração indefinida pelo poliglotismo psíquico em que se soletram.”(p. 91)

No filme que dirigi, De gravata e unha vermelha, o poliglotismo psíquico desses fragmentos comandou a construção de uma narrativa onde qualquer identidade é esfacelada por uma sexualidade que grita e urra, em personagens com corpos construídos e encontros permeados de uma estranheza própria ao que ainda não encontrou linguagem para ser figurado.

A ideia do documentário surge a partir do cartunista Laerte. Em 2010 Laerte apareceu, já aos 60 anos, vestido de mulher. E surpreendeu o mundo. Laerte sempre foi conhecido como cartunista. Publica diariamente suas tirinhas no jornal Folha de São Paulo. É do grupo de Glauco e Angeli. Fez parte de todo um movimento que nos anos 70 manifestava-se politicamente através das histórias em quadrinhos. Não há quem não lembre da publicação Chiclete com banana ou não sinta saudades da Rebordosa, figura criada por Angeli. Nas mãos desse grupo de cartunistas a contra-cultura aparecia como oposição à ditadura e forma política de contestar o institucionalizado.

Laerte, mais uma vez, escandaliza o mundo. Revigora sua rebeldia. Aparece na Revista Bravo vestido de mulher. E, naquele momento, define-se como um cross-dresser, termo que depois viria a criticar, afirmando ser classista: o travesti teria a ver com classes menos privilegiadas e o cross-dresser seria um nome chique para o travesti classe-média.

Em entrevista a Ivan Finotti, na Folha Ilustrada, afirma Laerte: "O travestimento é uma questão de gênero, não de sexo. São coisas independentes, autônomas, que nem o executivo e o legislativo. É um erro fazer essa mistura... Ah, está vestido de mulher, então é viado. Jogou bola, é macho. E eu, que gostava de costurar e de jogar bola? O que tenho feito é investigar essa parte de gênero. O que tenho descoberto é que isso é muito arraigado, essa cultura binária, essa divisão do mundo entre mulheres e homens é um dogma muito forte. Não se rompe isso facilmente. Desafiar esses códigos perturba todo o ambiente ao redor de você".

Laerte revolta-se contra a ditadura dos gêneros: “É você sentir que sua liberdade está sendo tolhida, que as possibilidades infinitas que você tem de expressão na vida, ao sair, ao se vestir”.

Impressionou-me sua liberdade na determinação de como viver a sexualidade. O binarismo de gênero era questionado radicalmente, tanto na sua fala quanto na sua figura. Depois, também Laerte iria sucumbir ao binarismo de gênero – afirma no documentário que quer e vai fazer implante de seios e que se sente mulher.

Foi a partir de uma conversa com Laerte que elaborei o projeto de documentário e acabei ganhando um concurso no MinC em primeiro lugar, conseguindo assim os recursos.

Estava diante de um imenso desafio... Mergulhar nesse mundo das novas sexualidades implica em abandonar qualquer posição essencialista. O que não é nada fácil. Poder se mover num mundo onde o binarismo de gênero foi rompido implica em uma abertura para outras linguagens e os percursos teóricos passam a ser movediços.

O desejo não é domesticável. O sexo é o que irrompe na calmaria, é sempre quebrando o estabelecido que o erotismo acontece.

A própria psicanálise passa a ser questionada a partir da ruptura do binarismo de gênero. A figura da esfinge, homem e mulher, volta a viver. O fato de que Édipo tenha respondido ao enigma não a destruiu para todo sempre. Hoje, a figura da esfinge está presente nos corpos onde o feminino e o masculino se misturam, obrigando a repensar as diversas leituras de uma sexualidade que se construiria a partir do complexo de Édipo.

Letícia Lanz (que era Geraldo Eustáquio) conta, no documentário, do prazer que tem com seus genitais (masculinos) e com seus seios. E indaga-se sobre o que é, concluindo que é uma “mulher de pênis”.

Candy Mel conta que menstrua!

É também Letícia Lanz que afirma que “daqui alguns anos vão achar que somos uns primitivos... classificar os seres humanos pelo que têm entre as pernas...”

Meu primeiro encontro foi com João Nery. Eu estava ainda na pré-produção, pensando em quais personagens entrevistaria. João Nery é o primeiro trans-homem brasileiro. Fez sua cirurgia ainda nos anos 70. Eu havia lido seu livro Viagem Solitária, onde relata todo seu processo até se tornar homem. É interessante ver como nos trans o binarismo de gênero é reafirmado. João é um homem. Que quer ser visto como homem. No documentário, ele reafirmaria isso, ou seja, o desejo de ser visto como qualquer outro homem e viver no anonimato.

Hoje, é no corpo que a revolução acontece. Não por acaso, o estado legisla e patologiza o desejo quando ele não obedece os caminhos usuais. São muitas as histórias de preconceito e exclusão. Johnny Luxo relata ter levado uma cusparada na cara ainda adolescente.

Acompanhada por Dudu Bertholini, “construtor de imagens de moda”, fui mergulhando no espetáculo desses corpos que cenografam seu cotidiano minuto a minuto. A narrativa fílmica deveria respeitar essa construção do corpo. Várias entrevistas foram cenografadas. E percebo que fui mergulhando no que a sexualidade tem de mais radical: a não submissão a qualquer padrão pré-estabelecido e o uso abundante do fetiche. Para despatologizar essas experiências talvez tenhamos que recorrer a conceitos ainda não estabelecidos. Rafael Kalaf Cossi, no seu importante livro Corpo em Obra (Versos Ed. SP, 2011) vai propor a noção de semblante para pensar essas novas construções do gênero. O que é bastante rico. Mas não me parece que essa noção dê conta desses mil sexos, pois Cossi delimita seu campo de trabalho: está buscando entender o transexual.

Em meu documentário, procurei não me restringir ao transexual – que ainda mantém o binarismo de gênero. Antes de finalizar o filme, ainda estando no terceiro ou quarto tratamento, fui com Dudu Bertholini apresentar o que havia montado a um dos personagens entrevistados, Ney Matogrosso. Ele assistiu atentamente e me apontou como eu mesma ainda estava presa a um certo binarismo de gênero, pois o filme dava ênfase ao transexualismo. O que tornava sua presença supérflua. Ney tinha toda razão. Sua presença no documentário só se justificaria – além da homenagem óbvia – se o filme se propusesse a criar uma desordem total no binarismo de gênero. Depois dessa conversa com Ney, eu remontei o filme. A fala de Ney politiza o documentário e nos mostra o quanto precisamos suspender nossos conceitos que sejam agentes de uma ordem pré-estabelecida que precisa ser questionada.

Surpreende o relato de Letícia, que chorando nos conta de sua mulher, com quem continuou casada depois de ter se transformado em mulher. Letícia nos conta uma tocante história de amor.

Assim, tentei mostrar os mil sexos que nos constituem, a todos nós. Ecoa o grito de Rogéria no documentário: “Não é pelo fato de ser gay que eu não sou macho, muito macho”.

Hoje, não é um outro que define a sexualidade. Mas sim, um infinito de outros simultâneos. Colocar uma árvore ao lado da outra não dá conta da multiplicidade de gêneros que atravessam nossa contemporaneidade. Temos hoje que nos inventar – como seres sexuados que somos e como psicanalistas abertos para o que acontece no mundo.

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[1] Psicanalista, ensaísta e documentarista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[2] De gravata e unha vermelha, 2014, direção Miriam Chnaiderman.





 
 
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