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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    29 Junho 2014  
 
 
ENTREVISTA

OBRAS INCOMPLETAS DE SIGMUND FREUD
Boletim Online entrevista Pedro Heliodoro Tavares


Em 22 de maio de 2014 encontramos Pedro Heliodoro Tavares – psicanalista e professor da Área de Alemão: Língua, Literatura e Tradução da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Doutor em Psicanálise e Psicopatologia bem como em Literatura, Pedro Heliodoro realizou Pós-Doutorado em Estudos da Tradução, investigando as traduções da obra de Sigmund Freud. Ao lado de Gilson Iannini – psicanalista e professor de Filosofia da UFOP – coordena a coleção Obras Incompletas de Sigmund Freud (Ed. Autêntica), da qual é também o coordenador de tradução e revisor técnico. Intermediado pelo colega Edson Luís André de Sousa, psicanalista de Porto Alegre ao qual agradecemos, nosso encontro visou ao conhecimento deste trabalho de Pedro Heliodoro, que é ainda autor dos livros Versões de Freud (7Letras, 2011), Fausto e a Psicanálise (Annablume, 2012), Freud & Schnitzler (Annablume, 2007) e coorganizador de Tradução e Psicanálise (7Letras, 2013).

É com satisfação que registramos, a seguir, a íntegra da entrevista realizada, que esperamos desdobrar em futuras interlocuções.


ELAINE ARMÊNIO e SÍLVIA NOGUEIRA DE CARVALHO[1]



Boletim Online: Foi uma emoção afinal encontrar, na estante de uma livraria, o volume da editora Autêntica intitulado As pulsões e seus destinos, poder folheá-lo e identificar ali uma criteriosa edição bilíngue, apoiada por um significativo conselho de pesquisadores e de psicanalistas[2]. Gostaríamos que você nos contasse um pouco das origens desse trabalho.

Pedro Heliodoro: A proposta partiu de nós – Gilson Lannini, editor que se aproximou da Autêntica para coordenar a série Filô[3] e eu, Pedro Heliodoro, coordenador de tradução. Gilson expôs para a editora que, desde o domínio público das obras de Freud temos, no Brasil, alguns projetos de tradução – o da Companhia das Letras; o da LPM; aquele do Luiz Alberto Hanns, da Imago, que começou com muito fôlego mas depois foi interrompido e não vai adiante – mas faltava, no mercado, uma coleção de Freud de psicanalistas para psicanalistas e estudiosos de Freud. Porque percebemos que, por mais que seja uma tradução de qualidade, a do Paulo Cesar de Souza esbarra em questões conceituais – pois é um projeto muito honesto ao dizer que ele traduz para não-psicanalistas: ele traduz Freud, pensador da cultura e escritor, que não é propriedade exclusiva da psicanálise. É um viés defensável, mas nós pensamos que havia certo vácuo de uma produção voltada ao público psicanalítico. Gilson e eu somos psicanalistas, e ele conheceu meu trabalho porque eu publicava artigos sobre psicanálise e tradução e daí fez o convite pra que eu coordenasse a coleção ao seu lado. Ele entre Belo Horizonte e Ouro Preto, eu entre São Paulo e Florianópolis, a coisa começou por e-mail. Ele já tinha um contato prévio com Ernani Chaves, filósofo e professor da UFPA que estava traduzindo alguns textos sobre arte, mas foi aí que a gente sentou e pensou nas Obras Incompletas. E esse jogo com o adjetivo Incompletas vem primeiro denunciar o que é essa ideia de completude de tantas coleções que se arrogam o termo Completas. A gente começou as Obras Incompletas com o texto Sobre a concepção das afasias, que está fora de todas as Completas, não é? Foi uma felicíssima coincidência que o tradutor, o Emiliano Rossi, estivesse defendendo a tese dele ali na USP, na área de Alemão – eu estive na banca; quem orientou foi um colega, o João Azenha Júnior, que foi consultor na edição do Luiz Hanns. A tese consistia na tradução do texto acompanhada de um comentário sobre a gênese do vocabulário freudiano metapsicológico no estudo sobre as afasias. Relegado como um texto pré-psicanalítico - como se ali ainda fosse um Freud que não interessasse aos psicanalistas - ele expõe, entretanto, toda essa relação do psiquismo com a linguagem, a migração dos conceitos da neurologia para todo o processo de anassemia da metapsicologia. O que ele resgatou ali nós também reconhecemos como o ensejo para designar Incompletas. Até o Compêndio, que é o último escrito de Freud, ele coloca que a teoria das pulsões não está acabada, há textos de metapsicologia que não foram publicados, o que também fala dessa incompletude.

BO: Ou seja, o primeiro volume da coleção foi um volume com o qual vocês se encontraram a partir dessa articulação.

PH: Sim, mas você viu que saíram simultaneamente o texto das Pulsões, bilíngue, e esse outro, traduzido pelo Emiliano Rossi. Na primeira conversa com o Gilson Ianinni, a gente pensou: o cartão de visitas da coleção vai ser o texto das Pulsões bilíngue. Por alguns motivos; o primeiro e o mais evidente é se tratar do vocábulo work-in-progress freudiano que mais polariza a discussão sobre a tradução de Freud no mundo. Na língua inglesa, em que existiria uma possibilidade muito óbvia de traduzir por drive, o James Strachey, à época, preferiu instinct. Nessa discussão de base, até hoje temos no Brasil tradutores que ainda usam instinto. Então pensamos: eis uma questão paradigmática sobre tradução. E se é o primeiro texto metapsicológico de Freud, em que ele está falando sobre sua construção conceitual, achamos que esse texto tinha de vir muito anotado, bilíngue e realmente dizer qual é o paradigma da coleção. Daí os ensaios que o acompanham. Do ponto de vista editorial, cada texto das Obras Incompletas terá um tratamento diferente: alguns bilíngues, outros não, mas a principal proposta da coleção é a de fazer agrupamentos de textos, coletâneas. Daí o volume de Fundamentos da Clínica Psicanalítica – com os artigos sobre técnica, Análise terminável e interminável, A questão da análise leiga -, o volume Neurose, Psicose e Perversão – com os textos específicos sobre a temática -, o volume sobre Arte, literatura e os artistas. Então a ideia é fazer algo que não existe no Brasil, uma edição de estudo. Como sabemos que nas instituições de psicanálise – ou, fora da psicanálise, na academia -, as pessoas se reúnem em torno de uma temática da qual há textos fundamentais, a ideia é fazermos esses volumes. Nesses casos vamos eventualmente chamar, do Conselho Editorial, um prefaciador, um comentador para cada caso específico.     

BO: Nas origens, como foi a entrada do Conselho Editorial?

PH: Gilson Ianinni estava mais próximo do pessoal que pensa a psicanálise junto da Filosofia e eu, mais próximo de Letras; mas quisemos chamar gente que circulasse por diferentes áreas e por diferentes leituras de Freud. Mesmo que de filiações diferentes, a formação do Gilson e a minha se deram em escolas lacanianas e uma primeira preocupação nossa foi a de não traduzir um Freud só para lacanianos. Então chamamos pessoas como Daniel Kupermann, Luís Carlos Menezes, Walter Costa, Nelson Coelho Júnior – uma preocupação de que fosse uma coisa plural: uma tradução que respeitasse a discussão do freudismo no Brasil e não quisesse reinventar a roda e, é claro, pensando também os limites dessa proposição. Por exemplo, quanto ao termo pulsão, as pessoas ficam cheias de dedos diante do fato de ser um neologismo que veio do francês – bem, é certo que veio pela língua francesa, mas veio pra ficar, ficou, é muito menos ambíguo, já está registrado em dicionários como o Houaiss, o Aurélio, já existe esta acepção difundida na cultura: não existe porque fugir do termo pulsão, hoje em dia. Por outro lado, em relação ao termo Verwerfung – que prefiro traduzir por rejeição, mas que no lacanismo se trata de forclusão ou de foraclusão – seria forçar a barra manter uma leitura claramente de tendência, algo semelhante em relação ao insight do kleinismo à época da tradução da Standard Brasileira. E o Conselho é variado pelas origens – acadêmicas ou psicanalíticas – e pelas regiões do Brasil: brincamos que este próximo volume, Arte, literatura e os artistas, é o volume Paratodos, como na canção do Chico Buarque, porque o tradutor é paraense, o revisor técnico, catarinense, o editor é mineiro e o prefaciador vai ser gaúcho. A gente quer realmente evitar as comuns acusações que identificam uma produção a destinatários de específicas regiões do pais – fazendo falar essas diversas vozes ao verter Freud para o Brasil e para os brasileiros.

BO: A apresentação da coleção Obras Incompletas de Sigmund Freud, no site da editora, começa pela referência ao conto O idioma analítico de John Wilkins, em que Borges escreve: "sabidamente não há classificação do universo que não seja arbitrária e conjectural". A citação nos pareceu realizar 3 movimentos simultâneos:
1o) o convite explícito "para que o leitor estranhe as taxionomias sacramentadas pelas tradições de escolas e de editores"[3];
2o) a indicação do compromisso de interlocução não somente com a literatura, mas também com a filosofia - tendo em vista que a leitura desse conto de Borges funcionou como uma espécie de chiste para Foucault, que respondeu a ele através da elaboração da obra As palavras e as coisas;
3o) a promessa de uma organização não-toda que inclua o excluído de obras ditas completas e que busque critérios clínicos para efetuar os agrupamentos de artigos ao longo dos volumes.

Nesta conversa, pensamos em investigar um pouco mais sobre cada um desses movimentos. Assim, perguntamos: a sequência de lançamentos visa a acentuar o efeito de estranhamento do leitor? (vocês começam por Pulsões, seguem para Afasias...). A que tipo de condição ela obedece?

PH: Em termos de diálogos, conforme comentei, nossa intenção primeira é o endereçamento de psicanalistas para psicanalistas e estudiosos de Freud – fundamentalmente apresentando um Freud que cria e funda uma prática clínica amparada nos efeitos da palavra. Assim, a literatura e a filosofia vêm como interlocutoras, mas nossa grande preocupação – se por um lado, um dos coordenadores da edição trabalha com a psicanálise no âmbito da Filosofia do ponto de vista acadêmico, e o outro, no campo das Letras – é mais trazer para as origens, do que propriamente confundir o leitor ao apresentar Freud ou como um literato ou como um filósofo. A ideia é justamente mostrar que não se trata nem de uma coisa nem de outra. Tivemos a oportunidade, por exemplo, para  Sobre a Concepção das Afasias, de convidar alguém que poderia escrever com muita propriedade num campo mais filosófico, e consideramos que esse texto seria riquíssimo, mas não apresentaria propriamente nosso viés. Queremos mostrar Freud muito mais como um autor de ruptura do que de tradição. Toda essa problemática do Freud como um autor meio sem lugar, esse entre-lugar é o que queremos enfatizar com esse Conselho plural, com essa feliz coincidência de que, na coordenação, temos alguém que circule mais por uma via ou mais por outra, e que nos serve muito. Como Freud, Foucault também já tem esse aspecto, é um autor sem lugar – não é com tranquilidade que classificamos Foucault como um filósofo. E o próprio Foucault vai chamar Freud como um autor instaurador de discursividade; existe um antes e depois de Freud quanto ao modo de lidar com a ideia de interpretação, por exemplo: ele abre o campo para uma coisa diferente. No Versões de Freud, eu tematizava que um tradutor - ou uma diretriz editorial - vai pender Freud mais para um literato que ganhou o prêmio Goethe, que era reconhecido por Thomas Mann e Stefan Zweig como um artista das Letras ou pender Freud para um pensador, como a gente vê Freud incluído na série Os Pensadores, de um saber mais estereotipado, pendendo para a razão. E o que é inovador em Freud? Ele é alguém que faz, justamente, das qualidades estilísticas, um recurso epistêmico. Alguém que coloca o literário a serviço do epistêmico. Antes de Freud, você procurava     classificar um autor, por exemplo Kant, do lado da razão; Goethe, do lado da estética. Mas você pega um Freud e, entre Goethe e Kant, onde é que ele está? Fazer do recurso estético um meio de articular uma grade conceitual é o caminho do meio que queremos sublinhar.

BO: Como se deu o processo de discussão dos critérios em jogo em próximos lançamentos tais como Amor, sexualidade e feminilidade ou Arte, literatura e os artistas?

PH: Foi da temática à coletânea: precisamos de um volume que concentre os conceitos fundamentais de Freud; então haverá um volume com os artigos sobre metapsicologia entre outros; precisamos de um volume sobre o fundamental da prática clínica. Uma hesitação que a gente teve, ao definirmos um volume sobre sexualidade: entram aí os Três ensaios?  Não, preferimos deixar os Três ensaios para uma edição à parte – talvez até bilíngue. A partir daí definimos que o recorte seria Amor, sexualidade e feminilidade. Aliás, quase todos os títulos desses volumes de estudo ficaram tripartites: Neurose, Psicose e Perversão; Arte, literatura e os artistas – pensando também neste Freud tripartite, de Isso, Eu e Supereu; Inibição, Sintoma e Angustia, etc. Ainda estão em aberto alguns desses volumes idealizados, há textos ainda em discussão. Mas a pergunta orientadora foi: que grandes núcleos um psicanalista em constante formação tem que explorar? Um psicanalista vai precisar de um volume sobre os fundamentos da clínica onde, além dos já chamados Artigos sobre técnica, apareça Análise terminável e interminável, Análise leiga, Tratamento anímico, tratamento psíquico. Assim, as Conferências aparecerão nos volumes de acordo com suas temáticas específicas. O mesmo pensamos em relação às Cartas.

BO: Em contraponto à proposição de Marilene Carone, vocês dizem recalque onde a tradutora preferira falar em repressão, devido às ressonâncias clínico-políticas deste termo no bestiário latinoamericano. Como vocês se situaram em relação à posição de Marilene?

Freud usa repressão, inclusive num sentido consciente: o sujeito que está apaixonado pela mulher do melhor amigo, mas ele reprime isso pra não perder a amizade. Isso seria uma Unterdrückung, seria uma repressão. Recalque, entendemos, seria Verdrängung, naquele caso em que ele não se dá conta disso e envenena o amigo, falando mal da sua mulher. Então, a repressão policial é uma Unterdrückung, é uma repressão consciente, de um órgão de força que vai lá e faz uma força contrária; o recalque, Verdrängung, é aquilo que a gente entende como esse mecanismo inconsciente. Essa foi a nossa solução, muito próxima de como Laplanche trabalha, ele também usa refoulement e répression.    
 
BO: Na enciclopédia chinesa Empório celestial de conhecimentos benévolos figuram os animais desenhados com um pincel finíssimo de pêlo de camelo. No contexto da publicação de uma coleção, eles nos lembraram da fábula evocada por Italo Calvino para falar da rapidez, aquela em que o desenhista Chuang-Tsê precisou de 10 anos, 2 casas e duas vezes 12 empregados para afinal figurar, de uma pincelada só, o caranguejo desejado pelo rei. Quanto tempo vocês estimam para a realização do empreendimento que têm em mãos?

No segundo semestre deste ano pretendemos lançar mais dois volumes; estou agora concluindo a tradução do Compêndio de Psicanálise (Abriss der Psychoanalyse) bilíngue e já está praticamente pronta a versão que o Ernani Chaves fez do volume Arte, literatura e os artistas, do qual vou fazer a revisão técnica. Para o ano que vem deve vir mais coisa, porque o Emiliano Rossi está traduzindo o volume sobre Amor, sexualidade e feminilidade, Claudia Dornbusch vai começar agora o Fundamentos da Clínica Psicanalítica, Maria Rita Salzano Moraes já está traduzindo Neurose, Psicose e Perversão e então pelo menos estes 3 volumes saem em 2015.

Para saber mais:
O Boletim Online vem publicando, ao longo do tempo, artigos relacionados ao tema das traduções das obras de Freud. Consulte os seguintes escritos, que se encontram abertos no site do Departamento:

Traduzir Freud: Encontro com Paulo Cesar de Souza – por Nelson da Silva Jr e Vera Dayan. B.12
Outras palavras – por Sílvia Nogueira de Carvalho. B.13
Uma repórter em Porto Alegre a serviço do Boletim Online – por Renata Cromberg . B.15
Freud mais democrático – por Camila Flaborea. B.20

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[1] Psicanalistas, membros do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrantes da Equipe Editorial do Boletim Online.
[2] André Carone,
Antônio Teixeira,
Claudia Berliner, Christian Dunker,
Daniel Kupermann,
Edson L. A. de Sousa,
Emiliano de Brito Rossi,
Ernani Chaves,
Glacy Gorski,
Guilherme Massara,
Jeferson Machado Pinto,
João Azenha Junior,
Kathrin Rosenfield,
Luís Carlos Menezes,
Nelson Coelho Junior,
Paulo César Ribeiro,
Romero Freitas,
Romildo do Rêgo Barros,
Sérgio Laia,
Tito Lívio C. Romão,
Vladimir Safatle,
Walter Carlos Costa.

[3] Selo da editora Autêntica que publica desde os filósofos gregos até os contemporâneos: Zizek, Benjamim.  

 




 
 
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