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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    29 Junho 2014  
 
 
O MUNDO, HOJE

INTIMIDADE E PARANOIA


Daniel Lirio[1]

 

As revelações sobre a agência americana de segurança (NSA) constituem mais um lastimável capítulo de um modelo de dominação que reúne informações pessoais, estratégicas e sigilosas sobre cidadãos comuns e pessoas públicas de todo mundo, inclusive da chanceler alemã Angela Merkel e da presidente Dilma. Frequentemente, utilizam-se do pretexto do “interesse de segurança nacional” para obter informações estratégicas de importância econômica, repassando-as a empresas norte-americanas. Por se tratar de imposição de uma lógica de relação, um abuso de poder, é obviamente uma prática condenável.


Começamos com a obviedade, agora podemos iniciar a reflexão: será que os elementos citados acima explicam toda a revolta? Minha hipótese é que parte do  incômodo se deve ao acionamento de gatilhos neuróticos básicos. Freud postula o superego como instância psíquica que nos observa, julga e pune; ou seja, é comum ao neurótico sentir-se observado, preocupar-se com o julgamento e temer a punição. Nossos desejos incestuosos são reprimidos, mas deixam como rastro o sentimento inconsciente de culpa, o qual, por vezes, procura situações externas para dar figurabilidade a esta culpa original e irrepresentável. Em casos extremos, esses mecanismos podem gerar um pensamento paranoico.
 
Contudo, se conduzirmos nosso pensamento de forma racional, veremos o caráter fantasioso desse temor: um cidadão comum não costuma cometer atos tão terríveis que lhe rendessem uma punição severa, caso fossem descobertos pelo Estado. A exposição da intimidade só poderia gerar constrangimentos em relação a sujeitos particulares, mas a questão deveria ser outra quando se trata de órgãos públicos. Afinal, pecadinhos cometemos todos, mas isso é irrelevante para as instituições de vigilância.

Essa paranoia, portanto, é um tipo de pensamento descendente do dito religioso “Deus está te vendo”. Na fantasia, haveria alguém ouvindo por trás do telefone ou na outra tela, gozando dessa vigilância. Não, meu amigo, Deus não está te vendo, Barack Obama não está te vendo, Bill Gates também não; seria ótimo se os políticos se importassem com o que você está fazendo, mas esse não é o caso. As únicas pessoas que se importam com o que você faz são aquelas com as quais você já compartilha a sua intimidade e, ainda assim, se te respeitam, deveriam respeitar sua privacidade. No fundo, se você quiser que alguém realmente se importe com a sua intimidade terá de pagar para que ela te ouça e, ainda assim, o interesse dela não será sua intimidade “em si”, mas o processo de sua transformação ou, ao menos, a mudança no seu modo de viver e se posicionar diante dos seus sentimentos íntimos.

Para Glenn Greenwald, jornalista que vem denunciando a Invasão de privacidade cometida pela NSA[2], a Internet é o lugar onde fazemos amigos, nos expressamos, pensamos, ou seja, é o lugar em que existimos. Portanto, para ele, a Internet é a herdeira da antiga Ágora grega, e vigiá-la seria mais nefasto do que vigiar espaços públicos concretos. Há aqui uma ideia de imbricação entre privacidade e liberdade. Embora simpatize com as ideias de Greenwald, penso ser necessário distinguirmos o sujeito em 3 categorias: Privado, Público e Econômico.

a) Enquanto sujeito privado, conforme já discutimos, seu foro íntimo não interessa a mais ninguém. É típico do neurótico achar que ocupa um lugar especial para os outros, quando é apenas mais uma pessoa no meio de 7 bilhões.
b) Enquanto sujeito público, suas opiniões, reflexões e mesmo suas eventuais produções culturais dizem respeito e se destinam a toda a humanidade. Aqui as questões de autoria deveriam visar antes o reconhecimento do mérito do que as recompensas financeiras. Enfim, caberia outro texto para falar da importância da total liberdade de troca de bens culturais, superando-se a ideia de que algumas pessoas são donas das produções culturais;
c) Enquanto sujeito econômico... bem, este já seria espionado de todo jeito, como sempre foi. Embora caiba a discussão sobre esse tema específico, não são os interesses econômicos que deveriam ditar o funcionamento das instituições, mas o contrário.

Portanto, o problema não é, em si, a invasão de privacidade, mas a existência de instituições autoritárias que estabelecem relações assimétricas e visam controlar o fluxo de informação. Podemos agora pensar em como proceder. A forma de combater a tirania da vigilância americana não pode se dar pelo aumento do controle sobre os conteúdos, pois isso apenas reforça a lógica da culpa e da paranoia[3]. Seria o mesmo que tentar aliviar a culpa de um analisando pelo aumento da cisão entre consciente e inconsciente. Ao contrário, apenas a associação livre é efetiva, ao trazer os conteúdos reprimidos para o campo simbólico e enfrentar a censura superegóica. De forma análoga, no campo macropolítico, a saída seria lutar pela associação livre de todos os conteúdos, pela livre troca de conteúdos de música, vídeos, livros, mas também a quebra de patentes: todo conhecimento é um produto da história da humanidade e pertence a toda humanidade. Além disso, é preciso fomentar todas as iniciativas que visem democratizar a informação, como o WikiLeaks e o jornalismo realmente investigativo que busca confrontar estruturas de poder. Também seria importante discutirmos sobre incentivos ao asilo político de Edward Snowden aqui no Brasil ou em outro país possível[4].

Enfim, se há uma forma abusiva de investigação da intimidade, a melhor maneira de combatê-la não é pela tentativa inglória de limitar este poder tirânico, mas pela investigação daquilo que realmente importa, como a valorização da Comissão da Verdade, dos portais de transparência para todas as instituições públicas, do jornalismo independente, e pelos questionamentos realmente importantes: quais empresas se beneficiaram do golpe militar? Quais empresas se beneficiam da criminalidade? Da hipermedicalização em nossa cultura? Da precarização do trabalho? Da precarização do transporte público? Quem se beneficia de uma medicina extremamente cara e intervencionista? E, principalmente, existe uma relação promíscua entre essas empresas e determinados atores políticos? Embora essas questões já sejam colocadas, será apenas quando forem reconhecidas em sua devida relevância como estruturantes de nossa vida que a questão sobre a investigação da vida particular encontrará sua medida devida: absoluta irrelevância.

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Psicólogo e Mestre em Psicologia Social pela USP, possui diversos artigos sobre psicanálise, cultura e saúde mental, disponíveis pelo site www.daniellirio.com.br
[2] https://firstlook.org/theintercept/2014/05/02/livestream-munk-debate-surveillance-greenwald-hayden/
[3] Na verdade, se eles realmente quiserem ter acesso ao seu computador, seria possível fazê-lo mesmo que não esteja conectado à internet, utilizando-se, por exemplo, de mecanismo de transmissão por rádio, já conhecido há bastante tempo.
[4] Ao leitor interessado, eu sugeriria avaliar se o site first look media cumpre essas prerrogativas. https://firstlook.org/




 
 
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