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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    29 Junho 2014  
 
 
NOTÍCIAS DO CAMPO PSICANALÍTICO

OURY


MAURÍCIO PORTO[1]

Em 2009, quando Peter Pelbart fez o primeiro convite a Jean Oury para aquela que seria sua única visita ao Brasil, a primeira associação que ocorreu ao psiquiatra que inaugurou a clínica de La Borde, e ali viveu desde então, foi com a bolha de sabão. Recordou a conversa que travara no final dos anos 1940 com Paulo Emilio Sales Gomes, durante a breve acolhida que a família Oury deu ao futuro cineasta brasileiro. O tema da conversa girou em torno da estrutura da bolha de sabão. Era a época de uma Europa fumegante, recém-saída da Guerra, de uma Paris empobrecida, e Jean sofria indeciso o dilema de escolher entre a carreira de biólogo ou a de psiquiatra.

Muito mais tarde, Jean Oury soube que, trinta e cinco anos depois, aquela conversa inspirou Lygia Fagundes Telles, esposa do brasileiro, a escrever um conto. A escritora inicia assim:

“Era o que ele estudava. ‘A estrutura, quer dizer a estrutura’ – ele repetia e abria a mão branquíssima ao esboçar o gesto redondo. Eu ficava olhando seu gesto impreciso, porque uma bolha de sabão é mesmo imprecisa, nem sólida nem líquida, nem realidade nem sonho. Película e oco. ‘A estrutura da bolha de sabão, compreende?’ Não compreendia. (...) ‘A estrutura’ – ele insistia. E seu gesto delgado de envolvimento e fuga parecia tocar mas guardava distância, cuidado, cuidadinho, ô a paciência. A paixão.”[2]

Como esta mulher soube captar, a partir do relato esparso que seu marido lhe fez daquele jovem distante, uma paixão naquela época ainda oculta, ou incipiente, que depois brotou e vigorou e acompanhou a existência inteira desse homem que ela sequer conheceu, mas que ela descreveu sem saber quando a paixão já havia se realizado?

As mãos branquíssimas, o gesto delgado, desde 1947 e ao longo de sessenta e sete anos de atividade, noite e dia no castelo de La Borde, Jean Oury criou sua psiquiatria da bolha de sabão. Ele conheceu como poucos a aproximação com homens ocos, indivíduos escavados entre a potência e a existência, entre a concepção e a criação, entre o sonho e a realidade. Como poucos, ele descobriu as maneiras de tocar essa película que quase delimita, a pele hipersensível que quase dá contorno ao sujeito, força errática, forma não formada.

Através de uma psiquiatria da bolha de sabão, Jean Oury aprimorou sua presença clínica: ele aguarda. Com os habitantes da clínica de La Borde ele aprendeu a tocar ao mesmo tempo em que guardava distância. Tato aguardante, na expectativa de uma manifestação. Sábio da espera, ele o paciente, soube que o movimento não cessa; é imperceptível boa parte do tempo e, às vezes, é espasmo.

A certeza de sempre haver um sujeito, mesmo quando parecia nada existir, conferia certo humor a Oury. Assim, crente, ele se mantinha atento ao inesperado, ao fugaz, ao sutil, nem sólido nem líquido. Este envolvimento paciente é o que daria oportunidade a uma linha de fuga, permitiria o surgimento, no outro, de uma fala, ou uma dor, uma opinião, um conceito, um grunhido, um esgar, um sorriso.

Minimalista, sensível aos menores fenômenos que acontecem no campo insólito e imperceptível das experiências vividas nos estados psicóticos, Oury colocou todo este seu apaixonado envolvimento-e-fuga a serviço da problemática que ele mais teorizou: o narcisismo originário e, neste tempo do Originário, a hemorragia do vazio. Foi com isso que Oury desejou se encontrar.

A fim de possibilitar tal encontro, o psiquiatra psicanalista foi criando a instituição (e não um “equipamento”, como ele gostava de chamar as organizações burocratizadas, sobretudo aquelas do Estado e da indústria médica) como um praticável. Praticável... As três definições do dicionário[3] bastam para dar as pistas do que se armou neste espaço institucional: praticável é estrutura cenográfica tridimensional – por exemplo, estrado, armação, enquadre... (ou seja, o teatro dos processos analíticos); é o que pode ser praticado (o que é posto em prática e, ao mesmo tempo, tudo aquilo que pertença à ordem do possível); e é o que pode dar passagem, transitável (função primordial do tratamento).

Assim, a instituição iniciada por Oury se configurou como um grande espaço dramático de tratar, onde cada coisa que se passa pode ser compreendida da perspectiva da constelação de determinado conjunto de coisas que se penetraram, se interferiram, se atravessaram, se articularam. Na companhia de Felix Guattari, ele compôs e sustentou uma atmosfera institucional que favorece as mais inusitadas combinações, misturando os elementos mais heterogêneos. Pensionistas, ateliês, ócios, patologias, projetos, ritmos, delírios, atividades, psicanálises, refúgios, refugiados, teses, fracassos, trabalhadores, viagens, animais, improduções, bricabraques em múltiplas dimensões.

Jean Oury começou a tomar contato com esta vida institucional, ainda recém-formado, através de Francesc Tosquelles, no hospital psiquiátrico de Saint-Alban, em 1947. Com Tosquelles, cuja amizade se estendeu até a morte deste, em 1994, conheceu tanto o cotidiano vivo da instituição quanto foi introduzido à fenomenologia alemã – Hermann Simon, Erwin Straus, Leopold Szondi – e a Jacques Lacan. Com Lacan, cuja relação se estendeu até a morte deste, em 1981, fez sua única análise, interminável. E participou do movimento lacaniano, permanecendo fiel leitor de Lacan mesmo depois de se afastar da Escola.

Podemos dizer que este foi seu casal parental: Tosquelles e Lacan. A abertura multiplicadora que Tosquelles inspirou forneceu as condições para estar com a loucura e com a psicose. A partir da possibilidade deste convívio, Oury desenvolveu sua sensibilidade minimalista, delgada, ou melhor, sua atenção ao que é impreciso e precário, além de sua acuidade para o fragmentário, isto tudo determinando e sendo determinado por sua leitura de Lacan.

Trabalhar com um paciente na clínica de La Borde, anos a fio, até que a correspondência de um sorriso aconteça e entender nisto algo muito significativo na direção da “cura”, defender a significância dessa manifestação aparentemente irrelevante por tratar-se de algo simples demais ou inútil demais, confrontar esta importância com a incompreensão da burocracia médico-estatal que se orienta pelos sucessos da inclusão social, protegê-la acusando a industrialização da psiquiatria e da psicanálise, isto tudo corresponde, em Oury, a um pensamento rigoroso a respeito do inconsciente, da sexualidade e do infantil.

Efeito de seu mergulho com a loucura e com a psicose, Oury preferiu pensar o desejo em sua emergência, as mínimas coisas, a análise que desdobra mais do que a construção que resume. Preferiu a parcialidade mais do que a totalidade e, ao mesmo tempo, não privilegiou o corte em detrimento da interpretação. Preservou, sempre, um quantum de indecisão. Foi amigo do precário, tratando o precário com seriedade e humor. Afastou-se do lacanismo tão logo entendeu que o que fora movimento tornou-se repetição, o que fora troca arriscada das experiências tornou-se recitação asseguradora da dogmática.

“Com frequência, eu dizia que a fim de evitar uma estabilidade de concreto, um grau zero de instabilidade, vivia como se fosse durar cinco mil anos ao mesmo tempo em que, a cada noite, estava pronto para fazer a mala e partir”[4]. Então, tendo acreditado ao longo de todos estes anos no precário, vivendo na seriedade do precário, somente ontem, depois de cinco mil anos que tiveram início em 1947, ontem, Jean Oury fez sua mala e partiu.
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[1] Psicanalista e acompanhante terapêutico. Participante do Curso de Introdução e do Estágio Assistido em Acompanhamento Terapêutico, professor do curso de especialização em Psicopatologia e Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da USP.
[2] Telles, Lygia F. “A estrutura da bolha de sabão” in Os Melhores Contos Brasileiros de 1973. Porto Alegre: Ed. Globo, 1974, p. 113.
[3] Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Ed. Objetiva, 2001.
[4] Oury, Jean, Il, donc. Vigneux, Ed. Matrice, 1998, p. 74.



 
 
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