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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    29 Junho 2014  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

UM OLHAR DE PERTO PARA A CRACOLÂNDIA:
Entre fumaças veem-se rostos.


SOLANGE MARIA SANTOS OLIVEIRA [1]


O centro da cidade de São Paulo tem sido, ao longo da história, colo acolhedor de diversidades. Nos últimos tempos, essa marca tem assombrado parte dos cidadãos da capital. Usuários de drogas se tornaram um ícone da região, propiciando palco de confronto e de intolerância por diversos atores sociais: os moradores da região, os comerciantes, os profissionais da rede de apoio e de saúde com seus dispares olhares. O endereço é muito definido, mas passou a ser nomeado pelo o que exala dali: a fumaça, o crack, que impõe visibilidade para aqueles que são vistos como dejeto pelo tecido social: a Cracolândia.

Percorrer o quadrilátero da Cracolândia parece um retornar aos tempos idos da história, uma fotografia de filmes sobre a Idade Média. Num primeiro olhar parece sobreviver ali o que há muito foi excluído da cidade, um resquício de outros tempos da história, outras organizações e outras formações de cidade. A mídia se refere aos zumbis, ao uniforme da cor. Visto de longe, só se enxerga o acinzentado da vida.

Os corpos desses homens e mulheres, jovens e adultos nas calçadas da cidade impõem uma visibilidade que a comunidade já não tem como renegar. Pessoas fora do lugar, na rua, impõem a ação do Estado, suposto responsável por oferecer cuidado e atenção à vida. Diversas tentativas de implantação de políticas públicas estaduais, municipais, abordagens de ONGs que intentam trabalhar com o tema da redução de danos, de grupos religiosos, percorreram esse espaço, sem tampouco trazer mudança significativa ao cenário.

No último ano, a prefeitura da cidade de São Paulo implantou uma nova abordagem desse complexo fenômeno: o Programa De Braços Abertos, uma política pública de abordagens dos usuários de drogas da região da Cracolândia que deixa, nas palavras do prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, “... de pensá-los como objetos de saúde ou de segurança pública, e sim como sujeitos capazes de estabelecer um contrato com o poder público, desde que tivessem respeito do poder público.”
 
O programa se propõe a abordar o usuário de droga dentro do contexto do uso e do que o levou a usar a droga. Prevê a oferta de moradia em hotéis da região e abrigamento, tratamento de saúde, alimentação no Bom Prato, atividade ocupacional, capacitação profissional, trabalho e renda.

Apresentarei um olhar que se dá pelo âmbito da oferta de testagem para HIV na zona da Cracolândia. As políticas públicas ligadas ao tratamento e prevenção da Aids, desde os seus primórdios, abraçam as causas da exclusão, acolhendo as mais diversas situações de discriminação. Ao longo dos anos de epidemia de Aids aprendeu-se que prevenção não está apenas associado a acesso e  uso do preservativo, e que as condições de vida e a subjetividades dos sujeitos precisavam ser consideradas, escutadas.

Construir estratégias de prevenção em DST/Aids implica em poder compreender e escutar a complexa trama das condições da vida social e singular de um sujeito ou grupo que o torna vulnerável às DST.  Será implicando o sujeito em suas questões que este poderá aceder à proteção de sua vida. Sabe-se que ao ocupar o lugar de quem detém a solução para o sofrimento do outro, se propicia uma enorme chance de inviabilizar a aproximação.

Assim, sob a ótica de que esse aglomerado de humanos denuncia as mazelas da cultura, anuncia um pedido de inserção na vida cultural e reafirma a posição dos sujeitos de direitos, o CTA Henfil, unidade de saúde de prevenção as DST/Aids, passou inicialmente um mês na Cracolândia ofertando testagem e o conhecimento do status sorológico a quem aceitasse.

Relatos de alguns frequentadores

Vejamos alguns breves relatos capturados na intervenção de oferta de testagem realizada pelo CTA Henfil, cuja estratégia garante apenas uma única oportunidade de encontro:

Marcos, morador da grande são Paulo, trabalhador da região central, bêbado, quer fazer exame; no dia anterior enterrou seu filho, naquele dia foi trabalhar e não aguentou, embriagado de álcool e de dor perambula pela Cracolândia.

Flavia, usuária antiga de crack, aderiu ao projeto; está morando com seu atual companheiro em um dos Hotéis do Projeto, sai do “fluxo” (aglomerado em que se fica usando ou esperando o crack) para realizar o exame, descobre que é soropositiva: “Eu sabia!”; seu companheiro saiu com outra e “todo mundo diz que ela tem Aids”. Iniciar o tratamento ficará para amanhã. Hoje recebeu um dinheiro e tem que resolver outras coisas. “Eu vou ali e volto”.

Carla aderiu ao projeto, está trabalhando, morando no Hotel. Não quer mais usar droga. “Eu quero voltar para casa ... Eu tenho duas filhas adolescentes, os pais tem que dar o exemplo”. No entanto, quando perdeu o emprego e o marido, sua mãe não pode ajudá-la. “Mas agora vai dar”.

Anita: “eu sou garota de programa, e pago minha moradia e não uso crack. Por aqui dá pra trabalhar...” Está junto com um rapaz:  “esse quer namorar, mas eu não quero namorar....”

Paulo: “com 12 anos eu fui morar com uns amigos, sai de casa, meu padrasto não me aceitava... Minha mãe, eu não tenho raiva dela, o que ela ia fazer, tinha meus irmãos pequenos...”

Carlos, egresso do sistema penitenciário, entrou por ter roubado CD: “eu não sei, eu tinha uma mania de roubar CD”. Nessa época não usava crack. “Sai, não tinha pra onde ir, eu vim para cá”. “Eu não posso voltar, eles (a família) não podem me ajudar, eu não posso voltar, o que vou mostrar? ... Quando se erra assim não dá pra voltar”. Tinha a esperança de ser o filho bem sucedido...

Jonas: “meu pai é um homem rígido, eu ia à igreja. Mas quando fiz dezoito anos, disse pra ele que podia ser de outro jeito. Não seguia o que ele queria. Meu pai, um dia, disse: “Filho, agora você tem que se assumir sozinho”. Eu estava revoltado e não seguia mais o que ele determinava, era evangélico. Eu quis ser livre...”

Mario, saído do “fluxo”, anuncia: “Rápido, não tenho tempo”.

Miro mora no interior, 18 anos, olhar amedrontado de criança que fugiu de casa, brigou com os pais, pois não se sente aceito; munido de dúvidas sobre sua orientação sexual saiu de casa. Há cinco dias em São Paulo. Não sabia como voltar, como encarar os pais. Flash de uma história que marca os primórdios da estadia na rua, compartilhada por tantos outros, que agora já relatam seus acertos e erros, suas impossibilidades de voltar pra casa.

Antonio, aos 13 anos, no sertão da Paraíba conheceu com os amigos e com o rock a maconha. “Fiquei viciado, queria fazer presença para os amigos de infância, bancar para os amigos, aparecer”. “Para não malhar fora, fui malhar dentro de casa. Comecei o erro dentro de casa, depois fui errar fora. Mas já me toraram[2], me colocaram para fora. Minha mãe mesmo que me colocou pra fora”. “Eu fui, fiquei na rua.” “Gosto de conhecer os lugares”. Há seis meses em São Paulo, já conhece tudo. Aderiu ao projeto: “vou ver um emprego ligado ao sistema da prefeitura, de ajudante de cozinha; não sei o que vou fazer, se vou lavar prato, se vou limpar o chão. Vamos ver segunda feira o que vai ser”.

De perto todos são normais

Contrapondo Caetano Veloso, pode-se dizer que de perto todos são normais. A qual normalidade me refiro: a da humanidade. De perto, a Cracolândia aparece como o lugar da resistência, dos sobreviventes da violência de uma vida que não oferece pertinência. Da vida arriscada. Perambulam por ali pessoas vindas de diversas cidades do Brasil, de diferentes situações de vida, cuja marca principal é o desamparo nas condições emocionais e sociais da vida.
 
Num primeiro olhar, ali se materializa a aparente cara da morte, o término de seres riscados da vida, que estampa a cara inumana do que seria o lixo social, aquilo que é para ser extinto. Mas, como os lixões, restos do consumo desvairado, não têm destino e se impõem ao olhar, a céu aberto. Ao se firmar os olhos, pode-se ver que ali, na Cracolândia, há um outro lugar, o da vida na rua.
 
Habitam ali homens, mulheres, jovens e velhos, heterossexuais, gays e travestis, cujas  narrativas de vida estão marcadas pelas consequências históricas da exclusão social, da falta de políticas públicas de moradia, de emprego, de inserção do egresso do sistema penitenciário, etc. Ou ainda, marcados pela falta de contornos de acolhida no mundo vivido por serem como são. Estigmatizados por se constituírem como diferentes do que a sociedade do capital definiu ser viável oferecer como pertinência. Jovens que não se encontram, quando os signos do trabalho não se impõem como forma de inserção social, como marcas identificatórias. Não encontram respostas aceitas para construir marcas definidoras de um lugar social validado.
 
É um fato importante observar que muitos ali conheceram a Cracolândia ao sair do sistema penitenciário. E a entrada nele resulta de outras contravenções, nem sempre ligadas à droga. No momento da liberdade, sem política pública de acolhida, encontram a Cracolândia.
 
Numa impulsividade descabida, esses humanos parecem obstinados a fazer dali o lugar de acolhida de suas existências, ali onde nada de humano parece subsistir ao olhar desavisado do cidadão que transita pelo centro. Tentativa de lidar com grandes rupturas - muitas vezes associadas à perda da primeira moradia, da casa dos pais, parentes. Ao desencontro do que se esperava deles e do que podem oferecer. Desencaixados de um mundo civilizatório que exige um padrão de inserção.
 
De cachimbada em cachimbada, entre fumaças emergem lampejos de vida, pode-se ver seus rostos e ainda enxergar um semelhante que não pode ser tratado como dejeto. Estes ali, nas ruas das cidades, resistem. Perseveram: a rua, visibilidade definitiva ou invisível aparência apartada da cultura. Já que humanos, estão excluídos de formas de entrada no grupo social. Algo do mal-estar na cultura, sinalizando o custo da socialização no mundo urbano da sociedade capitalista.

Em outros tempos a rua foi um espaço de socialização, possibilidade que se esvaiu com os efeitos do crescimento urbano. Requer que se possa olhar a rua com positividade e levar a negatividade do olhar para as condições da rua. Assim, é possível acompanhar o esforço desses humanos apartados, desamparados, que insistem em sobreviver longe de qualquer rede própria do pacto social. Entender como um protesto, buscando arrancar o reconhecimento primeiro, que ecoa como último, de que são humanos.
 
Interessante ainda é observar o repetitivo enunciado de busca de liberdade ao relatar a vida. Procuram a liberdade, algo que não sabem nomear. Mas associam a uma ideia de que se pode viver com menos imposições. Liberdade do jugo do pai, da família, da miséria da vida... Querem a liberdade de nada retribuir para que se instaurem na vida social. Ilusão. O que se evidencia é um aprisionamento, um sinal de uma impossibilidade de marcar um lugar, de se fazer presente na vida social de formas próprias e, portanto, ocupar outras posições.
 
Então, mais um colorido podemos atribuir à Cracolândia, acolhedora de diversidades, de transgressões. Uma possibilidade: instalar-se na rua/abrigo, colo acolhedor do desconforto. Paradoxalmente, se vislumbra por ali um caminho, uma possibilidade de vida.
 
A Cracolândia, com seu caldo de humanos aparentemente fora da órbita dos ditos da cultura, explicita os remanescentes dos processos civilizatórios. Em toda sociedade, nos diversos momentos históricos, advindos desses processos surgem resíduos. Haverá sempre algo de fora, uma suspensão. E se constitui como um enigma a possibilidade de lidar com isso, sem que se imponha a esses resíduos um atributo de negatividade: não enxergá-los como o resto, o dejeto, e ultrapassar esse sinal, decifrá-los.

O perambular dos profissionais
    
Marta, olho no olho, corpo a corpo diz: “Não vou mentir, eu já matei. Era ela ou eu.” Eu penso: não vou mentir, de fato eu posso ouvir o que eles têm a me relatar? Escutar aquele que vive no limite da vida na cultura, que experimenta diariamente a brutalidade da ausência de escolhas entre viver ou morrer?
 
Diversos profissionais - psicólogos, enfermeiros, agentes de proteção social, assistentes sociais, agentes comunitários – também povoam a Cracolândia, circulam com seus coletes de profissionais de vários projetos. São jovens, na maioria recém-formados, na busca de inserção profissional, na construção de parcerias, na abordagem dos usuários, na atenção à saúde integral.

Há a vontade política colocada na construção dos projetos, que assinala para a ruptura com o dito de que não “há o que fazer”, de que só seria possível concretizar o apartamento da sociedade, a confinação. Viabiliza-se que aqueles ditos zumbis enxerguem, no olhar do outro, que são humanos.

Há a força do ideal desses jovens profissionais, mas solidificar transformações requer a construção de consistente rede de olhares, de intervenções. Talvez o processamento dessa rede, mais uma vez, seja o grande desafio. Há uma pergunta que pode fazer o trilho para essa atividade. Como trabalhar com eles levando em conta e buscando operar com a implicação histórica desses humanos no curso de suas vidas? Não estão ali sujeitos que podem ser re-implicados na condução de seus destinos?

Observando o perambular dos profissionais e sem entrar na discussão da realização do projeto, pergunto-me se os braços, de tão abertos, já não podem abraçar. O desafio é que ao abrir os braços possa-se abraçar e não deixar escapar os escorregadios sinais de desejo de mudança. Sustentar num encontro desencontrado todas aquelas expectativas...

Ao final: ainda fragmentos

Ao concluir o mês de oferta de testagem pelo CTA Henfil, consideramos necessário ampliar o tempo de oferta; nos deparamos também com uma possibilidade de sermos mais um no conjunto dos abraços oferecidos, e nos questionamos se podemos tentar abraçar a incógnita, de qual a diferença que ali se pode processar.

Marcelo, parado, olho no olho, ao final de nossa conversa, com o resultado do exame na mão me diz: “ Então, é  só isso, não é?” Pergunto-lhe sobre o que mais procura. Parece surgir um encontro num desconcerto, vivido por nós dois.
 
Matusalém, admirado, diz, ao finalizar a conversa. “Faz muito tempo que eu não conversava”.
 
Disposta a ouvir aquilo que se anuncia, digo-lhes: “Então podem voltar. No próximo mês estarei aqui todas as sextas feiras”.

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[2] Significante usado no Nordeste, torar equivale a foder. É também um verbo: fazer em pedaços, partir, cortar.




 
 
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