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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    29 Junho 2014  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

DOSSIÊ CRACOLÂNDIA


EQUIPE EDITORIAL DO BOLETIM ONLINE


A região do centro da cidade de são Paulo hoje conhecida como Cracolândia – designação dos anos 90 referida ao surgimento do crack e que viria para ficar – tem um longo histórico de desenvolvimento e concentração do intenso tráfico de drogas e de prostituição[1]. O apelido popular assinalou  uma inflexão na ocupação da área ocorrida nestes anos e, como veremos, associou desde o início o consumo de crack à periculosidade.

Apesar de sua histórica ocupação ligada à delinquência, a região já teve seus dias de glamour. Esta que se tornaria uma das áreas mais degradadas da cidade coincide parcialmente com a famosa Boca do Lixo[2], que nos anos 60 foi o berço do cinema marginal de Julio Bressane, Carlos Reichenbach e Rogério Sganzerla, tendo abrigado produtoras e cinemas até os anos 80. Nos anos 1920 e 1930 a região já se caracterizava como um pólo da indústria cinematográfica com a instalação de empresas como a Paramount, Fox e Metro. Atraindo distribuidoras e outras empresas do ramo cinematográfico, se tornaria um reduto do cinema independente brasileiro, desvinculado dos incentivos governamentais. Na década de 70 o cinema autoral começou a dar lugar à produção dos filmes de baixo custo e forte apelo sexual conhecidos como pornochanchadas.

Nas décadas de 1950 e 1960 a vocação cinematográfica convivia com uma marginalidade e criminalidade talvez mais românticas, anterior à organização “dura” do tráfico de drogas. É o que se vê no filme Boca do Lixo (2009), de Flávio Frederico, que segue a trajetória de Hiroíto[3], o “Rei da Boca”, que dominou o tráfico na área através do suborno de policiais, da manutenção de uma rede de “capatazes” e prostitutas fiéis e alianças com traficantes rivais. Frequentador desde a adolescência dos bordéis da região e oriundo da classe média, optou pela marginalidade após o assassinato de seu pai (do qual foi acusado).

O filme mostra um universo onde as prostitutas, sua clientela de boêmios, embriagados, delinquentes e drogados, e seus cafetões - em geral chefes do tráfico – convivem não sem alguma violência, mas respondendo a uma espécie de ordenação. Os personagens da Boca fazem alianças, traem, sobrevivem e às vezes enriquecem, mas os “negócios” e seus interesses misturam-se aos seus afetos e paixões. Mostrando a atmosfera desta grande “boca de fumo” que também ia se configurando como uma referência existencial para andarilhos e desinseridos sem rumo, o filme ajuda a entender como paulatinamente surgiria a Cracolândia. Intencionalmente a realidade atual se insinua em seu final, numa cena em que os personagens da época perambulam pela região tal como é hoje, perplexos diante da miséria, da sujeira, dos letreiros kitsch e dos “viciados em crack”.

Como Solange Santos indica em seu artigo, o nome Cracolândia, que não deixa de designar também a população que a ocupa, revela a operação de redução  realizada - seja pelos dirigentes políticos, pela mídia ou pelo senso comum - de um problema que tem raízes muito mais complexas para a questão do consumo ou a dependência de uma droga específica, o crack. Mesmo deixando de lado a condição de abandono e de miséria socioeconômica dos seus ocupantes e tomando apenas o recorte do abuso ou dependência de substâncias, levantamentos mostram, por exemplo, que o álcool é um problema mais frequente e generalizado do que o crack. A palavra Cracolândia portanto desloca o sentido e a razão de ser dessa aglomeração humana e, ao mesmo tempo, condensa a fumaça lançada sobre aquilo que não se quer ver ou compreender: o fato de que o “centrão”, o coração da cidade seja o ponto de encontro - e às vezes “lar” paradoxal - que reúne todo o tipo de deserdados, inadaptados e exclusos escancara a céu aberto as suas mais cruéis contradições.

A partir de 2005 a prefeitura começa a intervir neste espaço através de uma estratégia repressiva, aumentando o policiamento local e fechando hotéis e bares ligados ao tráfico e à prostituição. Centenas de imóveis declarados de utilidade pública são desapropriados a fim de atrair investimentos privados e empresas do setor imobiliário.
 
Em 2007 é lançado o programa chamado Nova Luz, que prometia promover a requalificação da região através da renúncia fiscal do IPTU como estímulo a reformas das fachadas. Mas a recuperação de edifícios, praças e avenidas não se acompanharam de intervenções voltadas aos grupos vulneráveis da região: sem–tetos são retirados ou expulsos sumariamente, catadores de lixo reciclável têm seu trabalho dificultado e usuários de crack ou outras drogas, impedidos de se reunir no local, são impelidos a perambular sem rumo por bairros vizinhos. Entre eles, muitas crianças e adolescentes. O programa revelava assim seu caráter higienista.

Em 2012 se inicia a Operação Centro Legal, de combate ao tráfico na região e assistência aos usuários de crack, principalmente através da internação compulsória. Já no primeiro mês microcracolândias se espalhavam, segundo a PM, por 27 bairros, entre eles a Barra Funda, Higienópolis, Santa Cecília e Luz. Nesta época, um relatório do governo de São Paulo contabilizava a internação de 155 usuários, a prisão em flagrante de 191 pessoas e a apreensão de 63 toneladas de drogas (somente 3 de crack).

Ao oferecer a esta população uma atenção que vai além de sua caracterização como “viciados”, delinquentes e/ou criminosos, ao reconhecer seu direito cidadão à moradia e ao trabalho, adotando um olhar interdisciplinar baseado na noção de redução de danos, que não toma a abstinência como critério de recuperação; ao oferecer uma escuta que se pretende mais singular a cada sujeito, o programa Braços Abertos, com suas eventuais contradições, representa uma inflexão - a ser comemorada - no modelo de intervenção que caracterizou outras iniciativas.

Links interessantes:

Crack é usado por miseráveis porque é barato, de Maria Inês Nassif em 17/01/2012: http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Crack-e-usado-por-miseraveis-porque-e-barato%0D%0A/4/18370

Cada táuba que caía não doía no coração, de Antonio Lancetti em 16/01/2014: http://www.brasil247.com/pt/247/artigos/127216/Cada-táuba-que-ca%C3%ADa-não-do%C3%ADa-no-coração.htm

Para deixar de ser cracolândia, de Ivan Longo em 24/01/2014: http://revistaforum.com.br/digital/131/para-deixar-de-ser-cracolandia/

Pesquisadores fazem manifesto contra ação policial na Cracolândia, de Giovana Girardi em 29/01/2014: http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,pesquisadores-fazem-manifesto-contra-acao-policial-na-cracolandia,1124467

Prefeitura instala cercadinho na Cracolândia para tirar usuários, de G1 São Paulo em 14/05/2014:
http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/05/prefeitura-instala-cercadinho-na-cracolandia-para-tirar-usuarios.html

Usuário rejeita cercadinho montado na região da cracolândia, de Aretha Yarak em 15/05/2014: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/05/1454609-usuarios-rejeitam-cercadinho-montado-na-regiao-da-cracolandia.shtml

Fotos sobre Cracolândia, do jornal O Estado de São Paulo em 2014: http://topicos.estadao.com.br/fotos-sobre-cracolandia

Drogas na escola: prevenção, tolerância e pluralidade, de Beatriz Carlini-Cotrim In Drogas na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, 1998: http://nute.ufsc.br/bibliotecas/upload/drogas.pdf

Jovens, ricos e traficantes, de Bruno Abbud em 31/05/2014:
http://gq.globo.com/Prazeres/Poder/noticia/2014/05/jovens-ricos-e-traficantes.html

Boca do lixo: quando a cracolândia teve glamour, de Denise Dalla Colletta em 27/10/2010:
http://colunas.revistaepocasp.globo.com/centroavante/2010/10/27/boca-do-lixo-quando-a-cracolandia-teve-glamour/ 

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[1]Imediações das avenidas Duque de Caxias, Ipiranga, Rio Branco, Cásper Líbero e a rua Mauá.
[2]Bairro da Luz, quadrilátero que inclui a rua do Triumpho e adjacências.
[3]Interpretado por Daniel de Oliveira.


 




 
 
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