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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    30 Setembro 2014  
 
 
ESCRITOS

À BEIRA DO TRAMPOLIM


CRISTINA BARCZINSKI [1]



Algumas vezes ir ao teatro realmente representa uma experiência marcante, quando somos profundamente afetados pelo que assistimos. Christiane Jatahy, diretora de E se elas fossem para Moscou?, peça criada a partir de As três irmãs de Tchecov, nos convida a mergulhar neste misto de realidade e ficção, passado, presente e futuro que nos mantém num suspense emocionado.

São duas as versões do espetáculo, que acontecem simultaneamente em duas salas, numa conversa ininterrupta. A cada apresentação, os atores interpretam e filmam em uma das salas boa parte do que se passa em cena, e a filmagem é editada ao vivo pela diretora e exibida em outra sala [2].

Na versão filmada, assim que aparecem as três irmãs na tela, cada fala e olhar trocado com o espectador são verdadeiros e impactantes. Como não acreditar na vivacidade angustiada de Irina, na desesperança e carência de Olga e na frustração raivosa de Maria? O aniversário de um ano da morte do pai, de quem se sabe muito pouco, o aniversário de Irina comemorado num arremedo de festa e os planos de viagem. Moscou, destino escolhido por Irina, é qualquer lugar que represente uma alternativa, uma mudança, um mergulho na piscina do futuro – na peça original, é a cidade da infância, quando pai e mãe ainda eram vivos. Olga não acredita mais em um encontro amoroso e se conforma em seu papel de cuidadora e mulher invisível ao olhar dos homens. Maria busca a paixão, o arrebatamento, exaspera-se com o casamento precoce com aquele que julgava “o homem mais inteligente do mundo”. Irina, a caçula, luta ferozmente para se libertar da Melancolândia familiar, quando anuncia, cheia de si: meu tinder está bombando!

A oscilação entre os momentos de carinho e cumplicidade e aqueles carregados de críticas, ciúmes e ressentimento entre as irmãs envolve o espectador e embaralha os tempos. Como não se comover com a tentativa patética de Olga de desfiar um repertório de canções que não correspondem ao acompanhamento do violonista? A cena deste diálogo impossível entre voz e violão é de uma comicidade perturbadora, assim como quando a mesma Olga tenta manter-se no papel de uma eficiente dona de casa, distribuindo salgadinhos e sucos na platéia. Irina se corta, troca mensagens sinistras pelo celular com o namorado Solioni e se exaspera ao ter este segredo exposto pela irmã Maria. Esta encontra um amigo de infância e se lança numa história de amor sem futuro, para fugir de sua vida odiosa.

Num dado momento, Maria sugere às irmãs pensarem em como seria se a primeira metade da vida fosse apenas um ensaio e a segunda metade representasse uma chance de recomeço, mantendo, porém, o conhecimento acumulado até então. Irina não concorda com o exercício inútil e acredita que as pessoas deveriam na verdade aprender com a vida e, mesmo sem voltarem ao início, construírem caminhos para si. Compara estes momentos mutativos a um salto de trampolim, onde o passado nos impulsiona a buscar novos sonhos e utopias.

O mergulho na piscina, num ritual liberador para que Irina, Olga e Maria possam seguir em frente, atravessando um luto que precisa ser superado - o objeto perdido deixa marcas que podem inaugurar sentidos. Num belo momento, as irmãs entoam uma canção em francês ensinada pelo pai, falando da solidão de uma menina que deseja, como todos os outros meninos e meninas, um dia encontrar o amor e, assim, perder o medo do amanhã.

As três, juntas, no ponto de interseção entre os tempos, abrem as cortinas da sala 2 do SESC Belenzinho e, lá fora, a cidade brilha – nunca a Radial Leste pareceu tão bela.

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[1] Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise, integrante da equipe editorial deste Boletim e do grupo de trabalho Sexta Clínica.
[2] Clique aqui para assistir a um trecho de vídeo: http://christianejatahy.com.br/project/moscou#video




 
 
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