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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    30 Setembro 2014  
 
 
ARTE

AS PINTURAS NEGRAS DE GOYA


ELAINE ARMÊNIO [1]


Um domingo, lendo o jornal, deparei-me com uma resenha e a entrevista com Todorov acerca de seu último livro lançado no Brasil: Goya à sombra das luzes. Nessa entrevista ele comenta sobre as pinturas negras de Goya.


Estas pinturas que eu não conhecia, denominadas desta forma, despertaram em mim muita curiosidade e considerei-as muito instigantes: foram realizadas na parede de sua casa recém-adquirida e nenhuma carta de Goya ou escrito da época se referem a elas; também não há registro de nenhuma menção por parte dos seus amigos e artistas contemporâneos, que pareciam desconhecer a existência das mesmas.

São pinturas que trazem, na forma de fazer e na temática, uma radicalidade frente às próprias obras de Goya e da arte da época. Obras que abrem caminho para as vanguardas artísticas que iriam surgir e ressoam ainda hoje no contemporâneo, como é o caso do campo extenso e vazio de uma destas telas onde só aparece em um canto, em pequenas proporções, a cabeça de um cachorro.


Muitos destes elementos figuraram aos meus olhos um paralelo com o que eu vinha pesquisando sobre os últimos quartetos do Beethoven. Nestes últimos trabalhos, o compositor abre inéditas possibilidades, estabelece rupturas mais intensas com as formas de composição do seu tempo e da sua própria obra. São trabalhos radicais, obscuros, contraditórios, irregulares, com nuances insuspeitas, em descompasso com o seu tempo, irreconciliáveis, mas que apontavam para a modernidade da música. Esta irrupção de algo novo na maturidade do artista é surpreendente e foi conceituada por Adorno como estilo tardio. Eduardo Said, no livro intitulado Estilo tardio, desenvolve este conceito analisando o trabalho de outros artistas: Lampeduza, Jean Genet, Glenn Could e outros.


É o caráter surpreendente destes trabalhos de Goya, realizados nos últimos anos de sua vida – então com 73 anos de idade - que evidencia e traz novos ângulos para pensar a questão, apaixonante para mim, sobre o fazer artístico e a criação.

Encontradas na casa de Goya, as pinturas negras foram realizadas entre 1920 e 1923. Foram pintadas diretamente nas paredes, e são denominadas negras pelo predomínio desta cor. Em sua obra, figurações do terrível já estavam presentes: multidões em transe, doentes grotescos, bruxas, loucos, prisioneiros e mais.

Nesta série no entanto, o que chama a atenção é a concentração e intensidade do horror. São 14 painéis de grandes dimensões pintados de uma forma brusca, sem muito acabamento.

A casa – ele a adquire em 1819 – é uma quinta nos arredores de Madri, denominada Quinta del sordo. Ao iniciar as reformas da mesma, Goya fica muito doente, quase morre, e é cuidado por um médico chamado Arrieta. Fica francamente agradecido aos cuidados generosos deste médico que salvou a sua vida e pinta como reverência a ele um quadro denominado Goya curado por el doctor Arrieta. O quadro é muito bonito e pungente, figura o Goya francamente doente, desvalido e entregue aos cuidados do médico que o ampara firmemente e lhe oferece o remédio. E ainda o pintor escreve dentro do quadro uma frase extensa: “Goya, em gratidão a seu amigo Arrieta pela habilidade e pelo grande cuidado com que salvou sua vida em sua doença grave e perigosa, sofrida no final de 1819, aos 73 anos de idade. Pintou-o em 1820”.

Goya tinha vivido outro episódio de uma doença muito grave em 1792, aos seus 46 anos e que deixou como sequela a surdez. Não se sabe exatamente a natureza desta enfermidade. Na época ele estava em Sevilha e ficou abrigado na casa de Sebastian Martinez; foram precisos vários meses para conseguir debelar a doença. Em uma de suas cartas relata que está há dois meses de cama com cólicas dolorosas. Depois de mais dois meses seu amigo escreve que ele continua acamado e em péssimo e lastimável estado. Mais um tempo decorre e ele descreve o que se passa com o pintor: os zumbidos na cabeça não diminuíram, mas os outros sintomas melhoraram - já mantém o equilíbrio, passou a enxergar bem e pode subir e descer escadas.

Esta primeira doença e a consequente surdez promovem uma mudança muito significativa no seu trabalho pictórico, de tal ordem que Todorov vai dizer que ele se transforma de um pintor que tinha talento e ambição, em um gênio da pintura.

Pinta então 11 telas que não precisaram de encomenda, pinta como expressão de seus interesses, e o dramático e o sofrimento se desenham nestes novos trabalhos. Faz várias pinturas sobre a tauromaquia, desde a preparação do touro, a morte deste e acidentes com os toureiros. E faz telas de situações terríveis: O pátio dos loucos, Assalto à diligência, Interior de prisão, O naufrágio, O incêndio, O pedreiro ferido.

Goya trabalhava para o rei, no início fazia cartões para as tapeçarias dos palácios. Seus motivos eram amenos e mais alegres: festas populares, situações do cotidiano. O que apresentavam de novo é que os personagens destes quadros eram pessoas do povo.

Depois da doença também inicia suas séries de gravuras que faz circular entre amigos e trazem vários elementos de crítica, de olhar arguto sobre a vida, as pessoas e o mundo. Fará gravuras satíricas, povoadas de bruxas, diabos, corujas, charlatões, velhice, máscaras, caricaturas, figuras à margem da sociedade: prostitutas ou bandidos. E, para Goya, a máscara traz mais a verdade do sujeito do que o próprio rosto, que considera enganador. Há crítica social nestas gravuras, mas ele afirma que não está retratando pessoas específicas, e sim a loucura comum, o vício e o erro. O pintor escreve em 3ª pessoa no diário de Madrid: “... ele selecionou entre as inúmeras fraquezas e insensatezes que podem ser encontradas em qualquer sociedade civilizada e entre os preconceitos comuns e as práticas enganadoras e capciosas que o costume, a ignorância e o egoísmo tornaram usuais, esses assuntos que ele sente que são o material mais adequado à sátira e que ao mesmo tempo estimulam a imaginação do artista” (Hughes, pg. 219).

Esta primeira série é chamada de Caprichos e um dos caprichos mais importantes tem uma legenda dentro da gravura: “O sonho da razão produz monstros”. Apresenta um homem dormindo sobre uma escrivaninha cercado por aves noturnas, corujas, morcegos e também um gato enorme.

Na série Desastres da guerra, todo o horror da guerra é pintado, a brutalidade, a violência, os estupros.

As pinturas negras radicalizam ainda mais a sua produção até então, e acontecem, como já disse, quando ele está mais velho e depois da segunda doença muito grave. Um dos quadros impressionantes desta série - e bastante conhecido - é Saturno, uma figura gigante comendo uma pessoa que é muito menor, com sangue escorrendo na boca. Tem a figura da velhice, El Aquelarre (A reunião de bruxas ou O grande bode), A peregrinação de Santo Isidro.


Estes dois últimos temas já tinham sido pintados por Goya 25 anos antes, mas aqui há uma mudança significativa: seres sobrenaturais e bruxas eram retratados antes como um gênero fantástico, mas nas pinturas negras, segundo Todorov, devem ser pensados como o vivido pelo pintor, que desceu ao “inferno”, e tem estas imagens realmente a habitar sua alma, ou seja, deixam de ser fantásticas para serem fantasmáticas. “Dessa maneira, o pintor antecipa a evolução do fantástico no século XX, quando esse gênero deixará de opor o real ao imaginário para revelar a estranheza do próprio real. Goya já não pinta senão suas fantasias – mas é que estas conduzem à verdade e ao real”. (Todorov, pg. 215)

As pinturas negras estavam distribuídas em dois grandes pavimentos da casa.

Foram passadas para tela em 1874 e hoje estão todas no Museu do Prado.


Referências bibliográficas:
Todorov, Tzvetan. Goya à sombra das luzes. São Paulo, Companhia das Letras, 2014.
Hughes, Robert. Goya. São Paulo, Companhia das Letras, 2007.

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante da equipe editorial deste Boletim Online.




 
 
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