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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    30 Setembro 2014  
 
 
ENTREVISTA

HENFIL, POETA DA MULTIDÃO


Entrevista com Ivan Cosenza de Souza, o filho do Henfil



SÍLVIA NOGUEIRA DE CARVALHO [1]



Entre seus compromissos paulistanos do final de agosto de 2014 – a preparação da exposição Sua excelência o futebol, por Henfil, que ocorrerá em outubro na Caixa Cultural e a presença na Bienal Internacional do Livro de São Paulo – o produtor cultural Ivan Cosenza de Souza abriu espaço para participar da primeira fase do evento Ditadura Civil Militar no Brasil: o que a psicanálise tem a dizer, ocorrida em 30/08. Foi nesta ocasião que, acompanhado de sua esposa Alessandra, Ivan conversou com a equipe editorial do Boletim Online a respeito da obra do Henfil.





Boletim Online: Em um trabalho de 1905 [2], Freud demonstrou que a produção do prazer humorístico surge de uma economia de gasto em relação ao sentimento. Ou seja, o que se passa conosco diante de uma anedota é a possibilidade de exprimir, por intermédio de um meio econômico, suave - o riso - os problemas que vivemos.

Ivan de Souza: O jornal cômico foi um alento; esta expressão fala dessa força dos desenhos e das mensagens. Minha tia Gilse Cosenza foi presa quando minha prima Juliana tinha 4 meses, e meus pais ficaram com a guarda dela. Então, nas revistas do Fradim, meu pai colocava: “Puxa, a Juliana está adorando comer os morangos”, assim camuflando legendas com notícias familiares em meio às historinhas. E a mensagem passava, não era censurada: a visão do militar é tão reta que frequentemente não via o sentido do que estava sendo comunicado ali.

BO: Pois então, Freud situa dois modos de realização do processo humorístico, afirmando que ele pode se completar na própria pessoa que adota a atitude humorística, enquanto que os outros representamos o papel de espectadores que dela também derivamos prazer – quando, desde um olhar vivaz, compreendemos seu sentido; ou pode efetuar-se entre duas pessoas, uma das quais não toma parte alguma no processo humorístico, mas é tornada objeto de contemplação humorística pela outra[3]. Como filho dele, você nos colocou em contato, a partir de 2012, com a série de livros infantis do sapo Ivan, inspirada na contemplação humorística do teu próprio nascimento. Gostaríamos que nos falasse deste trabalho dele e de tua própria motivação para editá-lo.


IS: Essas historinhas ele começou a mandar dos Estados Unidos para mim, no começo dos anos 70. A primeira, O sapo que queria beber leite, foi aquela de que minha mãe mais gostou; ela trabalhava em creche e fez uma cópia em pranchas para mostrar os desenhos às crianças, com o texto anotado atrás, para ser lido pelos professores.


Diferentemente do que acontece com a maioria dos bebês, quando nasci eu não tinha o olho espremidinho – a Jade, minha filha, também foi assim - , e meu pai brincava, “um olhão, parece um sapo”. E disso ele criou o sapo Ivan. Quando ele voltou, continuou a desenhar estas histórias num bloco. Eu nunca vi esses desenhos como um trabalho e a motivação para publicar veio da minha mãe, Gilda, a partir dessa primeira história que tem mais detalhes: é a única cuja arte ele fez e chegou a publicar em livro de pano. A história da lua, eu praticamente refiz; me lembrava de como ele a havia contado, e fui pegando os desenhos, fazendo modificações, montando: a lua sempre ficava cheia, meio alaranjada, e o sapo Ivan se perguntava do que ela era feita; para descobri-lo, foi emendando um canudinho no outro e por fim, daqui da Terra ele sorveu, confirmando assim que a lua era mesmo feita de suco de laranja – os níveis de suco de laranja foram então dando origem às fases da lua. Há a história do bolo, baseada em A galinha ruiva, há O sapo Ivan e o coração, que ganhou o prêmio da Revista Crescer de melhor livro infantil. Os 10 primeiros, de uma série de 12, estão na Bienal do livro.

BO: À gravidade das experiências de mal-estar que vivemos no decorrer da ditadura civil militar correspondeu uma série de formas de resistência. De que modo a resistência através da produção humorística se articulou com outras formas de luta social contra a violência sombria?


IS: Há uma frase do Henfil que esse tema do humor me fez lembrar: “Humor, para mim, é a inversão da expectativa; eles querem que a gente morra, e aí a gente vai e vive: isso é humor”. Numa das homenagens, coloquei essa frase, acrescentando a frase que eu bolei: Henfil, 1944-1988: Isso não teve graça nenhuma.


Essa inversão da expectativa ele usava nas tirinhas, nas charges até, escapando um pouco da censura; quando todo mundo estava falando mal dos militares, ele fazia as charges, ou as crônicas, falando mal do povo, de quem estava aceitando, de quem estava intimidado com o poder...


Ele tinha facilidade em provocar reação das pessoas através das charges. Quando todo mundo se escondia porque tinha um parente perseguido ou exilado, ele foi pra televisão falar: “Meu irmão está exilado, não pode voltar para o país dele”... e na campanha das Diretas foi a mesma coisa: ele foi entrevistar o Teotônio Vilela e lançou a entrevista lá no Pasquim inclusive criando o bordão Diretas Já pra campanha.
E tanto na Anistia quanto nas Diretas, os desenhos oficiais das campanhas eram dele, uma das figuras principais era a dele. Muitas pessoas associaram entrar na política a fazer humor: meu pai foi um dos que mais se destacaram; tem aí também o Juca Chaves, usando o humor na música.


Henfil foi da diretoria do Sindicato dos jornalistas de São Paulo, acho que foi o primeiro cartunista a entrar, e humor pra ele era uma coisa séria; ele pensava seu desenho como um meio de passar mensagens. Então, o tempo que gastaria elaborando mais o desenho, ele o destinava a passar mais duas ou três mensagens.

BO: Desde 2009 você se dedica ao Instituto Henfil, projeto de memória da obra de seu pai. Como produtor cultural, qual é sua opinião sobre o lugar social do arquivo desta obra?

IS: A fundação do Instituto Henfil se deu a partir da necessidade de se ter um lugar pra guardar; antigamente, os cartunistas não guardavam os originais, e Henfil foi pioneiro no arquivo dos originais – até mesmo em chamar de original. Ali, de certa forma, você tem a história de um período do país – então hoje há uma série de livros didáticos – de história, geografia, português – e de teses de pós-graduação que solicitam material. Só que é papel e vai se perder. Eu tenho mais de 15 mil originais do acervo pessoal dele. Está bem armazenado, mas não está tratado; está seguro contra o envelhecimento, mas não está seguro contra um incêndio, por exemplo... Então há certa urgência no projeto: que tudo seja digitalizado, catalogado e que seja feita uma espécie de museu, de centro cultural, cuja biblioteca fique à disposição. O maior apoio até aqui foi através de museólogos do Museu da República – pois o trabalho dele se aproxima mais à comparação do que é o tratamento de um documento, que é papel e caneta, papel e nanquim... E a ideia é buscar parcerias para fazer esse Centro Cultural ligado ao Instituto, que se poderia chamar a Casa de Humor Henfil.

No ano passado, o Instituto Henfil fez a exposição Traço pelos Direitos Humanos, no contexto das declarações do Feliciano; foi na ABI – com apoio da OAB, do Sindipetro – com mais de 100 desenhos e, graças à comunicação pelas redes sociais, em uma semana se organizou. Quando começou a repressão às manifestações de junho, pensei em fazer o Traço pelos Direitos Humanos 2 – agora o inimigo somos nós... mas nem deu tempo.

Esta conexão com o que está acontecendo esteve muito presente nas charges de futebol elaboradas pelo meu pai; começou no Jornal dos Sports, na primeira vez que soltaram urubu no Maracanã, num jogo do Flamengo. Como o Flamengo ganhou esse jogo, no dia seguinte ele desenhou um urubuzinho com a camisa do Flamengo. E o urubu era um xingamento, assim como já existia o bacalhau como xingamento, o pó-de-arroz... mas os mascotes desses times eram o Popeye, o Pato Donald, o Marechal da marinha portuguesa, e aí ele questionou: por que pegamos personagens americanos para representar os maiores times do Brasil, sendo os EUA um país que nem gosta de futebol? Daí começou a fazer as historinhas, e criou 4 personalidades, que eram o Cricri, torcedor do Botafogo – que foi meio escolha por votação e o pessoal brincava que era um torcedor muito chato porque naquela época era o time que tinha o Garrincha, o Didi, um monte de craques que ganhavam tudo; o Bacalhau, do Vasco; o Pó-de-arroz, do Fluminense e o Urubu; depois criou ainda o Gato Pingado, do América. Cada personagem encarnava um torcedor, implicando um com o outro, de acordo com as coisas que aconteciam. Ele assim mudou a charge esportiva, porque antes elas se faziam com a caricatura do jogador, em torno das coisas que aconteciam dentro das 4 linhas e ele, pela primeira vez, tirou a charge esportiva de dentro das 4 linhas, voltando-a aos bastidores, à política do clube, à torcida... Ele tinha essa coisa de psicólogo das massas, então sempre colocava Urubu e Bacalhau como os amigos mais próximos que se juntavam para sacanear as torcidas menores, justamente porque Flamengo x Vasco era a principal rivalidade. Mas, no auge do Jornal dos Sports, meu pai parou de fazer charge esportiva porque, ao constatar a receptividade com que as torcidas responderam às críticas e também às campanhas que ele fez – Paz nos estádios, com todos os mascotes juntos; Cada torcedor uma bandeira, que foi uma época, na década de 70, em que todo mundo levava sua bandeirinha, e derivou num campeonato de bandeiras entre as torcidas; um carnaval em que pela primeira vez se levaram, ao invés de charangas, que eram instrumentos de sopro, instrumentos da batucada das escolas de samba – por conta destas respostas, ao mesmo tempo que foi para ele um grande laboratório, pesou-lhe a interrogação sobre a influência que sua produção causaria no gesto da massa.


BO: Gostaríamos de falar um pouco sobre os escritos do Henfil. Das Cartas publicadas nos anos 80, lembramos particularmente da homenagem escrita por ocasião da morte de Elis Regina, em que Henfil encontra e abre a "caixa preta" de uma morte "tipo crime perfeito", discorrendo então sobre uma mulher livre que os homens não teriam conseguido namorar.


IS: Inclusive ele, sabe que eles namoraram um tempo, né? Meu tio Gildásio, que ficou muito amigo dele, é quem conta: “não, era heavy demais pra mim...”


BO: Para além da crítica ao discurso amoroso vigente, ele registra ali a crítica das crenças cotidianas numa fama assassina e no exame dos corpos chibatados, para afinal dizer: "Tu despistou todo mundo". Ele escrevia como quem desenhava uma tirinha – nesse caso feita de uma pequena porção de palavras precisas[4] -, com a mesma economia de meios do traçado da Graúna?


IS: Eu nunca tinha pensado assim; a charge tinha o texto pequeno e ele foi cada vez mais procurando mídias em que ele pudesse ampliar o texto: foi para a crônica, depois foi para o livro, depois para a televisão, para o cinema – ele queria mais espaço, para passar mais mensagens. Há a concisão que já vem do cartum, mas ele foi em busca de mais texto, de mais falas. Ele brincava sobre essa coisa da tinta e do movimento, falando sobre seu interesse pelo cinema – que está ali vivo, se mexendo, e a tinta não, a tinta seca, a tinta coagula, fazendo a alusão ao sangue: aí é a morte.

BO: Expressão forte, porque a hemofilia é um problema de não coagulação do sangue, não é?

IS: Um problema de não coagulação do sangue, mas ao mesmo tempo de coagulação dos líquidos nas articulações, que corrigem o atrito. Um hemofílico, quando está começando a engatinhar, já começa a ter problema nas articulações... A gente tem contato com a Associação dos hemofílicos e com o Hemorio também e há um prêmio que todo ano cada um deles atribui aos voluntários, respectivamente o Troféu Henfil e o Troféu Graúna, e os dois são a imagem da Graúna, só o nome é que muda. Em 1981, por aí, quando das primeiras notícias sobre a AIDS em aldeias da África, ele mostrou a reportagem pro meu tio e falou: “Tá vendo essa doença aqui? Dessa aqui eu não escapo não” – isso 7 anos antes de ele morrer, 5 anos antes de saber que estava com a doença, então ele tinha uma visão das coisas...

Eu brinco que ele teria adorado a internet, o contato direto com as pessoas, fazer um blog – tanto que ele respondia as cartas dos leitores na própria revista...

BO: Hen-fil é Henrique Filho: seu pai fez da filiação seu próprio nome?

IS: Quem fez essa brincadeira com o nome foi o Roberto Drummond, amigo de faculdade do Betinho: meu pai começou a trabalhar na revista Alterosa, como revisor. Só que revisor, naquela época, era um trabalho em que se consultava o dicionário e, enquanto esperava, ele desenhava. E todo mundo começou a reclamar do Henriquinho. Então Roberto o chamou, mas quando soube que era dele que se reclamava, pediu pra ver os desenhos, adorou e a partir daí ele foi contratado como desenhista, e não mais revisor. Só que meu pai queria assinar Souza, em homenagem ao meu avô e o Roberto disse que não ia dar – Jaguar, Millôr, Ziraldo, Claudius, um monte de nomes diferentes... – e aí criou Henfil, que era interessante porque o pessoal não ia saber se era estrangeiro: Ênfil? Rênfil? Enfíl? Renfíl? Em seguida encomendou um personagem, e então vieram os fradinhos, que ele fez como se fosse Dom Quixote e Sancho Pança, o Cumprido e o Baixim, baseado em dois frades que ele viu, um comprido e um baixinho no final da fileira, e o baixinho tirou um pão de baixo da batina, deu uma mordida olhando pra ele, escondeu, e ele falou que aquilo, desde pequeno, nunca tinha saído da cabeça dele. Aí ele criou o Cumprido, certinho e bonitinho e já o Baixim era mais sacana...


BO: De todo modo ficou essa marca do Henrique Filho; tem a marca dele de irmão do Betinho – função que, na voz de Elis Regina, João Bosco e Aldir Blanc sublinharam com os versos de O bêbado e a equilibrista[5] -, e há ainda as Cartas da Mãe... Escolhemos uma delas - Natal de 1979 – para pensar nas diversas marcas dos múltiplos nomes a que ele ali se refere...


São Paulo, 26 de dezembro de 1979.

Mãe,

Aqui estou eu, em mais um Natal, fazendo desta carta meu sapato colocado na janela.

Eu fui bom este ano, mãe. Eu acho que fui muito bom. Eu fui solidário com todos os meus irmãos Betinhos. Fiz greve com todos os Lulas. Quebrei Belo Horizonte como todos os peões. Voltei pro país que me expulsou como todos os Juliões. Dei murro em ponta de faca como todos os Marighellas. Cantei as prostitutas, as mulheres de Atenas e joguei pedra na Geni como todos os Chicos Buarques. Aspirei cola como todos os pixotes. Fui negro, homossexual, fui mulher. Fui Herzog, Santo Dias e Lyda Monteiro.

Fui então muito bom este ano, mãe.

Aqui está minha carta sapato.

Vou fechar os olhos, vou dormir depressa.

Esperando que meia-noite todos entrem pela minha janela. Me façam chorar de alegria, que eu quero viver!

A bênção,

Henfil


IS: No próprio Fradim ele fazia isso, ele dizia gostar do Fradim porque ele não estava preso: o Fradim pode ser criança, pode ser homem, mulher, gay, negro... aquele personagem que ele podia transformar em qualquer coisa.

BO: Isso você acha que é um legado político – essa disposição de ser muitos, de se importar com o que acontece aos outros, é um legado político em nome da amizade?

IS: Eu não sei; eu sentia, quando pequeno, uma grande ausência dele, uma dificuldade dele em se relacionar. Acho que há essa solidariedade sim, pelo coletivo, com as multidões – não individual.

São Paulo, 1º de setembro de 1978.

"Eu nunca soube amar. Eu nunca soube amar a cada um. Eu nunca soube amá-los como indivíduos. Eu nunca soube aceitá-los como feios, fracos e lentos. Tragam-me um doente e não chorarei com ele. Mas me mostrem um hospital e derramarei rios e mares. Eu não sei falar e ouvir um homem, uma mulher ou uma criança. Eu só sei fazer coletivo, massa, povo, conjunto. Sou capaz de ser herói, mas não sou capaz de ser enfermeiro. Sou capaz de ser grande, mas não sou capaz de ser pequeno. Eu nunca dei uma flor. Nunca amei uma pessoa. E tenho amor. Dou desenhos, dou textos, escrevo cartas. Sem contato manual, sem intimidade, sem entregar. Por que desenho, por que escrevo cartas? Minha arte é fruto da minha importância de viver com vocês. Um dia, vou rasgar o papel que escrevo, rasgar o bloco que desenho, rasgar até esse recado covarde e vou me melar e besuntar com vocês, tudo com meu grande beijo. Vocês vão me reconhecer fácil: vou ser o mais feliz de vocês. Henfil"



São Paulo, setembro de 2014.



Para saber mais:
Cartas da mãe (Documentário, 2003). Diretor: Fernando Kinas, Marina Willer.
 Narração: Antônio Abujamra. Depoimentos: Luis Fernando Veríssimo, Angeli, Gilse Cosenza, Iza 
Guerra, Laerte, Luiz Inácio Lula da Silva, Zuenir Ventura, Frei
Betto: https://www.youtube.com/watch?v=MLfRebRwz-Q

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[1]Da equipe editorial do Boletim Online.
[2]Os chistes e sua relação com o inconsciente.
[3]Freud, O humor, 1927.
[4]Ao falar em legistas que chibatam vísceras, Henfil alude ao então chefe do Instituto Médico Legal de São Paulo, onde o corpo de Elis Regina foi autopsiado – Henry Shibata – conhecido colaborador da repressão devido aos laudos médicos que elaborou a respeito de vítimas do regime militar no Brasil, particularmente o laudo que atestou o suposto suicídio do jornalista Vladimir Herzog. Ao assinar Henfil Street, o artista faz referência a Doca Street, o companheiro de Ângela Diniz que a assassinou em Búzios no ano de 1976.
[5] “Meu Brasil que sonha com a volta do irmão do Henfil..."




 
 
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