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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    30 Setembro 2014  
 
 
TEATRO

JOCASTA: POR UM EROTISMO DISRUPTOR


MIRIAM CHNAIDERMAN[1]


Édipo Rei e Jocasta


Já antes da encenação brilhante de Débora Duboc dirigida por Elias Andreato em Jocasta, eu pensava que a grande questão da tragédia edípica seria o feminino. A mulher, a mãe, o Grande Outro não castrado. Ou, como pensava, a transcendência de paradigmas regidos por ordenamentos de nossa cultura, instaurada a partir da proibição do incesto. Em Édipo Rei, o conflito entre a lei da Pólis e o mundo divino levava ao gozo absoluto em um encontro assustador. Em Jocasta, Débora Duboc dá forma e explicita o que sempre esteve silenciado em Édipo Rei.

Na tragédia grega há o recuo da potência divina que atira num abismo as decisões dos homens. O mundo fica indeterminado. Tudo fica possível. A lei passa a ser arduamente construída. Um erotismo esparramado, sem eixo, pode passar a dominar. O desmanchamento em uma fusão infinita fica no horizonte. Luiz Renato Martins, em seu texto O dom de Édipo afirma: “A transmutação da forma bem delineada do divino, característica de Homero, para o estado aberrante da apresentação trágica do divino, conserva alguns traços mais gerais da noção grega de divino. Os deuses olímpicos tinham o sentido da regulação ou da medida. O caráter da medida equivalia ao divino. A antiga advertência contra a hybris, tornando a desmedida uma ofensa religiosa, tem esse fundamento. (...) A espécie humana, para os gregos, tem força anímica semelhante à do fogo. Assim, os homens são dados como originariamente desmesurados e não-individuados, enquanto a sapiência da medida cabe aos deuses.”[2]

Em “Édipo Rei” é esse paradoxo que é radicalizado. Na peça de Elias Andreato temos então o paradoxo encenado quando o centro da ação passa a ser Jocasta. A mãe/mulher/esposa na figura de Débora Duboc/Jocasta que canta, geme e chora em linda e dolorida movimentação cênica.

A esfinge e Jocasta

A figura da esfinge, cuja morte dá a Édipo Jocasta como esposa, me parecia, já em minhas reflexões anteriores, absolutamente crucial para pensar tudo isso.

Segundo Driek van der Sterren, no seu estudo sobre Édipo[3], o enigma da esfinge, o problema que colocou aos tebanos e a resposta que lhe deu Édipo, são aspectos do mito que permaneceram por muito tempo na sombra.

W. Kuiper, citado por Sterren, chegou a uma conclusão bastante vaga: “... se os atenienses aceitam a lenda em todo seu horror, não é devido a uma significação profunda, mas porque ela faz parte de uma velha tradição que não tem necessidade de ser verificada - assim como a criança aceita um conto de fadas célebre sem se interrogar sobre a sua credibilidade”. Sterran acha que tanto a lenda quanto o conto de fadas são aceitos porque têm uma significação profunda e um sentido escondido.

A esfinge interessa ao psicanalista. E Sterren acredita ter encontrado, no drama de Sófocles, associações que tornam compreensível a aparição misteriosa da Esfinge. Sistematiza então o que Sófocles diz da Esfinge:

  1. No começo da peça, quando se implora a ajuda de Édipo, o espectador fica sabendo que ele já libertou a cidade da Esfinge.
  2. Quando Laio foi assassinado, os tebanos não pesquisaram o crime mais de perto porque a Esfinge ocupava todos os seus pensamentos.
  3. No curso de sua discussão com Tirésias, Édipo lhe critica ter sido impotente face à Esfinge, enquanto ele, Édipo, o ignorante, resolvera o enigma e fez silenciar o monstro.
  4. Quando, na disputa com Tirésias, surgem as dúvidas em relação à inocência de Édipo, o coro canta seus méritos e relata como foi, na época, atacado pela Esfinge.
  5. Uma vez revelada a verdade, o coro lamenta a terrível sorte que se abate sobre Édipo, e lembra o passado feliz quando Édipo venceu a Esfinge.
  6. A esfinge é um ser com um busto humano e feminino e, no baixo ventre, animal e macho; tem uma longa cauda, grandes asas e garras pontudas. Tendo se estabelecido nas vizinhanças de Tebas, ele colocara aos tebanos um enigma que, a cada noite, um habitante da cidade deveria resolver. Se não conseguisse, morreria. Mas, se alguém resolvesse, então a Esfinge deveria morrer. Édipo resolve o enigma e a cidade cumpre a promessa: esposa Jocasta e torna-se rei de Tebas.

Sterren faz uma interessante analogia entre a esfinge e Jocasta: "Nos dois casos, Édipo encontra-se diante de um enigma; hostilidade e desejo de morte se manifestam em seu comportamento em direção a ambos, e ambos morrem a partir do fato de que Édipo resolve o enigma que lhe colocam". (op. cit. p. 95)

A Esfinge e Jocasta rompendo ordens estabelecidas: homem/mulher; a proibição do incesto.

Até

Denise Maurano conta como Lacan compara a relação entre o ato analítico e o ato trágico. A divisão entre espectador e coro fala do que é da ordem do sujeito. Na representação estaríamos evidentemente mais perto dessa esquize tal como ela é suportada na tarefa psicanalisante. A dimensão do ato que compõe a representação trágica exibe o sujeito enquanto fruto de uma divisão que se aloja no seio do campo do sentido. Para Denise, buscar o trágico no pensamento psicanalítico implica em uma confrontação com o limite do que pode ser visto ou sabido acerca da condição humana, ponto que pode ser designado pelo termo grego Até."[4] (p. 54) Continua Denise: "Esse termo, segundo Lacan, designa o móbil da verdadeira ação trágica, que aponta para certa calamidade fundamental, frente à qual o herói, movido pelo desejo, não se detém, malgrado o risco que sua ultrapassagem comporta".

Há uma versão desse ensaio que encontramos na internet onde Denise Maurano afirma: "Ultrapassando a Até, o limite onde se sustenta a existência humana, tanto Édipo quanto Antígona encontram o termo radical de seu desejo, ao preço, entretanto, de sua aniquilação como sujeitos. Nessa dimensão de dessubjetivação encontram, paradoxalmente, o mais essencial deles mesmos, para além de todo o narcisismo, até mesmo aquele indispensável para a continuação da existência. Mostrando o perigo de sua ultrapassagem"[5].

Débora Duboc e Elias Andreato radicalizam a tragédia grega e recriam Édipo Rei à luz do olhar de Jocasta. Total inversão de uma leitura absolutamente estabelecida - onde o foco sempre foi Édipo. Jocasta vai contra a lei divina e contra a lei dos homens. A Até da Até. A paixão e o desejo a movem. Não há crime, não há castigo - aponta Christian Dunker em texto escrito para o debate sobre a peça, do qual participou. Afirma Christian sobre Jocasta: "Uma maneira de sofrer que não está para além ou aquém da lei, mas apenas não faz de sua obediência ou desobediência o seu motor narrativo"[6].

Jocasta sempre foi uma personagem coadjuvante no drama edípico. Inverter esse filtro, que sempre foi dado como óbvio, transgride a organização falocêntrica de nosso mundo. É dar estatuto nobre às feiticeiras que tanto ameaçaram o mundo da ciência. Afirma Monique Schneider: " ... a feiticeira representa efetivamente ao inimigo, ao mesmo tempo informe e polimorfo, diante de uma ordem cultural que dificilmente se impõe (...) no interior de uma mentalidade que dificilmente se atinge a si mesmo e que se caracteriza, entre outras coisas, por sua Resistência ao que tenta lhe dar forma, quer se trate de uma disciplina religiosa, moral ou intelectual"[7].

Jocasta/Débora Duboc

A partir do olhar de Jocasta, o impuro ganha lugar. Débora Duboc/Jocasta vai nos encantando com lindos cantos e sua história de paixão. Nessa inversão total que a peça propõe é possível pensar em uma quebra do familiarismo, algo que foi tão criticado na psicanálise. Fica possível reintroduzir na psicanálise o mundo das feiticeiras, o mundo onde tem primado um erotismo não regido pelo falo. Afirma Christian Dunker: "Se a leitura tradicional da tragédia de Édipo conduz a uma interpretação baseada na reintegração da unidade, o ponto de vista de Jocasta nos faz pensar em uma catarse desintegrativa, na qual o fragmento disperso é capaz de desfazer a identidade do todo."

No texto que escreveu para o programa que era distribuído quando a peça estava em cartaz, no teatro Eva Herz, Débora Duboc fala de como Jocasta foi criada para não existir". Na peça de Sófocles, quase não tem falas. É Elias Andreato que dá fala a Jocasta. É enorme a gratidão de Débora Duboc a Elias Andreato: "esse autor-diretor-ator brilhante da cena brasileira", conforme suas palavras no programa. Débora sente que fala por milhões de mulheres sem voz na história, que agora transgridem e passam a ser ouvidas.

Débora conta o significado do nome Jocasta: curadora de veneno. Christian Dunker nos lembra que venenos e palavras possuem uma afinidade semântica, pois são ambos pharmakon"[8]. Pharmakon é um termo ambíguo, de duplo sentido, podendo significar remédio ou veneno. A mulher que embala os filhos, a mulher que abandona Édipo nas montanhas, a esposa que embriaga Laio para poder gerar Édipo, a mulher/mãe que toma a própria vida nas mãos e contraria o oráculo ao se matar. A mulher doce e forte, que não reduz seu desejo à maternidade. A busca do amor, do encontro pleno, e a coragem disso. Há total perda de qualquer garantia. Estamos no além/aquém do falo. Instaura-se uma alteridade radical. Por isso, encenar Jocasta é, acima de tudo, um ato político.

 

Clique aqui para assistir um trecho do espetáculo: https://vimeo.com/79693173

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[1]Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[2] Esse texto está na coletânea de ensaios Os sentidos da paixão, SP: Cia. Das Letras, 1987.
[3] Sterren, Driek van der. Edipe, une étude psychanalytique d'après les tragedies de Sophocles. Paris: Presses Universitaires de France, 1976.
[4] Maurano, Denise. "A face oculta do amor: a tragédia à luz da psicanálise" in Percurso, Revista de Psicanálise, ano XVI, n. 30, primeiro semestre de 2003.
[5] Maurano, Denise , "A face oculta do amor, uma investigação filosófica da tragédia à luz da psicanálise", http://www.oocities.org/hotsprings/villa/3170/DeniseMaurano.htm.
[6] Dunker, Christian (2014) "Fazer justiça a Jocasta". http://blogdaboitempo.com.br/2014/03/19/fazer-justica-a-jocasta-coluna-de-estreia-de-christian-dunker-no-blog-da-boitempo/
[7] Schneider, Monique. Le feminine expurgé. Paris: Ed. Retz, 1979.
[8] Esse tema é amplamente discutido por Derrida em A farmácia de Platão. SP: Iluminuras, 1991.

 




 
 
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