PUBLICAÇÕES

    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    32 Novembro 2014  
 
 
ENTREVISTA

A PALAVRA NÃO É ONDE AS COISAS NASCEM


Entrevista com Fernando Vilela, em torno de O mar que atravessamos

 

ADRIANA BARBOSA PEREIRA[1]
SÍLVIA NOGUEIRA DE CARVALHO[2]


Fernando Vilela (São Paulo, 1973) é artista plástico, escritor e importante gravurista e ilustrador de sua geração. Possui obras em coleções como a do MoMA de Nova York, do Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, da Pinacoteca do Estado de São Paulo e do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. Em 2010 foi contemplado pelo Prêmio Funarte de Arte Contemporânea. Como autor e ilustrador publicou em diversos países. Dentre seus livros destaca-se Lampião e Lancelote (Cosac Naify, 2006), com 3 prêmios Jabuti e 4 prêmios da Fundação Nacional do Livro no Brasil e a Menção Novos Horizontes do Prêmio Internacional Bologna Ragazzi Award (2007). Representado pela galeria Virgílio, Fernando Vilela apresentou recentemente O mar que atravessamos (de 03 de setembro a 14 de novembro de 2014) – exposição de fotografias, gravuras, livros de artista, instalação e vídeo que a seguinte entrevista, ali realizada, procura retratar.

Desde o flyer que convida à visitação de O mar que atravessamos, sentimos o impacto da figura desse helicóptero que transita entre imagem fotográfica e gravura. Na primeira sala da galeria, é ele quem nos recebe, agigantado na parede, acompanhado de uma pequena inscrição numa plaquinha de ferro, onde quase não se lê: Aço, aço, aço – maio de 1978. A imagem se repetirá diferida nos livros de artista de dois diferentes formatos que, dispostos numa bancada ao centro do espaço expositivo, se revelam exercícios de memória, dois deles intitulados Cachorro no espaço e diferentemente datados: agosto de 1979 e abril de 1984. Assim vamos sendo convocados à experiência arqueológica de olhar a obra a partir de pistas colhidas aqui e ali. Dentre as poucas palavras grafadas, um papel avulso recolhido num escaninho diz:

Calças azuis, tênis sujos, braços suados, muita gente. Me sentia bem, estava quente, espremido e alegre. Até que subi para o alto. Que multidão! Vi cartazes, sorrisos, barbudos, cabeludos e carecas dos ombros fortes do papai em passo firme e mão abraçando mãe. Do céu veio o barulhão. Eram helicópteros militares voando muito baixo. Que lindo! Aço, aço, aço, tem cachorro no espaço! Lá dentro eu via os soldadinhos com metralhadoras apontadas para nós. Ninguém tinha medo. Aquilo tudo era muito bom. Continuamos gritando juntos.

1 de Maio. Greve Geral, Estádio de Vila Euclides – São Paulo.


Quais os tempos vivos simultaneamente em jogo nesse conjunto, no qual as datas têm a particularidade de compor os títulos da obra?

FV: Esta exposição nasce de uma vontade, de um exercício que já vem de muito tempo, surgido numa sessão de terapia holística há uns 20 anos atrás, com um médico homeopata de família. Minha mãe foi muito envolvida com a Ação Popular, da qual uma de minhas tias foi militante; nesse contexto, em que a casa era um aparelho - muita gente era lá escondida -, eu nasci. Então minha infância foi permeada por esses medos, esses terrores de amigos desaparecidos – mortos -, minha tia com vida clandestina... Essa memória da infância se compõe de lembranças minhas mas também de memórias compartilhadas através da família: hoje vejo que as informações foram sabiamente filtradas pelos pais e tios. Aos 3, 4, 5, 6 anos ouvia muitas histórias, algumas incríveis, outras estranhas... Nessa passagem do Cachorro no espaço eu tinha 5 anos e meio e tenho essa memória da Greve Geral de 1978, lembro da multidão, do Lula... Política atual e Ditadura sempre foram assuntos recorrentes nos almoços e jantares familiares. Esse grupo é formado por pessoas que foram muito valentes, muito unidas, que sofreram absurdos de tortura e muitas outras coisas; minha mãe e 6 amigas, que são como irmãs – sempre lembro desse grupo conversando e rindo. São lindas histórias de superação.

Voltando ao início: para tratar de uma insuportável dor de garganta crônica, que vinha desde os 15 anos de idade, fiz uma regressão com o médico que cuidava de mim há uns 20 anos atrás, o Dr. Rubens Kara José, rememorando todas as grandes dores de garganta que eu tive até aquela idade, e fui voltando até o momento em que a gente não sabe se projeta a imaginação ou se está com a memória do corpo... Só sei que fui parar na minha primeira infância, depois me vi bebê, e depois voltei para a barriga da minha mãe. Ali, alguém gritava com ela, ameaçava de morte. Eu ouvi todas essas vozes que me asfixiavam. Foi uma sessão libertadora, na qual escrevi um texto de 20 páginas, desprogramando tudo aquilo que não era meu, e curei a tal dor de garganta. O título do texto era Um feto na revolução.  Depois chequei com minha mãe como foram os interrogatórios quando ela foi presa na OBAN (Operação Bandeirantes) quando estava grávida de sete meses e meio de mim. Naquele momento alargamos o canal de diálogo daquele episódio e fiquei com vontade de escrever um livro, um relato – mas nunca escrevi pois aquilo fazia parte de um contexto terapêutico muito especial. Então, durante todos esses anos, revisitei em diversos momentos essa memória individual e familiar. Nesses últimos anos essas recordações afloraram, talvez por conta desses movimentos todos emergirem na mídia a partir do trabalho da Comissão da Verdade e de outros episódios.

Começou com as indenizações no governo Lula: minha mãe e minhas tias todas que foram presas e torturadas entraram com processos contra o Estado, para ter aquela indenização simbólica – importante para que o Estado assuma que foi culpado, que foi criminoso. Ajudei minha mãe a escrever o processo dela – ela não queria escrever e era difícil voltar para aquilo... isso foi em 2007. Para mim foi muito interessante ler os depoimentos das minhas tias, mais de 30 anos depois, contando aquela história da prisão e da tortura sem emoção revanchista, mas por outros pontos de vista. Minha mãe, grávida, sua irmã e mais 3 amigas  foram presas em setembro de 1973 na casa onde moravam.

Nesse momento aflorou de novo essa memória, que tem uma força grande em termos heroicos mas tem também um perigo vitimista. Depois de ajudar minha mãe no processo dela, recebi um e-mail do Dr. Rubens - que vivia naquele momento no Mato Grosso - contendo uma reportagem sobre um outro filho de grávida torturada quando presa política, que entrou com um processo contra o Estado e ganhou. E foi a partir do precedente aberto que eu resolvi entrar com um processo, e minha mãe me ajudou a escrever também: a gente pegou simplesmente o processo dela e adaptou, pedindo relatos da mesmas pessoas. Novas narrativas. Depois de uns anos saiu a indenização dela, a minha também e fiquei com vontade de pegar esse dinheiro e fazer uma coisa sobre isso – tive muitas ideias... Essa exposição veio um pouco desse impulso; ainda quero fazer um livro, mas estou juntando cacos de memória, sonhos e imagens.

Então, conversando com Stela[3]  – minha mulher - no final do ano passado, pensei em aproveitar minha exposição marcada para este ano e arriscar um novo trabalho atravessando este tema. Desde que a gente começou a namorar, esse assunto da Ditadura, dessa história da minha família teve uma densidade que fez parte da nossa vida também - memórias duras do grupo Tortura nunca mais de São Paulo, onde minha mãe e a tia Elzira  trabalhavam, cada novo ponto da história que se desvelava era uma forma de atualizar tudo o que se tinha vivido, um peso que voltava à tona.

É curioso que a gente foi (e ainda vai) ressignificando as coisas o tempo todo. Essa memória de infância – foi inclusive interessante ver que a memória de infância era uma memória de uma vivência filtrada pelos meus pais, o que pra mim não era muito claro - essas Greves Gerais, esses entusiasmos, as passeatas todas eram superestimulantes; a gente via ali o lado alegre... a quantas passeatas dos desaparecidos a gente foi! Quantos livrinhos sobre os desaparecidos eram empilhados na estante da sala! E eu sempre falava: “Tia, está muito mal impresso isso aí”...

Que idade você tinha quando falava que estava mal impresso?

FV: Eu tinha 8 ou 9 anos.  

Você era das artes gráficas desde então?! Estou dizendo porque você é muito caprichoso: fomos olhar seu livro, que é de verdade um encanto, uma obra de arte o Lampião e Lancelote... Você dizia pra sua tia que estava mal impresso aos 8, Fernando?

[Risos]


FV: O que aconteceu é que este ano eu ia fazer uma exposição de fotografia - ia ser outra coisa – mas tudo começou a vir à tona. Nas conversas com Stela sobre a possibilidade de ser este o ano desse trabalho - correndo o risco do pouco tempo para produzi-lo - ela me deu muita força, sabendo que poderia ser um processo difícil e realmente foi. Eu comecei desenhando, anotando memórias, gravando histórias que eu ouvi... comecei a juntar esse material bruto das imagens.

Em fevereiro de 2014 conheci a Cristina Herrera[4], através da Clínica do Testemunho, porque Elzira me levou para uma sessão familiar – com ela, meu irmão, minha prima e dois terapeutas, um dos quais era a Cristina. Foi muito bom poder falar com meu irmão e todo mundo se colocar ali. Depois, gostei da Cristina e achei que ela podia me ajudar. Eu não estava querendo fazer terapia propriamente, queria compartilhar um projeto – que ainda não sabia se viraria livro ou exposição. Intui que poderia ser - e foi - uma interface de diálogo super bacana. Sem dúvida a Stela é minha principal interlocutora estética das coisas, mas Cristina tinha um distanciamento que incidia sobre a questão por um outro lado. Tratava-se de decidir até que ponto fazia sentido a minha biografia entrar explícita no trabalho; a primeira pessoa, as histórias, ou era melhor criar ficção, ou ainda essa situação em que você não sabe o que é ficção?

Um caminho de deixar as coisas entreditas foi trabalhar com datas, como pistas de memórias. Voltando ao helicóptero, ele é justamente isso, uma imagem poética de um olhar que sobrevoa a memória, o registro – não é somente a minha memória, mas a da família, das imagens que evocam momentos vividos e também das imagens internas... esse olhar de menino, que de certa forma eu sempre trouxe para o meu trabalho de arte – do movimento, da ação, do embate com a matéria, com a madeira. Ao descobrir a gravura em madeira, ela foi um meio que respondeu aos meus anseios de forma; daí o ferro também – que é um material de atrito, de briga. Então as datas como pistas possibilitaram armar esse jogo em que eu não me coloquei explicitamente mas dei uma informação de uma época. Por isto que esse flyer da exposição é importante: o trabalho é de 78, mas lá descobre-se que o artista nasceu em 73. Então a data da obra não é a data em que o trabalho foi realizado: ela é um conteúdo da obra. Foi depois de inaugurar a mostra que eu coloquei aqueles textos no escaninho de ferro; eu tinha deixado a exposição silenciosa de palavras mas havia pessoas que olhavam as fotos, sentiam o drama existente em algumas combinações, e outras nem liam as legendas – porque pus aquele metal escuro, lixado, que não expõe muito...

E que pede que a gente leia com o tato...  Você falou então desses muitos tempos, tempo da experiência, tempos da memória, tempo da ficção, tempo de uma reelaboração, pois não é mais o mesmo registro... Mas  também um tempo que tem a ver contigo, com o tempo da família e ainda com um tempo brasileiro... Notamos que é uma exposição curta de palavras, mas que nos evocou fortemente memórias de outras obras: obras fotográficas, literárias, fílmicas... Queremos falar um pouco delas...

Num despretensioso filme de 1994,
Anna dos 6 aos 18, Nikita Mikhalkov retrata a sociedade russa ao registrar as respostas da menina Anna às reiteradas perguntas feitas por seu pai: do que mais gosta? O que mais detesta? Com o que sonha? Do que tem medo? E o modo como as respostas vão se transformando, dos 6 aos 18 anos, se constitui num passador de mensagens muito além da crônica familiar. Nesse escrito de 1o de Maio acima citado, é terrivelmente comovente o registro subjetivo do olhar da criança diante dos apelos que lhe eram familiares – seu gosto pelas sensações e observações, seu desgosto do medo, seu sonho de estar junto – face à estranha experiência de ter metralhadoras apontadas para si. Em tua opinião, essa disjunção familiar/estranho figura um retrato do Brasil do final dos anos 70 e início dos anos 80? E hoje?

FV: Sabe que isso foi uma preocupação minha? Naturalmente quando falamos de uma época, falamos da nossa época também. No fundo eu acho que a gente não escapa ao nosso tempo, jamais. Neste trabalho, desde a escolha das fotos, quando resolvi partir das fotografias de nuvens, que estou há dois anos fotografando, e brincando com esse jogo... eu não quero encontrar figuras nas nuvens mas busco climas: nuvem que parece fumaça, nuvem que é uma tempestade iminente, nuvem que é mais celeste, mais transcendente... Justamente por isso comecei a fotografar nuvens de pinturas: nuvens das pinturas do William Turner, que são aquelas tempestades incríveis, a natureza sublime – pintura quase mineral, em que você não vê pincelada, pois a fatura parece um processo de corrosão; nuvens de pinturas do Camille Corot, pintor francês do final do século XIX em que o interessante é como representar algo tão diáfano com uma pincelada tão espessa, que deixa ver a matéria, a massa da tinta branca; um céu espesso de Courbet. Nos trípticos há fotos que eu tirei de obras de outros artistas e fotos de que me apropriei, como da bomba atômica de Nagasaki, que é domínio público, assim como da erupção de um vulcão.

Você falou do contemporâneo e tem uma foto de 9 de agosto deste ano, de um bombardeio na Faixa de Gaza, que conversa com essas outras nuvens, que são do fim de tarde na varanda da minha casa no mesmo dia. Então me deu vontade de trazer esse conflitos, que são diálogos subjetivos que atravessam tempos e espaços – a Ditadura, o que se vive em Gaza, o que foi aquela bomba atômica de 1945, e que é a pintura do El Greco (Vista de Toledo) que se ressignifica ao lado da bomba atômica. Ele é um pintor de um tempo no auge da representação naturalista e traz a matéria exposta, a pincelada, seu gesto, antecipando a pintura moderna, pintando um céu sem transparência nenhuma; você chega perto e é um anteparo: ele traz essa crueza da realidade, que pra mim tem uma força impressionante.

Tentando voltar na tua questão do tempo, esses helicópteros também me lembram Faixa de Gaza agora. Mas são feitos com referência aos da Guerra do Vietnã – inclusive no cinema, a cena mais impressionante de helicóptero é aquela do Apocalipse Now, ao som das Cavalgada das Valquírias de Wagner, aquele bombardeio ao amanhecer, aquilo é um épico. Tudo isso vem nas referências das nossas guerras contemporâneas. O Vietnã é contemporâneo da Ditadura Militar - os tempos se atravessam aqui: a gente vive hoje uma democracia onde existem coisas horrendas, porque o Estado também é criminoso - pelas ações da pessoas criminosas que atuam nele - mas sem o aparelho do Estado repressivo.

A violência na feitura dos livros é permeada de uma narrativa de crimes atuais, de histórias que ouvi na periferia de São Paulo em torno de homicídios e torturas. Desse trabalho nasceu o filme e o ator é o próprio serralheiro...

Isso a gente queria perguntar, porque a gente pensou que não podia ser qualquer pessoa, não podia ser um ator contratado...

FV: A princípio eu ia ser o ator do filme, porque esse filme ia ser uma performance aqui na galeria. Sempre fui muito afetado pela política internacional; desde criança preferia abrir o caderno de política internacional do que o caderno de cultura, sempre me fascinou, sempre viajei muito, isso é uma coisa que faz parte da minha vida – o outro, o diferente. E isso de certa maneira eu trago para o trabalho. Então o encontro com esse serralheiro foi um encontro de alma.

De um ponto de vista da imagem, há uma seleção de fotografias que você coleciona que são únicas – a imagem de 11 de setembro, a imagem da explosão da bomba atômica... - e assim você as aproxima da irreprodutibilidade da pintura. Essa tensão entre fotografia e pintura presente nos trípticos que convidam nosso olhar a passar, de uma imagem a outra - Entardecer agosto 1979, Tempestade maio 1976, Calmaria janeiro 1974, Anunciação setembro 1973 e Alvorada novembro 1973 – 5 séries as quais chamamos de foto-pinturas, nos pareceu correlata de uma outra tensão, entre eventos explosivos e delicadeza sensível...


FV: Realmente, a decisão - ou a escolha - de trabalhar com preto e branco, e com uma ampliação fotográfica em que tenho o grão ou pixel visível, isso é do universo tátil da gravura, ou da própria fotografia quando você estoura o grão. Então com o preto e branco e com uma impressão num espesso papel de algodão consigo aproximar todas as imagens e criar uma conversa muito próxima entre uma fotografia e uma pintura. E todas essas fotos têm uma intencionalidade no enquadramento – que é uma decisão gráfica; não é uma operação próxima da Pop Art, de apropriação e deslocamento da imagem, aqui se trata de transformar a imagem dentro de um discurso próprio. Aqui o suporte – os papéis de algodão utilizados em gravura – trazem aos olhos uma experiência tátil que conversa com o gráfico da tradição da gravura.

E nos livros de artista?

FV: Esses livros são feitos com  papéis japoneses – e encadernação japonesa, que sustenta uma conversa com a imagem de Nagasaki -, que em si têm uma fatura, uma composição; é um papel artesanal que tem essa irregularidade, esse lado orgânico – aqui é xilogravura impressa. Eles são únicos e as impressões são únicas também, as fotos se repetem mas o que vai em cima delas, essas gravuras se deslocando, é um jogo. Primeiro eu pego a fotografia, imprimo a foto no papel japonês e depois imprimo a gravura em cima: duas impressões. Depois que tenho tudo impresso vou configurando e criando as histórias visuais. Imprimi umas duzentas gravuras, já com ideias, pois fiz alguns roteiros e depois os refiz já com as imagens impressas.

O modo como os sentidos se constroem e se desconstroem em uma espécie de convocação recíproca entre imagens, narrativas imagéticas e narrativas-palavras é um enigma que inquieta a psicanálise, desde Freud. O mar que atravessamos é uma exposição na qual os limites do dizer se refazem na experiência apreciativa: ensaio fotográfico, livro, escultura e vídeo parecem se apresentar num conjunto por uma exigência de diversidade formativa na qual uma peça pode ser ressignificada pela outra. Ao mesmo tempo, as palavras inscritas no ferro, quase invisíveis, mas sensíveis ao tato, assim como os títulos e palavras em baixo relevo nas capas dos livros do balcão central, além dos pequenos textos encontrados ali perto funcionam como provocação para a construção de um mar de histórias.

Calmaria – Janeiro 1974

Mãe doente. Pai enlouquecido.
Foi para Sul de Minas Gerais morar com os avós.

“O mar de Minas é o céu”.


De que modo essa convocação entre imagem e palavra está presente no teu processo de criação?

FV: Eu não tenho uma resposta pra isso, porque de fato às vezes a palavra vem antes da imagem, mas normalmente a imagem e a sensação, a coisa sinestésica, vêm antes da palavra. A palavra, ela é mais uma possibilidade de narrar algo que foi sentido e vivido. Ela é uma linguagem em que consigo articular as coisas, mas não é uma linguagem onde as coisas nascem. Ela até toma o protagonismo em alguns momentos; então, nesses textos, nessas memórias que são recontadas, impressas e depositadas ali no escaninho de ferro, quando leio aquilo eu revivo: é uma operação de linguagem de acesso.

Eu construo associando; então essa Calmaria, peguei a imagem de uma paisagem litorânea do mar de Portugal, de Lisboa, uma nuvem branca em cima e aquilo me trouxe uma paz, mas uma paz que ao mesmo tempo tem uma dramaticidade, aquele céu... e esse texto acaba reconfigurando o trabalho. Essas conexões, às vezes nem percebi que elas foram acontecendo...

Teu dizer sobre a palavra nos impacta, pois sabemos que você é também escritor... Alguns dos escritos do escaninho portam o traço de uma condensação telegráfica: “...dos ombros fortes do papai em passo firme e mão abraçando mãe”. Poderíamos dizer que se trata menos de um regime poético e mais de um regime estético da escrita, em acordo com Jacques Rancière[5]?

FV: Esse texto, por exemplo, dos ombros do meu pai, eu o escrevi umas 20 vezes: escrevi em terceira pessoa, narrando; escrevi só com sentimentos; deixei só substantivos, tirando os verbos; fiz vários laboratoriozinhos para chegar em uma coisa mais direta, mais simples. O barato não é tanto explorar a linguagem mas que a linguagem presentifique uma memória - uma palavra que crie imagem[6]. Então tem sim a ver com o trabalho da imagem; o próprio título da exposição veio de uma história de um trabalho de arte da Mira Schendel que o meu pai – Paulo Celso - quando ainda era Frei Paulo de Tarso, padre dominicano, viu na parede do Frei Mateus, que era o prior dos dominicanos em 1969, e estava escrito no trabalho: “Nunca souberam quão profundo foi o mar que atravessaram” – frase tirada da Bíblia e que fazia o horizonte naquela monotipia da Mira. E esse trabalho impactou tanto o meu pai que ele quis saber quem era o artista e quis conhecer a Mira, de quem se tornou amigo. Então esse mar vem um pouco daí, de uma experiência espiritual e da história do meu pai. Então há toda essa conexão: O nome da exposição foi um exercício de pegar essa memória dessa história do meu pai, que acho super bonita, e recriá-la: “Mas esse mar é nosso; então vamos colocá-lo em presença”, e que o atravessamos, nós – “nunca souberam” não, soubemos sim! Fui reduzindo, reduzindo e cheguei nesse mar que atravessamos. Esse é o nome da exposição, e para mim isso é também uma chave de leitura.

5) No políptico Noturnas abril 1976, chegamos a uma suave obscuridade...

FV: Esses trabalhos nasceram de uma noite, na cidade do Porto, um inverno em que havia bruma na cidade, e ali estava a foto, pedindo para ser construída. Horas na varanda, com tripé, velocidade lenta... construindo essas imagens que para mim tinham que ser muito gráficas, sem luz, sem manipular a foto, só com o obturador, velocidade e sensibilidade de filme...

Pensamos que, nesse caso, a tensão se faz na margem oposta, em que jaz a máquina de emoldurar o olhar para o  vídeo Rua Tutóia 921 setembro de 1973[7]. 7 minutos diante do testemunho concreto da tortura fria, num looping sem fim: serra circular, revólver, martelo, aparelho de pressão e morça. Avental, estetoscópio, luvas cirúrgicas. Livros-objeto na estante, retirados um a um, 4 – 1 - 3... Imobilizados, auscultados, queimados, serrados. Martelados, examinados, atirados, perfurados...


Ao fundo da sala, numa terceira margem, tua obra afinal instala um conjunto de esculturas - livros de ferro em tamanhos variados e marcados de diversas formas, irremediavelmente fechados...

FV: Sim, impossível abri-los, só com as ferramentas ali do serralheiro...

Na melhor tradição distópica trata-se aqui de um memorial da comunidade de homens-livro - aqueles que em Fahrenheit 451[8] por fim decoraram uma obra inteira para que ela não se perdesse? Convite a “fazer falar o que não tem palavra, o pássaro que pousa no beiral, a árvore na primavera e a árvore no outono, a pedra, o cimento, o plástico”[9]... o ferro oxidado num mar que atravessamos?

FV: A ideia do livro vem desde o começo... o fato de eu trabalhar com livros, e livros onde, muitas vezes, a imagem é o texto e, vice-versa, o texto cria imagens... A ideia era criar esse livro que não se reproduz nem se imprime e é feito com muito esforço, artesanalmente, um a um: cortar, dobrar o ferro, fechar, soldar, oxidar... com aço corten, que enferruja até um certo ponto, um aço que não deteriora nem apodrece e acaba – usado pelo Richard Serra, pelo Amílcar de Castro. Um antilivro, não reprodutivo. Dentro desses livros de ferro tem outros livros: o Livro vermelho do Mao Tsé-Tung, o Manual KUBARK de tortura psicológica da CIA, livros brancos, que são só papéis que encadernei sem escrever nada, livros em que coloquei nomes, reprodução de depoimentos dessas minhas tias –  testemunhos que estão ali dentro.

Esses livros também são seres. Quando você os associa à tortura, eles são corpos; mas são também a cultura que é violentada. Todas essas associações que suscitam acabam compondo essa coleção – chamei Coleção 1973-1978 a esse trabalho. E os livros, ao mesmo tempo, são super reconfiguráveis também.

Nossa primeira visita à exposição produziu uma associação com um trecho do livro de Noemi Jaffe, O que os cegos estão sonhando?[10]. O livro é uma composição do diário da mãe da autora, Lili Jaffe, sobre os tempos em que viveu num campo de concentração nazista, análises da autora sobre esse diário e um texto final de sua filha, Leda Cartum, neta da ex-prisioneira. Jaffe formula:

Lembrar e esquecer são coisas muito parecidas. ...carregados de invenção e realidade.... O que se esquece não é um volume oco, em oposição a um volume maciço de lembranças. O que se esquece pode ser uma massa totalmente preenchida, com imagens e palavras que não falam. Você faz perguntas e elas permanecem mudas. Recusam-se a abrir os olhos e também a serem vistas. O passado esquecido é uma Medusa: quando ele olha nos olhos de quem o chama insistentemente, paralisa o olhar de quem vê. A pessoa fica com a boca aberta e olhos arregalados para sempre. Não se pode lembrar o esquecido impunemente. Cavoucar a memória do esquecimento é enfiar as mãos em montanhas e labirintos e espelhos e pirâmides de lixo, de sujeira, de monstros, de imagens desconexas, em que uma cena de mãe cozinhando pode estar enganchada numa cena de tortura.


Teu trabalho nos parece muito atento aos cuidados requeridos no processo de lembrar e à exigência de transformação psíquica e plástica nas passagens entre a inscrição de um traço de memória e as figuras da obra. O que nos diria sobre invenção e realidade e sobre os processos de ressignificação que esse trabalho produziu?

FV: Essa é uma discussão que a gente tem em torno da memória; não há aquele livro maravilhoso do Manoel de Barros, A infância: memórias inventadas? Essa discussão, do documental e da ficção, esse trânsito do que na memória é a ressignificação que a gente faz dela, a partir do que naquele momento a gente quer falar... A memória, no final das contas, é um grande disparador de sensações, associações... mais do que um acesso que você tem a ela, é tudo aquilo que ela provoca em você. Tudo o que uma memória dispara, e quando você começa a associar e construir e relacionar. E como comunicá-la é um desafio, porque ao trazê-la ao presente ela já não é mais memória, já é uma visão de mundo, você já está falando de ser humano, de uma época...

Esse filme, por exemplo, uma das fagulhas que o acendeu são narrativas da tia Elzira, que é médica e que, quando presa, acabava sendo uma médica dos que saíam da tortura – ela sabia cuidar das pessoas, sabia examinar os companheiros. E aí tinha o médico da outra ponta, que examinava os presos antes da sessão de tortura. E ainda o médico que assinava os laudos falsos. Assim tive a ideia da performance que ia ser antes do filme: haveria dois médicos, um médico pegaria um livro desses, faria um exame de toque, sentiria e o outro médico examinaria com pressão, estetoscópio e sentaria o cacete, examinaria de novo, sentaria o cacete... iam ser estas duas cenas; um era eu, o outro era o Toninho, o serralheiro. No final acabei mudando de ideia pra deixar essa bomba atômica ali dentro da caixinha, e também perenizar o filme na exposição. Advém de um evento desses, de uma história dessas, que tem uma força terrível – imagino uma história em quadrinhos que traga esse drama, que é uma coisa que estou fazendo.

A memória vem aí provocar a gente para construir com ela; como diz o Boltanski, não é papel do artista falar a verdade, é fazer você sentir a verdade. E aí, como? O como é a questão das artes, não o que: com qual linguagem? É filme, é livro, é gráfico, é pictórico? E uma parte fica para o espectador, você deixa a obra mais aberta, respira mais...

 

______________________________


[1]Psicanalista, doutora e mestre pelo IPUSP, especialista pelo Lugar de Vida. Analista visitante do Grupo de Arte e Psicanálise do EBEP-SP, convidada pelo Boletim Online do Departamento de Psicanálise para colaborar nesta entrevista.
[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante da equipe editorial do Boletim Online. Membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos, integrante do Grupo de Arte e Psicanálise do EBEP-SP.
[3] Stela Barbieri, artista plástica, é esposa de Fernando Vilela e, assim como nossa colega Elaine Armênio,  gentilmente acompanhou esta entrevista.
[4] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, Cristina Herrera compõe a equipe da Clínica do Testemunho de Projetos Terapêuticos.
[5] Rancière identifica como próprias ao regime representativo das artes – também chamado regime poético – as seguintes três regulagens: uma suposta dependência do visível em relação à palavra; uma hierarquia estabelecida entre saber e não saber e entre agir e padecer; uma pretensa fronteira entre acontecimentos e sentimentos, entre ficção e verossimilhança, entre palco e platéia. Emancipada desta tríplice obrigação, a ruptura antirepresentativa na artes funda um regime estético em que o visível não faz ver, mas impõe presença - a arte se distingue então por um modo de ser sensível que é próprio a seus objetos.
[6] Stela Barbieri associou essa perspectiva à da construção de haicais, lembrando que Fernando fez um livro há pouco tempo nessa forma poética japonesa.
[7] Dedicado aos que lutaram contra a ditadura militar brasileira e às vítimas da violência do Estado: http://vimeo.com/106014954
[8] Livro escrito por Ray Bradbury em 1953; filme de François Truffaut, de 1966.
[9] Calvino, Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 138.
[10]2012, Ed. 34.





 
 
Departamento de Psicanálise - Sedes Sapientiae
Rua Ministro Godoi, 1484 - 05015-900 - Perdizes - São Paulo - Tel:(11) 3866-2753
www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/