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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    32 Novembro 2014  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

DE COMO PENSAR POLITICAMENTE A PSICANÁLISE


CIDA AIDAR[1]

A mesa Lei e Estado de exceção teve como palestrantes Caterina Koltai, psicanalista e socióloga e Flávio Carvalho Ferraz, psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise. Ante a dificuldade de fazer um registro da densidade de pensamento teórico-clínico apresentada, sem empobrecê-lo muito, optei por fazer um relato, numa tentativa de conversa entre as duas falas na intenção de comunicar algo do que circulou.

As falas tiveram eixos diferentes de organização e ao mesmo tempo houve uma confluência e sintonia em relação a questões essenciais para pensar o tema. Mobilizados pela proposta do evento - o que a psicanálise tem a dizer -, ambos se ocuparam em localizar suas falas: Caterina relacionando psicanálise e política e Flávio localizando a questão sobre o que o psicanalista, a partir de seu lugar, tem a contribuir na compreensão dos efeitos do Estado de exceção sobre os sujeitos submetidos, buscando no repertório psicanalítico os referenciais que conduzam ao tratamento do problema sob o ponto de vista da subjetividade.

Partiram de um ponto comum, Freud em Totem e tabu, trabalho sobre a exceção e a lei, que para Caterina é uma demonstração do comprometimento dele com a política de sua época e sua respectiva proposta de democracia, na medida em que o contrato social freudiano vai da exceção (pai da horda) à lei (contrato social firmado pelos irmãos). O mito do assassinato mapeia os pressupostos psicanalíticos da cultura e da civilização do passado, presente e futuro. A tese freudiana para a passagem da barbárie à civilização é útil para pensar as idas e vindas da humanidade, já que a passagem da horda à lei não é linear nem direta em nossa história.

Os campos de extermínio nazistas da Segunda Guerra instauraram uma ruptura civilizatória, diz Nathalie Zaltzman; esse acontecimento marcou o colapso da civilização ocidental em sua função de proteção do indivíduo contra o reino da morte. Ferida coletiva e individual, marcou um tempo em que o homem deixou de ser homem para si e para os outros. Aqui, Caterina e Flávio confluíram, tomando Agamben e seu pensamento sobre o Estado de exceção para construir o paradigma da modernidade; reflexões sobre o poder, o limite e a linguagem, característica humana que nos confere o exercício do poder. Ora, o progresso da civilização não conseguiu ultrapassar o assassinato; no massacre do século XX, o assassinato se inscreveu como acontecimento possível fora de qualquer norma. E pior, fez escola, vindo desaguar nas práticas desumanizadoras das ditaduras latinoamericanas.

A partir daí, como pensar a vida reduzida a algo puramente degradável, vida nua ou vida exterminável vivida pelo homo sacer, incluído em sua exclusão, o humano definido como passível de ser assassinado sem que isso seja visto como transgressão e sem punição aos assassinos? Vida que não merece ser vivida e ocupa uma zona de indiferenciação fora do espaço jurídico e político, produzida pelo poder soberano através do Estado de exceção. O Terceiro Reich é paradigma, mas as ditaduras da América Latina usaram os mesmos métodos de exclusão, convertendo em vida nua um grande segmento da população, cindindo-o da vida humana.

O campo de extermínio seria a matriz escondida do espaço político no qual ainda vivemos; sentimos os efeitos da violência dessa época. Flávio tomou a formulação de Agamben como ponte para a ligação entre a natureza mesma do Estado de exceção e seus efeitos sobre o sujeito: “…espaço anômico onde o que está em jogo é uma força de lei sem lei”. Aqui mais uma vez a referência a Totem e tabu, em que a operação que conduziu à civilização foi a troca de uma “lei sem lei” por uma lei pactuada. No entanto, a tentação autoritária jamais foi proscrita da civilização e a história se pauta por revoltas diante da força bruta imposta pelos detentores do poder. Flávio seguiu dizendo que o Estado de exceção ou de suspensão de direitos recoloca os sujeitos diante de uma insegurança similar à experimentada na horda primeva ante o pai onipotente, aquilo que em psicanálise conhecemos como experiência de desamparo e de trauma. O estado de exceção exercita impunemente a violência, lançando suas vítimas no abismo do desamparo, a sociedade lançada a um estado análogo à criança abusada pelo próprio pai. Caterina, ainda em Agamben, apontou para o paradigma da segurança como técnica normal de governo, o que intensifica a prática da tortura, sempre existente nas sociedades humanas. Há uma estreita e necessária relação entre Estado de exceção e a violação dos sujeitos, segundo Flávio, consubstanciada em seu extremo na tortura, experiência radical de desamparo, de sujeição plena e total. Além de nunca ter sido erradicada, no pós 11 de setembro surgiram teorias de legitimação da tortura. Ambos seguiram falando da dessubjetivação causada pelo Estado de exceção - para Agamben, o paradigma do Estado Moderno – onde os sujeitos são esvaziados de toda e qualquer identidade. Flávio recorreu à ideia de trauma coletivo, entendido como estado-limite para a experiência da subjetividade, com o risco do desligamento das representações psíquicas e do esvaziamento de sentido. A superação desses estados se dá quando é possível o retorno à vida política e à ação coletiva que ocorre no processo de redemocratização, quando o futuro acena com a possibilidade de reparação da injustiça do presente. Caterina trouxe a necessidade de pensar um outro direito que nos permita reencontrar o verdadeiro sentido da política, através de uma ação que pudesse romper o laço entre violência e direito. Há uma nova ética pós Auschwitz, cujo estatuto é o testemunho.

Depois da segunda Guerra, os psicanalistas foram convocados a pensar teoricamente sobre esse trauma inenarrável. Foram obrigados a levar em conta a História que acompanha e emoldura a história do sujeito e tomar a responsabilidade de ouvir a transmissão geracional da destruição e da resistência. Aqui ambos falaram da importância da Comissão da Verdade e das Clínicas do Testemunho: o ato de testemunhar confronta a humanidade com sua parte maldita e ao mesmo tempo chama a atenção para o desafio da posição ética que consiste em transmitir o indizível. Flávio segue dizendo que falar à exaustão do Golpe e da Ditadura nos prepara para uma profilaxia do futuro; no entanto, não nos exime de continuar detectando e denunciando os enclaves da exceção que subsistem no chamado Estado de direito. A Lei de Anistia brasileira foi sem dúvida um grande avanço na tentativa de reparação do Estado, mas não permitiu - até agora - punir os algozes. Para Flávio, a ab-reação curativa só acontece quando se faz justiça. E por fim, Freud nas palavras de Caterina, para quem a lei jurídica é efeito da lei simbólica, condição de existência de toda lei.

As excelentes colocações de Caterina e Flávio são uma confirmação de que a psicanálise tem o que dizer, seja de seu ponto de vista específico, inclusive com uma proposta clínica, seja na articulação com outros saberes. Essa foi uma bela amostragem de como pensar politicamente a psicanálise.

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[1]Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.


 
 




 
 
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