RUBIA DELORENZO[2]
É banal, cotidiana a história.
Namorados num passeio de carro, com uma parada para o sorvete. A volta para casa no fim da jornada, a acolhida que recebe a menina.
No entanto, a atmosfera em que é narrada tem espessura. Espessa e seca, violenta, mantém uma tensão comparável à de Domingo no Parque: o sorvete e a rosa, o sangue e a faca.
Contudo, no conto, não há traição nem triângulo. No canto, ao contrário, tudo é passional: algo é observado, é pressentido. Vê-se a mulher amada nos braços do homem amigo. Há vertigem e desatino.
O tempo entre uma coisa e outra, entre o visto e o acontecido, é um tempo interior, é o instante do ferimento na alma. Nele, condensa-se o sentido do vivido. Isso nos sobressalta, antecipamos o drama. Há suspense, tristeza, consternação.
Na narrativa de Stigger, o tempo em que o espaço é percorrido é velocidade pura que estilhaça os acontecimentos. Estes, desfiguram, mas são observados com naturalidade.
É assim que a história se conta. Conta-se no cronômetro, nos minutos, nos segundos, nos intervalos que registram as mutilações, os ferimentos do corpo da menina, que se esfacela e desordena.
O corpo, aqui, não é contado no sofrimento da paixão.
Também não é narrado à luz da fragmentação, pela angústia que o vê despedaçado - língua, tórax, laringe - como no desespero de Schreber.
Tampouco é relatado no interior do discurso do doente imaginário, para quem não há minúcia na língua, não há palavra capaz de dar conta da dor difusa do corpo.
Não é também a queda do erotismo rumo à função orgânica do corpo, tão cara à histeria, que aqui vemos descrita.
Penso que é, antes, um corpo aviltado pelo sincronismo com o ritmo vertiginoso do automóvel, que ignora as inscrições que espaço e tempo operam sobre nós. Corpos cujos pedaços se desprendem, triturados. Corpo que é descontornado pelo choque, pelo impacto, talhado por uma máquina louca e desgovernada que o reduz, finalmente, a uma poça sangrenta.
Corpo que não nos consterna, corpo que nos horroriza.
Quando a menina chega de volta à casa, assim, arrebentada, reduzida a um corpo retalhado, a um cactus no deserto, nem mãe nem namorado se espantam. Tampouco pressentem qualquer drama.
Batizada Domitila, me digam, porque essa menina se mutila? O que busca ao lançar-se bruscamente contra os objetos? Porque se joga, se arremessa, porque se corta e se fere, porque quer perder seus membros, seus contornos, porque busca espatifar-se ?
Quem não olha e não é olhado, se furta ao fascínio e também à repugnância. A ausência do olhar é mutiladora. Desmancha os corpos.
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[1] “Domitila” In:
Gran Cabaret Demenzial, Verônica Stigger, CosacNaify, 2007. Verônica Stigger é a escritora contemporânea nascida em Porto Alegre em 1973 e há vários anos radicada em São Paulo. Doutora em Artes pela USP, foi a curadora da exposição
Maria Martins: metamorfoses (MAM 2013), pela qual ganhou o prêmio da ABCA – Associação Brasileira de Críticos de Arte. Além do
Gran Cabaret Demenzial, publicou os livros de contos:
O trágico e outras comédias (7 Letras 2004),
Os anões (Cosac Naify 2010) e o romance
Opsisanie Swiata (Cosac Naify 2013), vencedor de 3 prêmios, dentre os quais o Prêmio São Paulo de Literatura 2014. (Nota do Editor)
[2] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.