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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    33 Abril 2015  
 
 
NOTÍCIAS DO CAMPO PSICANALÍTICO

HAPPY NEW EARS


 SílVIA NOGUEIRA DE CARVALHO[1]


Em 7 de janeiro de 2015, numa operação insólita, 2 jovens franceses fuzilaram 12 pessoas ao invadirem a redação do jornal semanal Charlie Hebdo em retaliação à satírica edição Charia Hebdo, de 3 de novembro de 2011, recebida como insulto aos mulçumanos.


Diante de filmes ou de outras cenas da vida corrente em que a manifesta paixão por um homem morto atinge o paroxismo da identificação primária, não raro estremeço. Ocorre, por exemplo, frente à imagem de um militante que responde "Presente!" à invocação do nome do companheiro caído. Quando metáfora, por demais condensada, tal forma poética nos cobra desdobrar equivalências simbolizantes, pois nela estariam presentes: o amor pelo morto e a identificação aos ideais compartilhados.

A situação não é a mesma quando se trata da identificação a um objeto - por mais falante que um objeto possa ser, quando escrito ou obra. Assim se deu em apaixonadas manifestações em torno do assassinato dos cartunistas do semanário Charlie Hebdo e de outras pessoas próximas. A princípio se disse: "Je suis Charlie" - e assim se dizia "Eu sou esse jornal que a morte quis calar" -, antes que eventualmente se dissesse "eu sou o cartunista Wolinski, Cabut, Charb, Tignous ou Honoré, o revisor Mustapha Ourad, a psicanalista Elsa Cayat, o economista Bernard Maris, o visitante Michel Renaud, o trabalhador Frédéric Boisseau, o agente Ahmed Merabet ou o policial Franck Brinsolaro”, para que por fim entretanto passasse a haver muitos que dissessem: "Je suis flic". Eu sou policial?! Subitamente transportados do tremor diante da intensidade da perda ao temor perante o contágio fascista, partimos em busca do rastro das palavras de colegas que viveram de perto os acontecimentos do 7 de janeiro francês.

Em resposta à declarada impossibilidade ética de identificação com a vítima, Slavoj Zizek atualizou a identificação irônica com o dizer de um antigo agressor: "Eu sou estúpido e maldoso"[2]. Em seu artigo de 16 de fevereiro, recupera as origens do Charlie Hebdo, sucessor do Hara-Kiri – periódico banido depois de haver ironizado a morte do general de Gaulle; um leitor então escreveu ao Hara-Kiri, acusado-o de ser estúpido e maldoso, e o jornal adotou a frase como seu slogan oficial... O pensamento de Zizek reitera a tese benjaminiana pela qual “toda ascensão do fascismo evidencia uma revolução fracassada” [3] – convocando-nos a derrotar os antissemitismos através da articulação do motivo anticapitalista a eles subjacente de uma forma direta, não deslocada.

Em artigo do dia 10 de janeiro, Jacques-Alain Miller cuidou de identificar, no ato terrorista, "o retorno do blasfemo" [4], culminando na interrogação sobre o quanto precisamos do gozo satírico do nenhum respeito iconoclasta, que é o antípoda do gozo religioso da submissão ao Um. Em minha opinião, seu breve escrito valoriza a proposição feita pela artista Laura Erber em 15 de janeiro, pois leva a pensar que abrir mão desse gozo iconoclasta significa deixar cair por terra a crença de que "os artistas vão salvar o mundo...[5]".

Em “O vermelho e o tricolor”[6], o filósofo Alain Badiou conceitualizou o crime fascista a partir da articulação de 3 características:

1)    crime orientado por motivações ideológicas identitárias: nacional, racial, comunitária, consuetudinária, religiosa..., configurando assassinatos antissemitas;
2)    crime de violência extrema, assumido espetacularmente a fim de impor a ideia de uma determinação fria e absoluta que inclui a probabilidade da morte do assassino, colocando em ação o aparente niilismo do “viva la muerte!”;
3)    crime que visa – por sua grandiosidade, surpresa e estado fora da norma – à criação de um efeito de terror, por conseguinte estimulando reações descontroladas de vingativa contra-identidade, as quais justificariam, por simetria, o atentado sangrento.

Badiou faz psicanálise ao identificar no consensual pacto republicano tricolor - forma “democrática e laica” que contemporaneamente proíbe o uso do véu mulçumano - o totem francês. Por isto, mais além das pseudoidentidades, seu escrito areja a possibilidade da identificação a um traço: "Nós somos vermelhos" - e convoca à manifestação pública de nossas bandeiras.

Há muito tempo, Norberto Bobbio[7] sustentou que o vermelho implica na articulação da lógica da diferença baseada no critério da igualdade social. Por isso chama igualitários àqueles que consideram mais importante o que em comum nos une, diferentemente da direita do parlamento onde jazem os meritocratas, a naturalizar a competição, afastar os diferentes e produzir seu retorno violento.

Assim, numa política para o cotidiano, trata-se de invocar o dissenso, em acordo com Jacques Rancière, como possível lugar de superação das pequenas e grandes violências surdas. E porque tudo isso se deu nos inícios deste 2015, restou relembrar John Cage desejando a todos Happy New Ears!

 

Fevereiro de 2015


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[1] Psicóloga, analista institucional, psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Membro do EBEP – Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos.
[2] http://blogdaboitempo.com.br/category/colunas/slavoj-zizek/ 

[3] Cf. “Pensar o atentado ao Charlie Hebdo” in http://blogdaboitempo.com.br/2015/01/12/zizek-pensar-o-atentado-ao-charlie-hebdo/
[4]  http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2015/01/o-retorno-do-blasfemo.html
[5] 
http://www.blogdoims.com.br/ims/os-artistas-vao-salvar-o-mundo
[6] http://blogdaboitempo.com.br/2015/02/04/o-vermelho-e-o-tricolor-alain-badiou-sobre-o-charlie-hebdo/
[7] Cf. Bobbio, N.  Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política. São Paulo: UNESP, 1995.

 




 
 
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