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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    33 Abril 2015  
 
 
Dança

FUKUSHIMA MON AMOUR


O trabalho de luto de Tadashi Endo, bailarino que dedicou seu último espetáculo a Fukushima, cidade onde ele viveu parte da infância, destruída por desastres naturais e um acidente nuclear em 2011. Sua dança contempla a morte e a esperança de renovação.

 

Déborah de Paula Souza[1]

 

Um mestre do butô está em cena. De costas para a plateia, Tadashi Endo, um chinês de 64 anos que passou a infância em Fukushima, encara o Pacífico. O mar flutua em azul difuso no fundo do palco. Tadashi dança ao som de uma melodia familiar: ondas, pássaros, a risada das crianças brincando. Poderia ser uma manhã comum, em qualquer praia do mundo. Mas é o dia 11 de março de 2011 no Japão. O bailarino nos transporta ao momento exato em que a terra e o mar entraram em desacordo.

O maior terremoto registrado no país foi seguido de um tsunami, causando a morte de mais de 18 mil pessoas. Até hoje, muitos corpos ainda não foram encontrados. Entre as províncias afetadas está Fukushima, onde o desastre natural ganhou contornos ainda mais trágicos, com o vazamento de material radioativo de uma grande usina nuclear instalada na região. É nesse ponto convulsivo do mapa - terra trêmula, mar em ebulição e explosão nuclear - que Tadashi situa seu último trabalho, Fukushima, mon amour. O título remete  ao filme de Alain Resnais, Hiroshima, mon amour – que também alude a uma cidade japonesa devastada pela bomba nuclear durante a segunda guerra.  Com trilha sonora comovente, composta pelo músico brasileiro Daniel Maia, o espetáculo passou por uma temporada em São Paulo e outras capitais brasileiras no início de 2015.

 

A paisagem nuclear

 

A apresentação começa hipnótica, mas sabemos que esse dia não terminará bem. O que não sabemos é até onde nos levará Tadashi, no seu solo surpreendente. Um artista em trabalho de luto. A performance é precisa e suave, mas segue num crescendo insuportável até um baque seco: o som e a luz criam a impressão de que o bailarino vai perfurar a paisagem, mas ele não pode atravessá-la. Seu corpo é fixado na parede como um carimbo. Imóvel. (Essa cena resgata fotos históricas da segunda guerra, que mostram pessoas mortas, grudadas nos muros das ruas de Hiroshima durante a explosão da bomba nuclear e que foram uma das fontes de pesquisa do artista.)

 

Ficamos hipnotizados por esse flash mortal. Só há silêncio, a vida parou. Então escutamos os uivos. Tamanha dor não cabe num homem. Tadashi se transforma em cão, em um velho cego e louco e, por fim, numa mulher. Essa travessia modifica seu corpo, seus olhos, suas vestes - o terno cinza do homem cede lugar à nudez do bicho e depois aos quimonos brancos e floridos. Do cão pouco sabemos, mas adivinhamos suas feridas pela orquestra lancinante de uivos. O velho demente é um assombro. Como pode um corpo se transformar até o desamparo total e definir seu movimento por uma rota que se estilhaça a cada passo?  O que Tadashi dança é a quebra de sentido.  Palavras soltas são projetadas em cena, elas falam da vida, da morte e da natureza. O que pode um corpo solto no sonho do mar quando a morte se manifesta em 9 graus de magnitude? (o maior terremoto da história do Japão), e monstros marinhos, nunca vistos sequer em fábulas, engolem as cidades, e o derrame da usina contamina tudo ao seu redor? O bailarino aos poucos se transforma numa mulher. Ela embala uma criança? O azul destruído insinua outra luz? Não se sabe por qual operação de magia o espetáculo desliza em torno do próprio nome. De Fukushima ao amor, a morte vai cedendo passagem à vida e à esperança de renovação. Não há masoquismo nem melancolia, o trabalho de luto é feito em uma hora extrema e ininterrupta. Uma hora fora do tempo, como pode acontecer na arte e nos antigos ritos de passagem, em que a dança e a música sempre tiveram o poder de convocar os deuses. A diferença é que Tadashi Endo convoca os homens e não fala do céu, mas da Terra. Ao final da apresentação, o velho bailarino retorna ao palco depois dos aplausos de uma plateia ainda aturdida e diz: “Só o amor pelos homens e pela natureza podem nos ajudar agora”. Lembra ainda que os japoneses sempre conviveram com os desastres naturais, respeitam as forças da natureza e aprenderam a lidar com elas. Mas que não estão prontos para lidar com desastres provocados pelo homem, como a bomba da segunda guerra ou o acidente atômico de Fukushima.

 

Chuva, música, butô

 

Impossível viajar para essa Fukushima amada da infância, agora tão machucada, sem o amparo da trilha sonora. Para compor a obra, o brasileiro Daniel Maia  passou um mês  em Göttingen, na Alemanha, onde Tadashi dirige o MAMU Butoh Center (O nome refere-se ao zen budismo. Ma significa o espaço entre as coisas, MU significa o vazio).

 

No dia em que Maia chegou, a chuva forte havia inundado o porão e o primeiro andar da casa de Tadashi. O músico, o bailarino e sua mulher passaram dias limpando e enxugando a casa. Poderia ser uma tática zen, que leva em conta o acaso e considera qualquer prática doméstica uma meditação, se você estiver totalmente presente. Seja como for, era o imponderável dando o tom.

Ex-colaborador de Kazuo Ohno na década de 80, Tadashi é considerado um expoente do butô. Essa arte mistura elementos de teatro nô e kabuki, dança, performance, e bebe nas fontes das tradições  espirituais do Oriente, como o zen e o taoísmo, em que as forças  opostas e complementares Yin/Yang lidam com os binários macho/fêmea; luz/sombra; vida/morte.

A todas essas referências, Tadashi adicionou influências do teatro e da arte contemporânea. Desde 2002, o artista visita regularmente o Brasil para apresentar suas criações e ministrar workshops para atores e bailarinos. Antes de Fukushima, tive a oportunidade de assistir seu espetáculo anterior, Ikiru (significa vida), em homenagem à Pina Bausch,  morta em 2009. Ali, ele dançava com uma grande placa de metal, que funcionava ora como uma partner, uma lápide, ou um grande espelho projetando luz (seria essa a síntese de Pina, a dama querida da dança contemporânea?). Ikiruera um réquiem para  a coreógrafa, ao som de Ave Maria e outros temas de evocação daquilo que é mais sagrado – uma série onde podem se alternar a arte, a vida, a morte, o amor.  Com Ikiru  e Fukushima, Tadashi reafirma a potência de sua dança borderline – atuando sempre nas bordas daquilo que importa e correndo todos os riscos. Ou melhor, dançando com eles.

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[1] Psicanalista e jornalista. Aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e participante do grupo de trabalho Sexta Clínica.




 
 
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