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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    33 Abril 2015  
 
 
CINEMA

UMA EXPERIÊNCIA EM BIARRITZ: A PSICANÁLISE DESTERRITORIALIZADA PELO CINEMA


MIRIAM CHNAIDERMAN[1]



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O cassino de Bellevue, em Biarritz, acolheu o Festival Internacional de Programas Audiovisuais

 

Estou lançando, em circuito comercial, meu primeiro longa-metragem como psicanalista-documentarista. O De gravata e unha vermelha[2]  a partir de 7 de maio estará nos cinemas. Lançar um longa-metragem em circuito comercial escancara contradições bastante difíceis: o aconchego do consultório, o recolhimento necessário, a interioridade do encontro analítico, tudo isso fica na borda de algo desconhecido, que não é o nosso cotidiano como psicanalistas. No cinema é preciso ir para fora, buscar sempre aumentar o número de espectadores, é um evento na cidade e no mundo. Passa a fazer parte do dia a dia dar entrevistas, ver seu filme em críticas em jornais, conversar com formadores de opinião. Será minha primeira experiência. Sinto que ainda temos muito a pensar sobre isso tudo. Já ouvi muitas críticas sobre minha participação em entrevistas relativas a fatos políticos, fatos do cotidiano, enfim, sobre emprestar minha condição de psicanalista para opinar sobre fatos do dia a dia. Ironicamente me diziam: “Quando você vai falar do resfriado da Xuxa?” Agora, não é disso que se trata. Fiz um filme para cinema sobre as novas sexualidades. E enfrentei uma temática que questiona alguns parâmetros que vêm norteando a prática psicanalítica. Como pensar a castração depois de ouvir alguns personagens do De gravata e unha vermelha? Letícia Lanz, em um momento do filme, afirma não querer mudar o nome – ela é Geraldo Eustáquio de Sousa – nem os genitais. Mas adora os seios. Indaga-se: “Então, eu sou uma mulher de pênis...”.

O filme De gravata e unha vermelha inspirou-se muito na Laerte, que aos 60 anos passou a apresentar-se como mulher. Hesitei enormemente em participar do concurso do MinC para conseguir o dinheiro para fazer o filme.  Não fosse Reinaldo Pinheiro, meu companheiro e produtor, eu não teria mandado. Já questionava exatamente isso, da dificuldade que é fazer cinema e ser psicanalista. Só participei do concurso por que achava que não ganharia. E ganhei, em primeiro lugar....

Sempre falo que os temas de meus filmes têm a ver com o fato de eu ser psicanalista. Antes da cineasta, está a psicanalista que sai para o mundo e, com a câmera, tem acesso a mundos que só assim aparecem. É grande a discussão, entre aqueles que refletem sobre o documentário, sobre a questão do depoimento que é dado a partir do momento em que a câmera é introduzida. Nos filmes de Eduardo Coutinho sempre me impressionou a fala das pessoas. É como se a câmera introduzisse a cidadania no campo do sofrimento. A encenação, que se dá a partir da configuração de uma situação de filmagem, parece permitir que revelações aconteçam. Andrés Di Tella, no livro organizado por Dora Mourão e Amir Labaki, O Cinema do Real, afirma: “Diante da câmera de um documentarista sempre há atuações (encenações). A presença da câmera pode suscitar certa falsidade, mas também abre espaço para revelações que sem a câmera não se produziriam. A consciência de que estamos filmando gera no sujeito uma entrega de si dificilmente possível sem um compromisso com o ato documental”[3].

A ideia do De gravata e unha vermelha já surge a partir de algo de domínio público: foram as entrevistas de Laerte, em jornais e revistas, que me levaram a propor o documentário. Laerte contestava o binarismo de gênero e era portador de mensagens de libertação das algemas de uma cultura que padroniza as definições de comportamentos de gênero. Dudu Bertholini me conduziu até a Rogéria, Ney Matogrosso, a Banda Uó, figuras que têm um recorte bem claro em nossa cultura. Essas figuras, no filme, misturam-se a outras, não tão famosas, que vivem radicalmente em seus corpos o questionamento do que é ser homem e do que é ser mulher.

Ainda na montagem, assinamos contrato com uma distribuidora, a Imovision. Pela primeira vez um filme dirigido por mim deveria chegar aos cinemas.

A primeira exibição do filme aconteceu no Festival É tudo verdade, em abril de 2014. Ver um filme, milimetricamente bordado, projetado em uma tela grande, com o cinema lotado, é de uma emoção única. Todos os protagonistas puderam se ver.

Depois vieram outros festivais, pelo Brasil afora. No Rio de Janeiro, o filme ganhou o prêmio internacional Felix, para filmes de temática LGBT. A partir daí, vários convites. Inclusive do Festival International des Programmes Audiovisuels, de Biarritz. O De gravata e unha vermelha fez parte da seleção oficial desse importante festival, que acolhe também séries para televisão e tem todo um setor dedicado à criação nas novas tecnologias. Surpreendentemente, eles me convidaram. Recebi passagens e hospedagem. Ia acompanhar meu filme em um país estrangeiro, com uma outra língua, com uma outra história. Sei que um bom documentário deve sempre transcender o tempo e o lugar onde foi realizado. Deve transcender especificidades culturais e atingir as pessoas de todos os lugares. Mas, é um grande teste esse. Nesse filme figuras da história na luta pela libertação do binarismo de gênero estão presentes. Será que na França entenderiam a importância do grupo de teatro dos anos 70, os Dzi Croquetes? Saberiam quem é Rogéria? Ficariam comovidos com a canção de Ney Matogrosso ao final do filme? Rogéria aliás, faz referência ao Cassino de Bellevue em Biarritz, quando fala dos hormônios que tomou: “Eu só queria ser linda, eu estava em Biarritz, no Cassino de Bellevue....” Agora, lá ia eu, para o Cassino de Bellevue, sede do festival.

Biarritz é uma linda cidade à beira do Atlântico. Bem na fronteira com a Espanha. Bilbao fica a uma hora e meia de ônibus.

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Meu hotelzinho ficava em uma praça, bem na beira da praia. Fazia um frio atroz, dois graus acima de zero. Um vento fustigava a areia. Coloquei minha mala no quarto e fui me credenciar. Caminhei na beira do mar, absolutamente comovida e encantada.

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Fui acolhida com carinho. De noite, a abertura do Festival, com uma recepção festiva. Assisti um capítulo inicial de uma série para televisão. Na manhã seguinte, fui ao cinema onde, depois, seria exibido meu filme. Vi que estava na competição da categoria Reportagem e Investigação. Havia também a categoria Documentários de Criação. Assisti um documentário instigante sobre Snowden. Aliás, passei o dia assistindo documentários. O primeiro filme era às 9:30 da manhã. E o cinema estava lotado. A população de Biarritz acompanha o festival e a ele se dedica. Com entusiasmo. Isso é comovente.

Assisti um filme que me marcou enormemente, Ruanda, a vida segundo a fala de mães. São seis mulheres tutsies, violentadas em abril de 1994 pelos hutus, que falam de seu sofrimento. O silêncio, a dignidade no enquadramento, a relação dura com os filhos que são fruto de terríveis estupros, tudo isso contado em uma linguagem seca, nada melodramática.

Meu filme também passou às 9:30 da manhã. Com o cinema lotado. Vi meus personagens tão queridos passarem pela tela francesa, legendados em francês. E vi a plateia francesa rir e chorar. O auditório quase veio abaixo quando Rogéria falou de Biarritz. Depois havia uma conversa comigo. Um senhor, irritado, falou que todos os personagens eram exibicionistas. Questionaram por que eu teria escolhido personagens tão claramente do show business... Eu falei que não queria colocar a questão do gênero como sendo algo das margens de nossa sociedade, que eu queria mostrar como tudo isso faz parte do mundo de todos nós. Ouvi lindos comentários. Uma senhora falou que era a primeira vez que via um filme sobre essa temática que não abordava esse questionamento pelo lado da perversão. Depois, vieram pedir meu e-mail, queriam manter contato. No dia seguinte, o filme passava novamente nesse horário, em outro cinema. Um cinema maior, e que também estava lotado.

Tive a linda experiência de ser abordada na rua para falarem do filme, para me elogiarem. Tudo isso me comovia enormemente.

Tenho uma imensa gratidão ao cinema. Vivo, sim, difíceis estranhamentos. Ser uma psicanalista que, de repente, está em um país de língua estrangeira, em meio a muitos jovens cineastas, não deixa de provocar uma sensação de falta de lugar. Depois de Biarritz, o filme foi exibido em Taiwan. Sem a minha presença. Mas, recebi o catálogo, com a foto do filme e os ideogramas chineses que contam a sinopse....

Essa perda de chão que se concretiza em experiências como essa de Biarritz tem sido algo precioso na minha clínica. Poder se abrir para o enigmático de cada passo tem que ser a bússola de nosso trabalho como psicanalistas.

 

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[1] Psicanalista, ensaísta e documentarista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[2]A este respeito, leia o artigo Os mil sexos de Taís, João, Candy Mel, Laerte ....e de todos nós, de Miriam Chnaiderman, publicada no Boletim Online n. 28. clique aqui para ler o artigo
[3]Di Tella, Andrés. “O documentário e eu”. In: Mourão, Maria Doria; Labaki, Amir. (Org.). O Cinema do Real. São Paulo: Cosac Naify, 2005.




 
 
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