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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    33 Abril 2015  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

 

Sobre a conferência O mal-estar na cidade: política e psicanálise, de José-Miguel Marinas


A CIDADE E AS FORMAÇÕES DO INCONSCIENTE

 


 ALESSANDRA SAPOZNIK[1] E SORAIA BENTO[2]

 

Não existe amor em SP
Um labirinto místico
Onde os grafites gritam
Não dá pra descrever...

(Criolo)



De uns tempos para cá, forças coletivas desejantes ganharam vozes agudas e vêm colorindo o cinzento cenário da nossa cidade. Destacamos algumas dessas manifestações biopolíticas como os rolêzinhos, em que a garotada da periferia, apartada das possibilidades de consumo e de livre circulação, impõe sua presença nos corredores dos shopping centers; o Movimento Passe Livre (MPL) que levou multidões às ruas exigindo direito à mobilidade e ocupação de espaços públicos; o Movimento em Defesa do Parque Augusta que fez uma "vigília criativa" e apartidária para garantir o uso comum dessa reserva de Mata Atlântica em terreno urbano, em resposta à voracidade imobiliária; hortas comunitárias são formadas em praças; coletivos artísticos promovem intervenções que convidam ao olhar atento e à pausa e tantos outros.  Peter Pal Pélbart nos oferece uma leitura destes, como expressões de "um desejo de rua crescente e incontido nessa cidade, e para além dela"[3]. Esse desejo de rua renova uma força nostálgica. As grandes cidades podem perder a vocação de serem o lugar de convivência no pluralismo dos seus habitantes.


Vamos assistindo ao fracasso nas condições de inclusão do sujeito, na falta de garantias de comportar a diversidade, nas dificuldades de mobilidade e de moradia, na existência de fronteiras que brecam a circulação, no crescente investimento econômico no espaço privado em detrimento do espaço público. Essas características de metrópole resultaram em graves sintomas sociais que têm nos custado a saúde física e psíquica. Como em todo conflito há um jogo de forças oponentes, acompanhamos a violência da repressão vinda de certos setores da sociedade resistentes às mudanças e ao recrudescimento da intolerância. Vale marcar que a violência da resposta não foi suficiente para calar a possibilidade de sonhar e elaborar propostas para a cidade na qual queremos viver. É como se pudéssemos fazer coro com o espetacular maio espanhol de 2011 em que se entoava na voz dos "indignados": "se não nos deixam sonhar, não vos deixaremos dormir".

Uma vez instalado o mal-estar, cabe lançar mão do pensamento psicanalítico contido nos textos sociais de Freud para buscar compreender o que se passa na relação do sujeito com a cidade no contexto atual. Não apenas pelo interesse que alguns psicanalistas possam ter por uma psicanálise que se articula com a política, mas sobretudo porque é impossível seguir sendo analista se não levamos em consideração o que se passa fora do consultório.

Formulamos algumas perguntas que não serão respondidas nessa breve comunicação, mas que talvez sirvam de provocação para pensar no oportuno convite feito a José-Miguel Marinas. Vamos sublinhar alguns pontos importantes que foram trabalhados no último evento que o Departamento realizou em 2014.


Se nos dedicarmos ao exercício de escutar (na expressão psicanalítica) a cidade, o que emergiria de sua fala? Quais enigmas ela porta? Qual é a história de sua fundação, quais são suas marcas? Ela foi uma cidade investida, uma cidade sonhada por quem, para quem? E por fim, de que forma a cidade afeta a subjetividade de seus cidadãos? E como a subjetividade de seus cidadãos é capaz de modificar a cidade?

Foi a partir desses questionamentos que decidimos, junto ao Departamento de Psicanálise do Sedes, convidar esse filósofo político espanhol para realizar uma conferência intitulada O mal-estar na cidade: política e psicanálise.

O nosso conferencista é professor catedrático de Filosofia Política na Universidad Complutense de Madrid e considera que sua formação foi influenciada, por um lado, pelo marxismo, sobretudo pelo pensamento de Gramsci, e por outro por sua experiência de análise e pelas leituras de Freud, Lacan e Foucault. No campo da cultura do consumo, que é uma das vertentes de seu pensamento, suas referências são Barthes, Marcuse e Benjamin.

Grande parte de sua obra repousa sobre a ideia de que a psicanálise se constitui como uma experiência ética que não se restringe ao contexto mais íntimo da dupla analista-analisando, e que a análise é constantemente atravessada por cenas externas. A psicanálise se apresenta como um potente analisador daquilo que lhe interessa trabalhar em muitos de seus livros, a saber, o consumo como resposta ao esvaziamento do político; o político como a forma de articulação e vinculação da sociedade; o conceito de comunidade e o sintoma comunitário; a cidade e os sonhos; o inconsciente nas cidades, entre outros.

Quais processos inconscientes se dão no contexto da cidade?

A pergunta que se faz presente em muitas de suas publicações é em que medida a psicanálise, como profícua teoria sobre o subjetivo e intersubjetivo, pode aliar-se à filosofia política para trazer luz ao entendimento sobre a crise que se apresenta no campo do social. Acredita que os conflitos entre sujeito e civilização propostos por Freud têm atualmente uma dimensão mais radical, dado que apontam para uma falta de legitimação da vida e para processos psicotizantes.

Ao retomar os desenvolvimentos de Walter Benjamin no Trabalho das passagens, Marinas explora a hipótese de que a cidade, como espaço cívico e político, também pode ser lida como um escrito.  Não apenas pode como pede para ser interpretada (por essa razão a figura da esfinge é tão presente nos seus livros).

Marinas trabalha na articulação de dois modelos de cidade presentes hoje em dia: o modelo amuralhado e o modelo disperso, quase como um prolongamento de contextos ricos e pobres.

O modelo amuralhado tem como maior expoente os condomínios fechados ou os edifícios híbridos que conjugam moradia com shopping centers, ao que ele irá chamar de cidades blindadas. Aqui encontramos um predomínio do individualismo, do isolamento e do vínculo inmunitas, onde a urbe responde ao puro mercado.

Os anúncios de venda de residências em condomínios fechados oferecem: "condomíno totalmente fechado com uma logística que utiliza a mais alta tecnologia, portaria blindada, equipada com câmeras, vigilância 24 horas, central de monitoramento, sistemas de câmaras de televisão, muros de 4,2 m de altura, uma cerca de aço de 3,2 m de altura que permite a integração com o bosque."

O que podemos pensar depois de ler essa descrição alucinante, que mais parece a de um presídio? Há que se perguntar: qual a razão de se pagar caro para viver assim? Qual é a fantasmagoria que um projeto residencial como esse oculta?[4]

O “mercado” sabe ouvir as demandas de consumo e por essa razão oferta modos de vida que propõem a contenção necessária para as fantasias de invasão. Subjetividades paranóicas gerando consumidores vorazes por segurança.

Em contrapartida, encontramos o modelo disperso, que privilegia a ideia de vizinhança, de bairro, que pela sua configuração espacial e social conta com uma tessitura mais humanizada. As relações são mais próximas, menos marcadas pela hierarquia. A vizinhança comporta a biografia dos que a compõe e permite o surgimento do que chama de vínculo comunitas (Roberto Esposito), que se relaciona com a possibilidade de fundar uma comunidade que compartilha um bem comum. Nesse contexto a urbe aparece como uma cidade viva. É o inconsciente que faz a cidade.

No caminho dessa reflexão, Marinas pensa o tecido urbano fundado em um cruzamento entre as exigências da polis (uma cidade democrática, para o cidadão) e as exigências do mercado, com o consumo (que imuniza, isola, individualiza).

Em todos os centros urbanos do mundo, co-habitam dois tipos diferentes de cidade: a cidade do progresso e a dos deserdados, que carecem dos serviços mais básicos. A cidade dos deserdados é identificada por abrigar zonas onde a pobreza e a marginalidade se revelam de formas mais diversas.[5]

Calvino, em seu livro As cidades invisíveis, afirma que as cidades estão construídas de desejos e temores, portanto, as cidades são como sonhos.[6]

As cidades, como os sonhos, expõem um cenário manifesto e outro oculto. Por trás do que exibe, oculta-se o que ninguém quer e acabam ocupadas por tudo o que é considerado ilegal, degradado ou marginal. Essas zonas fronteiriças são chamadas de "zonas cinzas" e são bastante demarcadas nas capitais latino-americanas, mas não exclusivamente. Encontram-se aí as favelas, os motéis, os pontos de venda de drogas, os lixões e os hospitais psiquiátricos. Poder-se-ia pensar que esses lugares concentram tudo o que ameaça a sociedade, com tudo o que escapa ao controle e portanto devem ser isolados da suposta ordem das cidades. Temos um exemplo óbvio na Cracolândia, cujo sufixo demarca um território alheio e sinistro que paradoxalmente se encontra no centro da cidade.

Marinas aceitou o convite de flanar pelo centro de São Paulo visitando as antigas galerias que afinam o compartilhamento do espaço íntimo com o social, do comércio com a rua, ficou fascinado com o espaço fora-dentro que as caracterizam; conheceu restaurantes; participou de um sarau flamenco. Enfim, mostrou que não só em teoria aprecia o livre caminhar curioso do visitante.

 

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[1] Pélbart, P. Parque Augusta ou um desejo de rua, https:laboratoriodesensibilidade.wordpress.com/.../parque-augusta-ou-um-desejo-de-rua
[2] Sapoznik, A. La experiencia viajera y el psicoanálisis, Dissertação de mestrado, p.34, Universidad Complutense de Madrid, 2013.
[3] Marinas, J.M. Apresentação El malestar en la ciudad: política y psicoanálisis, Instituto Sedes Sapientiae, 2014
[4] Calvino, I. As cidades invisíveis, Companhia das Letras, 2001.




 
 
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