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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    34 Junho 2015  
 
 
NOTÍCIAS DO CAMPO PSICANALÍTICO

O INTERMEDIÁRIO E O MAL-ESTAR CONTEMPORÂNEO


CRISTINA FRANCH[1]


O Indulto

Father Jacob: “Todas as cartas, que o carteiro traz, são pedidos de intermediação. Sabe o que significa, Leila?.... Acercamos a Deus todos os seres que nos escrevem e nos pedem que rezemos por eles, é bom que as pessoas saibam e sintam que existe alguém que as recordem, que as vejam, que não há nenhum filho de Deus esquecido ou inútil. Que nenhum pedido é insignificante e sim respeitável e importante. Eu as recebo de coração e peço para elas a misericórdia divina.” Leila: “Foi você...você me pediu o indulto?” Father Jacob: “Bom...eu sou apenas um intermediário da misericórdia divina.”
(Filme Letters to Father Jacob do diretor finlandês Klaus Haro)

Se tomássemos a cena acima como uma metáfora do teatro intrapsíquico, a que instâncias do psiquismo cada personagem desse enredo corresponderia? E se ampliássemos a questão para as experiências intersubjetivas do espaço socialmente organizado, quais as funções das instituições da cultura nas intermediações e reparações dos conflitos humanos? Piera Aulagnier diz: “Não é por mero acaso que a história familiar, de boa parte dos psicóticos, repete frequentemente um mesmo drama social e econômico: essa realidade, que quebra todos os parênteses, tem um papel no destino dessas crianças, que a sociedade, num segundo momento, envia às diferentes instituições, para que elas reparem os estragos do qual ela é responsável.”(p.147)

René Kaës, em seu livro Os Espaços Psíquicos Comuns e Compartilhados – Transmissão e Negatividade, nos convida a pensar sobre a categoria do Intermediário na obra freudiana; propõe o Intermediário como conceito que poderia ser o arquiteto de uma problemática que articularia os espaços intrapsíquicos e os intersubjetivos/pluri-subjetivos, sem destruir a ordem própria do social e sem reduzir a ordem própria da realidade psíquica.(p.11)

Ele considera que os sofrimentos psíquicos que ganham relevância e predominância na cultura, nos dias de hoje, são aqueles que levam às patologias da constituição dos limites internos e externos do aparelho psíquico: seriam as perturbações dos estados-limites, as falhas dos envelopes psíquicos, dos sistemas de ligação e dos processos de transformação, patologias do campo intermediário. O sofrimento, nessas condições, seria decorrente da qualidade dos vínculos intersubjetivos nos primórdios da constituição psíquica, das falhas na transformação do narcisismo, levando-se em consideração que a simbolização primária é tributária das condições nas quais o recém nascido foi acompanhado em sua capacidade de encontrar prazer com o próprio corpo e com as primeiras atividades psíquicas, até que o pensar se tornasse possível.

Fazendo um vôo rápido sobre a costura que Kaës tece do campo intermediário na teoria do intrapsíquico freudiano, podemos iniciar com a organização estrutural do aparelho psíquico em instâncias e sistemas separados ou clivados uns em relação aos outros. O inconsciente adviria da divisão originária, do corte intrapsíquico (recalque primário e secundário), ou da não-mediação fundadora que criaria o espaço para a constituição dos sistemas e das instâncias intermediárias entre o inconsciente e o consciente, entre as exigências do id, as do superego e as da realidade externa. O pré-consciente na primeira tópica e o ego na segunda tópica seriam as instâncias que cumpririam as funções de ligação, de passagem, de mediação e de transformação. No Projeto para uma psicologia científica (1895), a noção de paraexcitação é apresentada como uma camada superficial que envolve o organismo funcionando como filtro protetor contra as excitações externas; no limite entre o externo e o interno, estaria associada a uma função vital nas experiências de ruptura, crise e traumatismo. Em A Interpretação dos Sonhos (1900), Freud se refere à teoria do sonho como a teoria do reino intermediário, em que tais formações estariam a serviço da censura que, através do deslocamento e da condensação, substituiriam a representação insuportável à consciência por uma outra de determinação múltipla, intermediária. Em Além do Princípio do prazer (1920), através do jogo do carretel, articula o domínio da ausência do objeto, a capacidade de falar, a escolha do objeto intermediário e a função de ligação do aparelho psíquico; não se encarrega somente da dimensão do conflito e da ruptura, mas da dimensão da criatividade. Em O ego e o id (1923), Freud dirá: “parte do id, modificado sob a influência direta do mundo exterior pelo intermediário Pcs-Cs, (o ego) é destinado a funcionar ele mesmo como intermediário em razão de sua posição como projeção de uma superfície”. Define o ego como um ser-fronteira, um aduaneiro, um contrabandista, um imigrante ilegal. “O ego está submetido a uma tripla servidão e por isso é ameaçado por três tipos de perigo: os que vem do mundo exterior, os da libido do id e o da servidão ao superego. No cumprimento dessa função intermediária, é uma instância de regulação, de adaptação e de defesa”.

Leila, condenada à prisão perpétua por assassinato, recebe, para sua surpresa, um indulto... Não consegue entender... não quer. Não tendo para onde ir, lhe é sugerido, pelo diretor da prisão, que vá trabalhar em uma paróquia afastada da cidade para um padre cego. O padre havia mandado uma carta solicitando alguém que prestasse os serviços de ler e responder as cartas de seus fiéis. No teatro intrapsíquico, um personagem se apavora com o indulto, quer continuar no claustro, punido por seus desejos assassinos, o diretor da prisão faz a primeira mediação com o mundo lá fora, aponta para uma possibilidade... apresenta um projeto. A recusa se apresenta...não precisa de nada...Ele rebate...para onde vai?.. Adverte... para a casa de sua irmã?... O mediador sabia do crime, sabia também da história pregressa que levara ao crime, dos sofrimentos que a tragédia condensava e sabia que um outro lado buscava o indulto, uma saída que permitisse que a vida continuasse...consegue, apesar do desprezo e da desistência, investir um caminho de ligação para fora do claustro. O cenário psíquico estava habitado: pelas forças da desistência, do mortífero, do enclausuramento que busca a dissociação do pensamento e a desconexão com o mundo; por um mediador que precisa encontrar palavras que façam algum sentido no degelo da cristalização; e por um lado que oferece o indulto, a absolvição, que aponta para a continuidade.

A tenacidade das membranas e das estruturas psíquicas intermediárias e a constituição destas é o que seria posto à prova pelo mal-estar do mundo contemporâneo. Em trinta anos, as importantes transformações das estruturas familiares e a fratura dos laços intergeracionais; a mudança nas relações entre os sexos, especialmente no status da mulher; a transformação dos vínculos de sociabilidade, das estruturas de autoridade e a violência do choque entre as culturas, somadas (ou resultantes?) ao incrível avanço tecnológico, à globalização e às grandes migrações abalaram as crenças e mitos que assegurariam a base narcísica do nosso pertencimento a um conjunto social. A membrana do contorno social esgarçada e destituída de seu potencial simbólico reverbera na constituição das membranas e estruturas psíquicas internas individuais, produzindo patologias que vão para além das psicoses, encontrando-se nos corpos que se cortam, emagrecem, são esculpidos, trocam de gênero e sofrem com seus actings violentos sem mediação representacional. Para Kaës, o vínculo da violência seria mantido para criar um estado de não pensamento.

Fazendo o vôo agora pelo campo inter e plurisubjetivo, em Totem e Tabu (1912-13) Freud propõe que a organização do grupo estruturado pelos interditos fundamentais, proibição do incesto e a interdição de matar os irmãos, instaurará uma ordem simbólica entre eles. Esse pacto mediatizaria e transformaria os vínculos sociais e a vida psíquica, que assim poderia abandonar o funcionamento assassino da horda e gerar os processos da cultura. Em O mal-estar na cultura (1929), diz que a comunidade de direito teria como condição a comunidade de renúncia direta dos fins pulsionais, protegeria o indivíduo contra sua própria violência e tornaria possível os vínculos amorosos. Para Kaës, a comunidade de renúncia garantiria a segurança necessária para a formação do pré-consciente, para o trabalho do pensamento e para a manutenção dos vínculos. Recorre ao conceito winnicottiano de experiência cultural para pensar em um caldo comum da humanidade ao qual os indivíduos e os grupos contribuiriam e de onde cada um poderia retirar algo, se tiverem um lugar onde colocar o que encontram. Seria uma extensão das ideias de fenômenos transicionais e do brincar. A cultura seria então um processo e uma formação intermediária.

Father Jacob, cego, já no final da vida, em uma paróquia isolada do resto do mundo, parecia representar os prenúncios do declínio desse lugar para colocar o que é encontrado... uma instituição que parecia estar em vias de extinção. Ao receber Leila, ela, logo nas primeiras cenas, testa-o com sua violência, coloca uma faca de pão em sua garganta, que o padre parece não perceber. Leila deposita ali o que tem de mais destrutivo e desistente, levando o padre a começar a duvidar de si mesmo. Ao mesmo tempo, a leitura das cartas, a percepção da confiança com que os fiéis compartilhavam seus sofrimentos seguidamente e esperavam suas orações e parábolas bíblicas provocam um pequeno deslocamento interno em Leila. Deslocamento que gera o conflito entre a destrutividade e a possibilidade incipiente. Conflito que parece ser mediatizado pela função intermediária dessa instituição da cultura que tem como referencial simbólico a misericórdia divina. Atravessando a desistência e o seu quase suicídio... o quase enlouquecimento de Jacob, Leila consegue descongelar o estado mortífero em que se encontrava e contar para Jacob aquilo que ele já sabia...a violência a que tinha sido submetida desde muito cedo, desde que era bebezinha... sua irmã se interpunha... o que gerava mais violência na mãe, que batia na irmã... Estados de horror, num momento muito precoce, em que o psiquismo tinha pouca condição de metabolização, gerando traumatismos e falhas na constituição das instâncias intermediárias que levariam à possibilidade da simbolização e do pensamento.

Bleger pensa que o ser humano, antes de ser pessoa, é sempre um grupo; sua personalidade é o decantamento do grupo institucional em que foi gestado: casal, família, instituições escolares, religiosas, do qual terá que se destacar para ser um (1979). Missenard afirma que “a psique comum é a parte de si mesmo de que a criança terá que se separar, em parte através dos sucessivos processos identificatórios que marcarão as grandes etapas do seu desenvolvimento”; para ele, a chegada de um recém-nascido provoca movimentos regressivos nos membros de uma família, colocando-os em contato com as partes infantis de sua própria história e com os mitos familiares nos quais são representadas as figuras ancestrais e o lugar que os filhos devem ocupar na família. Conclui, de acordo com os estudos sobre a transmissão da vida psíquica entre as gerações, dizendo que o que não pôde ser representado simbolicamente na psique materna será deslocado para a psique da criança (1985, citado por Kaës, 2004, p.58). Bleger diz que as instituições da cultura serão depositárias das partes mais regredidas, psicóticas, da personalidade. Para Kaës, aquilo que chamamos de modernidade, as sociedades industriais e pós-industriais teriam generalizado as experiências de desenraizamento e de exílio, e que hoje as instituições da cultura – ao contrário das encontradas por Freud, marcadas pelos excessos repressivos – agora sofrem com a falta de delimitação e contorno das suas próprias mitologias, gerando perturbações graves nas referências identificatórias.

Pensando no que Bleger propõe - que as instituições seriam depositárias das partes mais regredidas da personalidade - e voltando à citação de Piera Aulagnier, que acredita que as instituições recebem os adoecimentos para reparar os estragos daquilo que a sociedade é responsável, seria interessante pensar nos dispositivos clínicos diferenciados que nós, psicanalistas, poderíamos criar para responder ao sofrimento contemporâneo. No trabalho com a psicose, temos observado a potência dos enquadres grupo/institucionais na função de intermediação, transformação e constituição das membranas psíquicas individuais.

Bibliografia

Aulagnier, P. (1979) A violência da interpretação, do pictograma ao enunciado. Rio de Janeiro: Imago.

Kaës, R. (2005) Os espaços psíquicos comuns e compartilhados, transmissão e negatividade. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Freud, S. (1990) Projeto para uma psicologia científica. In S. Freud, Obras Completas (J.L. Etcheverry, trad., Vol.I). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original escrito em 1895).

Freud, S. (1990) A interpretação dos sonhos. In S. Freud, Obras Completas (J.L. Etcheverry, trad., Vol.IV). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1900).

Freud, S. (1990) Totem e tabu. In S. Freud, Obras Completas (J. L. Etcheverry, trad., Vol.XIII). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1913[1912-13]).

Freud, S. (1990) Além do princípio do prazer. In S. Freud, Obras Completas (J.L. Etcheverry, trad., Vol.XVIII). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1920).

Freud, S. (1990) O Ego e o Id. In S. Freud, Obras Completas (J.L. Etcheverry, trad., Vol.XIX). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1923).

Freud, S. (1990) O mal-estar na cultura. In S. Freud, Obras Completas (J. L. Etcheverry, trad., Vol.XXI). Buenos Aires: Amorrortu (Trabalho original publicado em 1930 [1929]).

Missenard, A. (1985) Rêves de l’un, rêves de l’autre. In Psychiatries, 67, 4, p. 43-58. AFPEP: Paris.

Bleger, J. (1989) O grupo como instituição e o grupo na instituição, In Temas de Psicologia, entrevistas e grupos. São Paulo: Martins Fontes (Trabalho original publicado em 1979).

 

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, coordenadora do Núcleo de Transmissão e Investigação do Projetos Terapêuticos.




 
 
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